No dia 04 de fevereiro deste ano, os EUA derrubaram um balão chinês que estava sobrevoando a região da costa do estado Carolina do Sul. A cena foi gravada e demonstrou a utilização do míssil antibalístico AIM-9X quando o balão alcançou onze quilômetros da costa norte-americana precisamente às 16h39 de Brasília. A Força Aérea americana aguardou que o balão fosse em direção ao mar territorial para evitar danos em solo. Os EUA mencionaram um segundo balão sobrevoando território latino-americano, o que foi recentemente confirmado pela Colômbia.
Rapidamente, a China expressou que o uso de míssil foi um exagero dos EUA. Para o governo chinês, não seria necessário o uso de força armada na derrubada do balão -que teria adentrado o território americano de forma acidental e teria finalidade meteorológica. Além disso, o Ministério das Relações Exteriores chinês salientou que pedira aos EUA para manejar essa situação de uma forma calma, profissional e restrita. Por fim, o governo chinês explicitou que essa derrubada violou a prática internacional e deu oportunidade para a China salvaguardar os legítimos interesses e direitos da sociedade empresária proprietária do balão.
A retórica usada pelos países revela como pano de fundo a colisão entre a proteção da soberania nacional e o direito de passagem aérea ou proteção à propriedade privada em território internacional. Em analogia, a entrada acidental de um avião com passageiros não geraria, em tese, o direito de derrubada pelo Estado territorial a não ser que o avião demonstrasse nitidamente almejar a um ataque ou se a aeronave negligenciasse as ordens ou comunicações do país territorial. O caso emblemático é o do voo MH17 da Malaysia Airlines que foi derrubado por míssil da Ucrânia, o que violou as regras do direito internacional, já que não houve nenhum contato da Ucrânia com o avião.
Só que, neste recente caso, além de o balão chinês não transportar nenhum passageiro, os EUA alegaram ser ele um instrumento de espionagem. Logo, compete aos EUA o direito de derrubada do balão se a China alega simples passagem acidental? Caberia aos EUA o direito à legítima defesa segundo a Carta da ONU? Ademais, poderia a China ajuizar ação reparatória contra os EUA em benefício da suposta empresa chinesa proprietária do balão?
A primeira pergunta parece ter uma resposta óbvia, mas não é tão simples assim. Há elementos de soberania que talvez os nenhum dos países tenham interesse em revelar, tais como: será que o balão realmente sobrevoou bases militares? Será que a China imediatamente comunicou os EUA da passagem acidental? Além disso, seria esta a primeira passagem chinesa “acidental” em território norte-americano? Todas essas questões importam para análise da legitimidade da defesa chinesa.
A Convenção Civil sobre Aviação Civil Internacional, ou Convenção de Chicago, ressalta que aeronaves sem piloto devem ter autorização especial para sobrevoarem um Estado (artigo 8). Também, Estados podem estabelecer zonas proibidas para que aeronaves não firam a soberania ou interesses militares ou de segurança pública (artigo 9). Segundo os EUA, o balão chinês sobrevoava locais de interesse militar norte-americano, e há dias o governo americano frisava ao governo chinês que o balão seria derrubado. Além disso, pela Carta da ONU, os Estados devem evitar a ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou dependência política de qualquer Estado (artigo 2.4). Contudo, isso não impede o Estado, no caso os EUA, de derrubar objetos potencialmente perigosos à sua soberania. Os EUA têm provas de que tentaram resolver anteriormente a situação com a China ( um tipo de resolução pacífica como previsto no artigo 2.3 da Carta da ONU) e, de fato, só nesse estado da Carolina do Sul há oito bases militares, sendo uma próxima ao local em que o balão foi derrubado.
Para o direito internacional, essa abatida se caracteriza como uma contramedida (artigo 49 do Projeto de Responsabilidade Internacional dos Estados da Comissão de Direito Internacional da ONU). E essa contramedida americana só seria ilícita se os EUA usassem de força militar contra a China fora do território americano, já que o artigo 2.4 da Carta da ONU somente protege a “integridade territorial ou a dependência política” dos Estados, bem como “qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas”. Nesta última cláusula geral, o direito à soberania se sobrepõe a uma passagem supostamente acidental.
De outro lado, os EUA não teriam o direito à legítima defesa contra a China. Aqui, necessária a distinção da derrubada do balão, que é uma contramedida, com legítima defesa dos Estados, esta prevista no artigo 51 da Carta da ONU. A legítima defesa só seria possível se a China tivesse realizado um ataque armado contra os EUA. Portanto, ainda que fosse provada a espionagem, isso não daria direito aos EUA de usarem força militar (ataque armado) no território chinês. O Reino Unido, no caso do assassinato do ex-espião russo, Alexander Litvinenjo, em Londres já alegou que o homicídio em território inglês seria um tipo de ataque armado que possibilitaria o direito à legítima defesa. Ou seja, uma incursão no território com fins de espionagem daria direito de o Reino Unido atacar a Rússia. Todavia, isso ainda é uma posição isolada no direito internacional. No caso do balão, nenhuma pessoa foi morta, o que enfraqueceria eventual argumento dos EUA de contra-atacarem a China.
Em relação à questão final, muito improvável que a China consiga provar que o abate realizado foi desproporcional ao prejuízo eventualmente causado à proprietária do balão. A proporcionalidade é regra que deve ser seguida em todas as contramedidas, bem como ao uso da força segundo o direito costumeiro internacional. De acordo o artigo 51 do Projeto de Responsabilidade Internacional dos Estados da Comissão de Direito Internacional da ONU, o abate há de levar em conta a gravidade do ato e os direitos em questão. Não só os EUA deram um ultimatum ao governo chinês sobre o voo desautorizado, como há indícios de que o balão já se encontrava em solo americano há mais de sete dias. Portanto, eventual litigância chinesa para uma reparação em prol da proprietária do balão não só deve provar que, de fato, a incursão foi acidental, como também que inexistiam mecanismos de espionagem na aeronave -fatos que talvez o governo chinês prefira não revelar ou opte por não aprofundar a crise diplomática com os EUA.
A natureza jurídica dos balões, sejam quais suas finalidades, é próxima à dos drones não tripulados. E se os EUA entendem que podem alegar o direito internacional para a proteção de sua soberania nacional, também devem reconhecer o mesmo direito de abate a seus próprios drones quando eles incursionam em terras estrangeiras. Em 2019, o Irã abateu um drone americano e isso gerou debates sobre a legalidade do ataque. Segundo o Irã, o drone teria sobrevoado espaço iraniano. Consoante os EUA, o drone somente teria adentrado o espaço do Estreito de Ormuz. Ambos os países preferiram não engajar no uso de força armada especificamente a esse ataque, mas fica a questão sobre se a prática desses tipos de abate será reconhecida como legítima pelo governo dos EUA.
Por fim, apesar de mencionado no começo, há um balão sobrevoando a América Latina. Quiçá chegue ao Brasil e, como o país não possui um sistema de defesa antiaérea contra alvos de média altura (negociação que já se estende há mais de dois anos), talvez aqui a guerra a ser analisada seja somente a de balões de água.