O instituto da Usucapião disposto no artigo 1.238 e seguintes do Código Civil Brasileiro de 2002 permite que uma pessoa possa adquirir a propriedade de um bem, seja móvel ou imóvel, pelo uso por um determinado tempo, sem interrupção, e desde que cumpra os requisitos exigidos pela lei. Nessa seara, o presente artigo enfocará na seguinte pergunta: é possível regularizar unidade autônoma situada em condomínio edilício irregular através de usucapião? A resposta é sim, conforme veremos a seguir.
Antes de adentrarmos ao destacado tema principal, é impossível analisar o instituto da usucapião sem antes voltarmos às suas raízes históricas. A sua base se encontra no direito romano, sendo uma criação para trazer maior segurança aos cidadãos, resolvendo ou minimizando os conflitos que já existia naquela época, no que diz respeito à propriedade.
Atribui-se então ao Direito Romano a principal fonte da historicidade da usucapião, pois naquela época grandes já eram os problemas relacionados ao tema, que foram percebidos – e vividos – pelos romanos. A primeira regulamentação se deu na Lei das XII Tábuas, que exigia ser a posse, ininterruptamente, de 2 (dois) anos para os imóveis, a coisa fosse idônea, a posse continuada e o justo título (compra, doação, dote, legado, abandono, etc), e mais adiante, no início da República, com a expansão de peregrinos, passou-se a exigir também a boa-fé do usucapiente3.
Passada essa análise inicial sobre o surgimento do instituto da usucapião na Lei das XII Tábuas, em 455 a.C, no Brasil, o instituto surgiu oficialmente no Código Civil de 1916, no qual se elencou a usucapião como modalidade de aquisição de propriedade em seu artigo 530. Com relação ao conceito do instituto da usucapião, trata-se da aquisição do domínio pela posse prolongada, isto é, dois são os elementos básicos: a posse e o tempo. Para caracterizar a usucapião é necessária a ocorrência de maneira contínua, pacífica, tempo determinado e intenção de dono.
Nesse sentido, vale destacar a ponderação de Arnaldo Rizzardo a respeito dos requisitos da usucapião:
O primeiro pressuposto ou requisito necessário à reivindicação é a propriedade atual do titular. Deverá ele ter o jus possidendi, embora encontre perdido o jus possessionis. [...] O segundo elemento necessário é o tipo de posse exercida pelo réu. [...] O requisito para a ação é a posse injusta do réu, no sentido de falta de amparo ou de um título jurídico. Não tem ele o jus possidendi. De sorte que possuidor de boa ou má-fé, ou simples detentor, pode ser sujeito da pretensão da ação reivindicatória, que visa a restituição da coisa. [...] O terceiro requisito envolve a individuação do imóvel reivindicando, de modo a identificá-lo perfeitamente [...].4
E sobre a presunção positiva do requisito - animus domini (intenção de dono), ensina-nos Lenine Nequete:
[...] por definição, é o ‘animus domini’ a vontade (ainda que de má-fé) de possuir alguém como se fosse dono, donde o dizer-se que existe mesmo no ladrão, que sabe que a coisa lhe pertence. Mas [...] entende-se que para caracterizá-lo não basta aquela vontade: é preciso que ela resulte da ‘causa possessionis’, isto é, do título em virtude do qual se exerce a posse: de modo que se esta foi iniciada por uma ocupação, pacífica ou violenta, pouca importa, haverá o ânimo; se, ao contrário, originou-se de um contrato, como o de locação, por exemplo, que implica no reconhecimento do direito dominial de outrem, não se pode reconhecê-lo. 5
Atualmente, a legislação brasileira contempla 6 (seis) modalidades de usucapião, quais sejam, extraordinária, ordinária, especial urbana, especial rural, especial familiar e coletiva, as quais apresentam os seus requisitos peculiares, devendo escolher-se uma das modalidades que melhor se encaixe para o caso em específico.
A previsão legal contida no artigo 183 da Constituição Federal de 1988 e nos artigos 1.238 e seguintes do Código Civil Brasileiro, os quais tratam das modalidades existentes de usucapião, não distinguem a espécie de imóvel — se individual - propriamente dito - ou se situado em condomínio edilício, muito menos se registrado no Registro Imobiliário.
Segundo a lição dos ilustres Marco Aurélio de Mello e José Roberto Porto sobre a possibilidade de usucapião de apartamento:6
"Importante considerar que uma das habitações mais comuns nos grandes centros urbanos é o apartamento e, por tal motivo, não se pode excluir da incidência da usucapião pró-moradia a unidade autônoma vinculada a condomínio edilício, estando incluída tal hipótese no conceito de área urbana a que se refere a lei. no tocante à metragem, deverá ser somada a área exclusiva da unidade autônoma com a fração ideal do respectivo terreno a fim de se perquirir se extrapola ou não os 250 metros quadrados previstos em lei".
E o doutrinador Guilherme Calmon Nogueira (2016, p. 382)7 explica:
“Contudo, tem-se entendido no sentido da possibilidade de usucapião especial urbana sobre unidades autônomas em condomínios edilícios, eis que não se destinou a usucapião apenas para população de baixa renda, daí o Enunciado 85 da Jornada de Direito Civil: ‘Para efeitos do art. 1.240, caput, do novo CC, entende-se por área urbana o imóvel edificado ou não, inclusive unidades autônomas vinculadas a condomínios edilícios.”
Ainda destaca-se o importante julgado do STF – RE nº 305.416, o qual tratou da aplicação da forma prevista no art. 183. da Constituição Federal, Usucapião Especial Urbana, também conhecida como "Usucapião Constitucional" ou ainda "Usucapião Pró-moradia", tem como requisitos: área urbana máxima de 250mts2, utilização como moradia, posse tranquila e sem oposição e não possuir o requerente outro imóvel.8 Nele o Supremo Tribunal Federal proveu por unanimidade em reconhecer a possibilidade da usucapião para apartamento, na modalidade especial urbana.
Frisa-se que a jurisprudência do TJRJ, com acerto, há tempos, vem reconhecendo a possibilidade de usucapir apartamentos. Vejamos abaixo:
Usucapião urbano especial. Apartamento construído em área urbana. Entendimento de que essa modalidade aquisitiva da propriedade só' se aplica ao terreno. Provimento do apelo. Admissibilidade do processamento. A Constituição da República admite a aquisição através de usucapião urbano da área de terra não excedente a duzentos e cinquenta metros quadrados, por quem a possuir como sua, ininterruptamente e sem oposição por cinco anos, mas condiciona a sua finalidade a que seja utilizada como moradia própria ou da família do possuidor. Fica evidente, assim, o intuito do legislador constituinte em possibilitar a aquisição da propriedade através dessa modalidade especial de usucapião não só' do terreno, mas, principalmente, do imóvel construído, desde que o seja em área urbana em terreno que não exceda as dimensões previstas, atendidos os demais requisitos. Tal conclusão se impõe diante da finalidade traçada no texto constitucional, porque para que haja uma moradia é necessário que exista uma construção no terreno. Provimento que se da' ao apelo, para cassar a sentença extintiva do processo e determinar o seu prosseguimento, a fim de possibilitar a demonstração de estarem presentes os demais requisitos legais.(MCG)
(TJ-RJ - APL: 00029051819968190000 RJ 17 VARA CIVEL, Relator: AFRANIO SAYAO, Data de Julgamento: 06/03/1997, DÉCIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 14/05/1997).
Registra-se também que além da modalidade especial urbana, poderá ser utilizada outras modalidades para usucapir uma unidade autônoma, por exemplo, a extraordinária ou a ordinária, posto que não se restringe a dimensão da unidade autônoma, nem mesmo se o dono possui outro imóvel, devendo ser analisado o caso concreto, aplicando a modalidade mais benéfica à situação.
E cabe ainda mencionar que em nenhuma das modalidades de usucapião supracitadas, exige o requisito do prévio registro do imóvel a ser usucapido, ou seja, não é obrigatória a existência de transcrição/matrícula no Registro de Imóveis do bem a ser usucapido. Logo, é totalmente viável a regularização imobiliária de apartamento, inclusive aquele localizado em condomínio irregular - sem registro no Registro de Imóveis.
Destaca-se a doutrina de Henrique Ferraz Correa de Mello9:
"(...) A usucapião é forma de aquisição originária que INDEPENDE DE QUALQUER PRÉVIA REGULARIZAÇÃO DO REGISTRO DA PROPRIEDADE IMÓVEL, como é o caso, por exemplo, dos loteamentos irregulares. Consequentemente, a usucapião de unidade autônoma, SEM PRÉVIA INSTITUIÇÃO, deve a rigor, seguir a mesma linha. O REGISTRO SE AMOLDA À AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA. Não é a aquisição originária que se amolda ao registro. A usucapião é a base natural do registro, que surgiu, na história da civilização, como instituição propriamente dita, muito tempo depois da ocupação".
Assim, o pedido de usucapião de uma unidade autônoma localizada em condomínio “de fato” não guarda identidade com a sua situação registral, logo o que será usucapido é uma fração ideal do lote, que corresponde a uma unidade de um condomínio informal.
Vale ressaltar que com a introdução do art. 216-A na Lei de Registros Públicos, incluído pela Lei nº 13.105/2015, passou a ser possível a realização da usucapião pela via administrativa - sem processo judicial - com assistência obrigatória de advogado, diretamente nos cartórios extrajudiciais.
O usucapião extrajudicial não se trata de uma nova espécie de usucapião, mas sim, uma nova via, muito mais célere e dinâmica, sem juiz, sem processo judicial e audiências, onde a mesma solução que se obtém na Justiça pode ser alcançada de modo muito mais proveitoso e rápido, especialmente depois da regulamentação do CNJ10* e das modificações operadas pela Lei nº 13.465/2017. Inclusive registra-se pelo teor do artigo 7º11 do Provimento CNJ nº 65/2017 a possibilidade de regularização imobiliária extrajudicial de apartamento em condomínio irregular12.
O Judiciário já vem entendendo também pela viabilidade de usucapir apartamento localizado em condomínio irregular, de acordo com os colacionados abaixo:
USUCAPIÃO. CONDOMÍNIO IRREGULAR. SENTENÇA DE EXTINÇÃO POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. RECURSO DOS AUTORES. POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO DE APARTAMENTO EM CONDOMÍNIO EDILÍCIO IRREGULAR, AINDA QUE ESTE NÃO TENHA INSCRIÇÃO NO REGISTRO DE IMÓVEL. MODO DE AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA. MITIGAÇÃO DAS RESTRIÇÕES NORMALMENTE APLICÁVEIS AO REGISTRO. PRECEDENTES. SENTENÇA ANULADA PARA PROSSEGUIMENTO DO FEITO. RECURSO PROVIDO.
(TJSP - recurso nº 1008923-61.2019.8.26.0477 - Julgado EM 25/05/2021).
USUCAPIÃO - Pedido de reconhecimento de prescrição aquisitiva quanto à UNIDADE CONDOMINIAL - Construtora que teve a falência decretada antes de proceder à regularização do condomínio perante o Cartório de Registro de Imóveis - Extinção do processo sem resolução do mérito - Inconformismo - Cabimento – IRREGULARIDADE DO IMÓVEL QUE NÃO OBSTA A USUCAPIÃO – Sentença anulada – Recurso provido.
(TJSP - Recurso nº 1009716-68.2017.8.26.0477 – Julgado em 25/05/2018).
Em relação ao entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a respeito do tema, encontrou-se, por exemplo, apenas um julgado, o qual é datado em 2014 (antes da Lei nº 13.465/2017), no qual os julgadores entenderam pela impossibilidade de usucapir apartamento em condomínio irregular, sob o entendimento de ser inviável quando o condomínio não se encontra averbado no RGI, conforme a ementa a seguir:
APELAÇÃO CIVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. IMÓVEIS. USUCAPIÃO. APARTAMENTO. CONDOMÍNIO IRREGULAR. A ação de usucapião tem natureza dominial e requisita objeto individualizado passível de registro no ofício imobiliário. - Inviável registro no ofício de imóveis onde não se encontra averbado condomínio edilício ao qual se integrariam as unidades objeto da ação se impõe a extinção do feito sem julgamento de mérito por ausência de requisito necessário à formação de título. RECURSO DESPROVIDO, POR MAIORIA.
(TJRS - Apelação nº 70057009094, Julgado em 20-03-2014).
Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em importante decisão recente sobre usucapião de imóveis irregulares - RESp nº 1818564/DF, julgado em 09/06/2021, assentou dentre outras importantes orientações que: “Não se deve confundir o direito de propriedade declarado pela sentença proferida na ação de usucapião (dimensão jurídica) com a certificação e publicidade que emerge do registro (dimensão registrária) ou com a regularidade urbanística da ocupação levada a efeito (dimensão urbanística)”.
E no REsp nº 79.834, o STJ também se pronunciou no sentido de que: “não há dúvida de que um condômino pode usucapir parte da gleba, ou toda ela, conforme sua posse se localize numa parcela, devidamente delimitada, ou em todo o imóvel, desde que haja sobre ela a posse própria, ou seja, posse em que o possuidor tenha a intenção de possuir ‘pro suo’, intenção essa que se manifesta por atos exteriores de posse exclusiva, e, consequentemente, impeditiva da posse dos demais condôminos”.13
Dito isso, com base tanto na doutrina quanto na jurisprudência - acreditamos não haver mais espaço para questionamento sobre a possibilidade de usucapião de apartamentos - seja pela via judicial ou extrajudicial – e independentemente do tamanho da unidade autônoma, e se registrada ou não no Registro de Imóveis.
Destarte, entende-se possível a regularização imobiliária de apartamento, por meio da usucapião judicial ou extrajudicial, independentemente da sua metragem e da sua localização, isto é, em condomínio edilício regular ou em condomínio edilício “de fato”, de acordo com a explanação. Além do mais, tal providência traz, sem sombra de dúvida, segurança jurídica ao dono/condômino, visto que a sua unidade autônoma passará a ser regularizada, sem falar que o imóvel sofrerá uma valorização monetária no mercado.
Notas
3 NASCIMENTO, Fabiano. CIRILO, Júlio. AS BASES JURÍDICO-HISTÓRICAS DO INSTITUTO DA USUCAPIÃO NO SISTEMA ROMANÍSTICO, Revista Direito e Cidadania , v. 2, p. 33-46, 2017. Disponível em <http://revista.uemg.br/index.php/direitoecidadania/article/download/2927/1625>, acessado em 13 de janeiro de 2023.
4 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 213-216.
5 NEQUETE, Lenine. Da prescrição aquisitiva (usucapião). 3. ed. Porto Alegre: Ajuris, 1981. p. 121.
6 Cf. Posse e Usucapião – Direito Material e Direito Processual. 2023. Ed. 4ª, pag. 232.
7 GAMA. Guilherme Calmon. Reconhecimento Extrajudicial da Usucapião e o Novo Código de Processo Civil. Revista de processo. 2016.
8 Cf. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 223.
9 MELLO, Henrique Ferraz Correa. Usucapião Extrajudicial. 2018.
10 Art. 2º Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião formulado pelo requerente – representado por advogado ou por defensor público, nos termos do disposto no art. 216-A da LRP –, que será processado diretamente no ofício de registro de imóveis da circunscrição em que estiver localizado o imóvel usucapiendo ou a maior parte dele.
11 Art. 7° Na hipótese de a unidade usucapienda localizar-se em condomínio. edilício constituído de fato, ou seja, sem o respectivo registro do ato de incorporação ou sem a devida averbação de construção, será exigida a anuência de todos os titulares de direito constantes da matrícula.
12 BOCZAR, Ana Clara. LONDE, Carlos Rogerio. ASSUMPÇÃO, Letícia Franco. USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. 2021.
13 In REsp – 79.834, Relator Ministro Moreira Alves.