Em linhas gerais, seguindo o posicionamento de Celso Antonio Bandeira de MELLO [01], utilizaremos a terminologia ‘invalidação’ e não ‘anulação’ dos atos administrativos, pois aquela expressão abrange tanto a nulidade como a anulabilidade do ato. A expressão ‘invalidade’ trata-se de gênero frente às espécies que a doutrina de maneira diversa classifica como atos nulos e anuláveis, ou, simplesmente, atos irregulares.
Neste estudo, em especial, será vislumbrado somente o desfazimento do ato administrativo concreto considerado nulo por existência de vício de legalidade.
Segundo o autor acima citado, a invalidação abrange qualquer caso de ofensa ao direito; resume-se a um defeito jurídico do ato; conceituado como "a supressão de um ato administrativo ou da relação jurídica dele nascida, por haverem sido produzidos em desconformidade com a ordem jurídica" [02].
A importância do estudo em questão pauta-se no prestígio da consumação dos efeitos jurídicos produzidos, a partir de um ato irregular, que deu causa a relação jurídica com o poder público.
Há que se destacar que para formação do ato administrativo deverão existir requisitos de validade para que seus efeitos jurídicos sejam produzidos normalmente, sem que haja risco de seu desfazimento, pois são coisas distintas o ato produzido e os efeitos que eles geraram.
Os elementos exigidos pelo direito para validade do ato administrativo, são: sujeito competente, finalidade, forma, motivo e objeto próprios.
Ao ser invalidado o ato administrativo ineficaz ou uma relação jurídica, o que se eliminará é a produção dos efeitos do ato, devendo, para isso, ser fulminado o próprio ato que gera estes efeitos jurídicos.
No caso de um ato concreto, mais especificadamente, uma relação jurídica constituída, o ato em si desaparece com a formação desta relação, o que persiste são apenas seus efeitos.
O processo da invalidade possui como sujeitos ativos a Administração Pública, que será acionada através da provocação do interessado ou ex officio, através do poder de autotutela, e o Poder Judiciário, ao dizer o direito no julgamento do caso concreto.
Os possíveis instrumentos jurídicos que poderão ser utilizados para a análise da permanência dos efeitos dos atos administrativos irregulares, são: o mandado de segurança, capitulado no art. 5º, LXIX, da CF; a ação popular, inciso LXIX, do mesmo artigo ora citado; a ação civil pública, art. 129, III da CF, bem como, o princípio constitucional que assegura o direito de petição ao Poder Judiciário quando existe lesão ou ameaça ao direito do indivíduo, art. 5º, XXXV.
Poderá haver dois caminhos para solucionar a problemática do ato administrativo que tenha sido produzido de maneira irregular, ou seja, com vícios de legalidade. Ou o ato viciado será enfrentado como um dever que a Administração tem para anulá-lo, com base no princípio da legalidade estrita, ou, como opção de manutenção do ato, com fundamento na prevalência do interesse público sobre a invalidação dos atos irregulares.
Há que se ressaltar que o regime jurídico administrativo, ao qual se submete a Administração Pública, não conferiu a discricionariedade ao agente administrativo para optar pela invalidação ou manutenção do ato ilegal.
Via de regra o administrador deve anular o ato insanável por vício de ilegalidade, para o fim de restaurar a legalidade violada, não deixando o ato produzir seus efeitos no mundo jurídico, caso contrário, estaria sendo violado o princípio da legalidade.
Entretanto, haverá situações em que a melhor alternativa para a Administração Pública será manter o ato inválido, "Nesses casos, porém, não haverá escolha discricionária para o administrador, mas a única conduta juridicamente viável terá que ser a de não invalidar o ato e deixá-lo subsistir e produzir seus efeitos". [03]
Importante destacarmos que os efeitos gerados na relação jurídica inválida, constituída entre o particular e a Administração Pública, será o diferencial para que estes efeitos se mantenham ou não no mundo jurídico.
Temos como exemplo, caso que envolva direitos adquiridos pelos servidores públicos no curso de sua relação com a Administração Pública. A manutenção dos atos irregulares que envolva esta relação jurídica poderá ser respaldada pela previsão legal contida no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal [04], bem como, pela moderna doutrina [05] e a jurisprudência pátria. Importante destacar a observância da boa fé dos destinatários dos direitos que forem alcançados com a produção dos efeitos do ato inválido.
Vale colacionarmos os ensinamentos de Lúcia Valle FIGUEIREDO:
"Destarte, por força de erro administrativo, podem surgir situações consumadas, direitos adquiridos de boa fé. Diante das situações fáticas constituídas, rever tais promoções (hipótese consideradas) seria atritar com princípios maiores do ordenamento jurídico, sobretudo com a segurança jurídica, princípio maior de todos, sobre o princípio, como diz Norberto Bobio". [06]
A doutrina tradicional [07] postula que os efeitos do ato administrativo considerado nulo, se operam ex tunc, isto é, desde então; fulminando o que havia ocorrido; negando hoje os efeitos de ontem. A mesma linha de raciocínio é vista no ramo do direito privado, em que a nulidade não poderá ser sanada ou produzir efeitos válidos, em contrapartida, no ramo do direito público, o rigorismo formal é menor em face da proeminência do interesse público.
Em certas situações, a permanência dos efeitos jurídicos do ato inválido provoca menos gravame ao Direito do que sua retirada do mundo jurídico, Weida ZANCANER [08] leciona a respeito.
"Com base em tais atos certas situações terão sido instauradas e na dinâmica da realidade podem converter-se em situações merecedoras de proteção, seja porque encontrarão em seu apoio alguma regra especifica, seja porque estarão abrigadas por algum princípio de Direito".
Assim, em certas situações, consideradas excepcionais, a invalidação não é a melhor opção para a atuação do sujeito ativo, devendo haver certas limitações na manutenção do ato reconhecido como inválido, o que segundo José dos Santos CARVALHO FILHO deve ser observado sob dois aspectos [09]: o decurso do tempo e a consolidação dos efeitos produzidos.
Quanto ao transcurso do tempo, a irregularidade no nascedouro do ato poderá ser convalidada [10] pelo fator ‘tempo’, sempre com o intuito de preservar o interesse público e a segurança nas relações dos particulares com a Administração Pública, neste sentido, o autor Mauro Roberto Gomes de MATTOS "o fato consumado no direito administrativo possui a força de convalidar, ou até mesmo, sanar o ato nulo e anulável".
A Administração Pública possui em seu favor a consumação de seus atos pelo transcurso do tempo, mais especificamente, em cinco anos, de acordo com Decreto-Lei nº 20.910/32, que previu este prazo para a prescrição dos atos administrativos.
Assim, seria irrazoável o desfazimento de um ato considerado viciado após seus efeitos já terem se consolidado durante o passar dos anos, sendo que a manutenção destes efeitos acaba gerando estabilidade para determinadas relações jurídicas travadas com o poder público.
Neste sentido, para Marcelo CAETANO [11], o ato administrativo viciado, que se consumou durante vários anos, poderá ser convalidado ou sanado.
"O ato doente cura-se com o decurso do tempo, e isso se dá porque o legislador pensa que a ilegalidade cometida não é tão grave que deva sobrepor-se ao interesse de pôr termo à insegurança dos direitos. Aos interessados, incluindo os representantes do interesse público, é facultado a anulação do ato; mas se não usarem oportunamente dessa faculdade, o interesse geral impõe que não fique indefinidamente a pensar sobre este ato a ameaça de anulação".
Para concluir esta idéia, importante frisar a importância do transcurso do tempo como fator de segurança jurídica na esfera das relações dos indivíduos com o Estado.
"Atualmente, como já observamos, a doutrina moderna tem considerado aplicável também o princípio da segurança jurídica (na verdade inserido no princípio do interesse público), em ordem a impedir que situações jurídicas permaneçam eternamente em grau de instabilidade, gerando temores e incertezas para as pessoas e para o próprio Estado". [12]
A preservação da segurança jurídica esta relacionada diretamente com a organização política, que busca a finalidade pública, assim, a segurança jurídica funciona "como resultado de um conjunto de técnicas normativas encaminhadas a garantir a própria consistência do sistema, que tem no fato consumado um dos elos de sustentação". [13]
A observância do interesse público e da segurança jurídica nas relações de direito público são sustentáculos para assegurar estabilidade numa relação jurídica com a própria Administração Pública, como por exemplo, no caso da troca de governantes, em que os servidores públicos poderiam ver abalada sua estabilidade numa possível revisão de direitos adquiridos na relação jurídica anteriormente firmada.
A temática trazida neste breve estudo serve como destaque para que a Administração Pública e o Poder Judiciário atentem para manutenção dos efeitos das relações jurídicas consideradas inválidas; seja pelo decurso do tempo, que cristalizou os efeitos produzidos nesta relação; seja pela consolidação dos efeitos produzidos pelo manto de algum princípio jurídico, ou até uma regra específica, sendo que os sujeitos ativos da invalidação, diante do caso concreto, escolherão pela conduta jurídica mais viável que possibilite a continuidade de seus efeitos.
Notas
01 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007. 22. ed., p. 441.
02 Idem
03 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.17.ed.p. 142.
04 "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;"
05 Régis Fernandes de OLIVEIRA; Seabra FAGUNDES; Tushio MUKAI.
06 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros: 1995. 9.ed., p. 297/298.
07 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007. 22. ed., p. 445.
08 ZANCANER, Weida. Da convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 61.
09 Op. cit. p. 142.
10 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de.Princípio do fato consumado no Direito Administrativo. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 220, p. 196, abril/junho 2000.
11 CAETANO, Marcelo. Princípios Fundamentais de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1977. p. 187
12 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit., p. 143.
13 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Op. cit., p. 196.