5. A natureza fundamental da garantia de irredutibilidade remuneratória
Como já asseveramos anteriormente, a natureza fundamental dum direito ou garantia é revelada pelo caráter fundamental do bem jurídico tutelado. No presente caso, a garantia da irredutibilidade remuneratória dos servidores públicos e agentes políticos tutela o direito de segurança administrativa. Esse direito, por sua vez, tutela o bem jurídico segurança. Considerando que esse bem jurídico é fundamental na ordem constitucional brasileira (é inclusive bem de valor excepcional no Estado de Direito), o direito correspondente também é fundamental, como também o é a garantia. Logo, a garantia de irredutibilidade remuneratória é garantia fundamental.
Decorre do fato de ser garantia fundamental a conseqüência de constar a irredutibilidade remuneratória em exame do núcleo de irreformabilidade constitucional (art. 60, § 4º, IV, CRFB), não obstante seja garantia coletiva e não individual [18]. Logo, a irredutibilidade remuneratória opera não só como limite ao legislador ordinário como também ao próprio legislador constitucional.
Por fim, decorre ainda da natureza de garantia fundamental a caracterização da irredutibilidade remuneratória como preceito fundamental, vale dizer, como regra fundamental da ordem constitucional brasileira. Sendo a regra contida no art. 37, XV, do Diploma Maior identificável como preceito fundamental, é possível a defesa da respectiva garantia por meio da argüição prevista no art. 102, § 1º, da Carta Política, e regulamentada pela Lei 9.882/99.
6. Conclusão
Analisando a função e a estrutura da irredutibilidade remuneratória prevista no art. 37, XV, da Constituição da República, conclui-se tratar-se de garantia fundamental que, apesar de também apresentar perspectiva subjetiva e individual, de defesa de indivíduo em concreto, igualmente é dotada de perspectiva objetiva e coletiva, que assegura o direito de segurança administrativa das categorias de servidores públicos e agentes políticos, direito este ligado ao bem fundamental segurança (art. 5º, caput, CRFB).
Por também se tratar de garantia de natureza eminentemente coletiva, deve-se reconhecer a unidade de interesse da categoria, tanto para efeito de direito material, quanto para efeito processual. Eis, portanto, as conseqüências dessa unidade de interesse: (a) a declaração, total ou parcial, de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo que ofenda a irredutibilidade remuneratória beneficia não somente os agentes que já estavam investidos no cargo ao tempo da lei inconstitucional, como também todos os que ingressarem na carreira depois deste momento; (b) a ofensa à garantia da irredutibilidade remuneratória deve ser afastada, preferencialmente, por meio da tutela coletiva, em vez da tutela individual, abrangendo a decisão judicial necessariamente toda a categoria de servidores ou agentes, desde que o autor seja entidade com representatividade adequada (p. ex., sindicato ou associação).
Por fim, em razão de sua natureza fundamental, a garantia objeto de nosso estudo, em sua dimensão objetiva, serve de limite material não só ao legislador infraconstitucional, como também ao próprio legislador constitucional. Outrossim, decorre desse mesmo caráter fundamental que a garantia em questão deve ser considerada preceito fundamental, podendo servir de base para o ajuizamento de eventual argüição de descumprimento de preceito fundamental.
7. Bibliografia (somente obras citadas)
Afonso da Silva, José, Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª ed., São Paulo, Mallheiros, 2004.
Ataliba, Geraldo, Da Irredutibilidade de Vencimentos, Revista da AMAGIS, v. 1, n.1, 1983.
Barbosa, Rui, Obras Completas – Trabalhos Jurídicos, v. XXXI, t. II, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1952.
Cordeiro lopes, Anselmo Henrique, A Inclusão do ICMS na Base de Cáculo da COFINS, RFTD, ano 5, n. 27, maio/junho de 2007.
Gomes Canotilho, José Joaquim, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed, Coimbra, Almedina, 2003.
Mazzilli, Hugo Nigro, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 16ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006.
Morais, Alexandre de, Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 4ª ed., São Paulo, Atlas, 2004.
Sarlet, Ingo Wolfgang, Constituição e Proporcionalidade: o Direito Penal e os Direitos Fundamentais entre Proibição de Excesso e de Insuficiência, RBCCRIM 47, ano 2004.
Notas
01Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª ed., São Paulo, Mallheiros, 2004, p. 412.
02 Ob. cit., pp. 413-4.
03 Ob. cit., p. 412.
04 Utilizamos essa definição no seguinte artigo de nossa autoria: A Inclusão do ICMS na Base de Cáculo da COFINS, RFTD, ano 5, n. 27, maio/junho de 2007
05Constituição e Proporcionalidade: o Direito Penal e os Direitos Fundamentais entre Proibição de Excesso e de Insuficiência, RBCCRIM 47, ano 2004, pp. 73-4.
06 Ob. cit. p. 82.
07Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, Rio de Janeiro, Ministério da Justiça, 1958, p. 458, apud José Afonso da Silva, ob. cit., p. 344.
08 Para mero efeito de ilustração, mencionamos que J.J. Gomes Canotilho também insere na segurança que aqui chamamos de "externa" da Administração um suposto princípio (o constitucionalista português faz menção a "idéia") de "força de caso decidido dos atos administrativos", que implicaria (i) autovinculação da Administração e (ii) tendencial irrevogabilidade dos atos administrativos que gozassem de confiança dos particulares. Cf. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed, Coimbra, Almedina, 2003, p. 265. Pensamos ser duvidosa a existência desse princípio na ordem jurídica brasileira.
09 Cf. Alexandre de Morais, Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 4ª ed., São Paulo, Atlas, 2004, p. 1334.
10The Federalist, Cabot Lodge, 1888, p. 323, apud Rui Barbosa, Obras Completas – Trabalhos Jurídicos, v. XXXI, t. II, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1952, p.36.
11 Ob. cit., p, 38.
12Da Irredutibilidade de Vencimentos, Revista da AMAGIS, v. 1, n.1, 1983, pp. 90-2.
13 Ob. cit., p. 90.
14 Ob. cit., p. 91.
15 É o conceito contido no art.81, parágrafo único, II, CDC.
16 Hugo Nigro Mazzilli, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 16ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 50.
17Ob. cit. p. 123.
18 Ver ADI 939/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, em que vários Ministros se manifestaram no sentido de serem cláusulas pétreas outros direitos fundamentais que não os "individuais".