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Os efeitos da absolvição criminal nas ações de improbidade administrativa e a independência entre as instâncias.

Uma análise sobre o artigo 21, §4º, da Lei nº 14.230/21

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Resumo:


  • Análise da relação entre sentença penal absolutória e ações de improbidade administrativa, destacando a independência entre as instâncias e os efeitos da Lei 14.230/21.

  • Discussão sobre a evolução jurisprudencial e a suspensão do artigo 21, §4º, da Lei 14.230/21 pela ADI 7236/22, que impacta a comunicação entre as instâncias.

  • Metodologia dedutiva utilizada para examinar a evolução do entendimento dos tribunais e a necessidade de relativizar a independência entre as instâncias em prol da segurança jurídica e do princípio da proporcionalidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Examina-se em que medida o princípio da independência entre as instâncias penal e administrativa deve ser relativizado diante da segurança jurídica das decisões e do princípio da proporcionalidade.

RESUMO: O presente artigo tem por escopo analisar os efeitos da sentença penal absolutória nas ações de improbidade administrativa, considerada a independência entre as instâncias. Evidencia-se, desse modo, a evolução do entendimento jurisprudencial e os reflexos trazidos pela recente suspensão do artigo 21, §4º, da Lei 14.230/21 no julgamento da cautelar proposta na ADI 7236/22. Para tanto, foi empregada a metodologia dedutiva, partindo-se de uma revisão bibliográfica e jurisprudencial acerca do princípio da independência entre as instâncias, as alterações advindas da Lei 14.230/2021, evidenciando-se, ainda, a evolução do entendimento dos tribunais acerca da mitigação em relação às sentenças absolutórias, afirmando-se que, ante a inegável proximidade entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal, o princípio deverá ser relativizado diante da segurança jurídica das decisões e do princípio da proporcionalidade.

Palavras-chave: Constituição Federal de 1988; autonomia das instâncias; improbidade administrativa; Lei 14.230/21.


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho buscou realizar um estudo analítico e interpretativo sobre as modificações jurisprudenciais acerca da comunicação entre as instâncias e os efeitos imediatos das sentenças absolutórias penais nas ações de improbidade administrativa.

A temática abordada é de suma importância na esfera do Direito Público, ao passo que a lei de improbidade administrativa prevê a possibilidade de o agente público ser responsabilizado nas searas penal e cível, tema objeto da ADI 7236/22, sendo recentemente deferida a medida cautelar para suspensão do artigo 21, §4º da lei de improbidade administrativa, decisão exarada em 27 de dezembro de 2023.

Conforme estipula o artigo 12 da lei de improbidade, a responsabilização por ato de improbidade administrativa produz efeitos tanto na esfera civil quanto na esfera criminal, sendo que as sanções podem ser aplicadas de forma isolada ou cumulativamente, conforme a gravidade do fato. Assim, surgem questionamentos acerca dos resultados dos processos realizados em instâncias distintas e as multisanções previstas pela própria lei de improbidade frente à autonomia dessas instâncias e os reflexos de seus resultados.

Ressalta-se que o entendimento de que uma pessoa pode ser punida em diversas esferas sempre foi pacificado pelos tribunais3, sendo ressalvada a comunicação nas hipóteses de absolvição por inexistência de fato ou de negativa de autoria.

Desse modo, estamos diante da efetivação prática da autonomia dessas instâncias. A própria Constituição Federal brasileira sempre legitimou o princípio da autonomia, ao passo que trata os atos de improbidade administrativa – tema objeto do presente estudo – como eventos de incidência múltipla, ao firmar, em seu art. 37, §4°, que "sem prejuízo da ação penal cabível", eles importarão "a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei".

A nova lei de improbidade administrativa, entre as diversas mudanças apresentadas, também passou a prever em seu artigo 21, § 4º, que a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, com base em quaisquer dos fundamentos estampados no art. 386 do Código de Processo Penal, desde que confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação de improbidade administrativa.

A inovação trazida pela Lei de improbidade resultou em grande repercussão no mundo jurídico, sendo recente entendimento do tribunal superior de que o referido parágrafo é incompatível com o ordenamento jurídico, deferindo a medida cautelar de sua suspensão, haja vista que a comunicabilidade ampla pretendida pela norma questionada acaba por corroer a própria lógica constitucional da autonomia das instâncias.

Assim, ao longo do estudo, o método de abordagem a ser utilizado é o dedutivo, uma vez que se parte da argumentação acerca dos efeitos práticos das alterações advindas da Lei 14.230/2021, chegando-se, ao final, à exposição dos fundamentos específicos para a mitigação da independência entre as instâncias penal e administrativa na LIA e análise do julgamento sumário realizado na ADI 7236.

Em relação aos procedimentos e técnicas empregados, realizar-se-á pesquisa descritiva e explicativa, com análises bibliográfica e jurisprudencial, passando-se a analisar as modificações trazidas pela Lei 14.230/2021, a contextualização da independência entre as instancias e os princípios do non bis in idem e o respeito à coisa julgada, bem como a mitigação do conceito frente às modificações apresentadas.

2. ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 14.230/21

Apesar de a Lei 14.230/21 ser conhecida como nova lei de improbidade administrativa, a Lei 8.429/92 não foi revogada, permanecendo a sua vigência com as alterações provocadas pela Lei 14.230/21. O que se apresenta é que as modificações contidas são tão significativas que, de forma literal, há a estruturação de uma nova lei.

Promulgada ainda em 1992, a Lei 8.429, conhecida como lei de improbidade administrativa, surgiu para regulamentar o § 4º do art. 37 da Constituição Federal, prevendo que quem pratica um ato de improbidade administrativa estará sujeito às devidas penalidades.

Ocorre que, com o passar do tempo a Lei de improbidade tornou-se desconexa com a realidade vivenciada pelos tribunais. Desse modo, dentre as principais justificativas para as alterações, a mais forte entre os doutrinadores é a de que a lei precisava se adequar aos entendimentos já promulgados pelos tribunais ao longo do tempo. Assim, passou a então lei nº 8.429/92 a ser profundamente alterada pela Lei nº 14.230, de 25‑10‑21, trazendo alterações significativas em seu comando legal e efeitos no procedimento em que a lei deverá ser conduzida.

Segundo a justificativa apresentada por Lucena (2018), autor do projeto de lei que originou a modificação da lei de improbidade administrativa, esta carecia de revisão para adequação às mudanças ocorridas na sociedade e também para adaptar-se às construções hermenêuticas da própria jurisprudência, consolidadas em decisões dos Tribunais. O texto apresentado representa revisão redacional de adaptação de linguagem, retificando pequenas falhas perceptíveis, além de correções de técnica legislativa, introduzindo algumas modificações não apenas estilísticas e redacionais, como também de conteúdo.

Sobre as modificações apresentadas, explica Marçal4

A Lei Federal 8.429 foi editada em 1992 e promoveu novas perspectivas no combate à corrupção e na moralização do desempenho das funções públicas. No entanto, a experiência concreta na aplicação da Lei evidenciou ao longo dos anos algumas distorções na repressão à improbidade. Um problema fundamental foi a banalização de ações de improbidade. Muitos processos foram instaurados sem elementos probatórios consistentes, com a perspectiva de investigação no bojo da fase de instrução. Era usual a ausência de especificação na petição inicial de fatos determinados. Tornou-se usual o pedido de condenação com fundamento indiscriminado nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade. Isso conduzia à eternização dos litígios, usualmente envolvendo disputas políticas (mais do que jurídicas).

Com isso, a lei apresenta um rol de modificações, sendo uma das principais mudanças a consagração do entendimento que já vinha sendo pacificado pelos tribunais acerca da exigência de dolo para configuração do ato de improbidade administrativa, excluindo a modalidade da conduta culposa anteriormente prevista no caput dos artigos 9 e 10 da lei de improbidade. De igual maneira, o rol do artigo 11 passou a ser taxativo, sendo necessária a configuração das ações previstas nos incisos para configuração da improbidade apresentada.

Outra mudança significativa apresentada é a necessidade de observância de normas e princípios já previstos na LINDB (art. 17‑C) e o instituto da prescrição no prazo de 8 anos, com indicação expressa dos casos de suspensão e interrupção (art. 23, §§ 1º e 4º).

Sobre as modificações apresentadas, recentemente o STF5 decidiu que a norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é irretroativa, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes, bem como o novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.

Entre as mudanças também se fez presente a alteração contida no artigo 21, § 4º, da Lei nº 8.429/92, incluído pela Lei nº 14.230/21, a qual passou a integrar a possibilidade de comunicação com todos os fundamentos apresentados pelo artigo 386 do código de processo penal.

Assim, muito embora a tese de comunicação entre as instâncias penais no curso das ações de improbidade, conceito apresentado pelo código penal, a comunicação total, sem qualquer menção ao trânsito em julgado e em todas as hipóteses previstas pelo artigo 386 causou insegurança jurídica frente a sua incompatibilidade com o entendimento jurisprudencial acerca da autonomia entre as instâncias.

De igual modo, a existência do parágrafo citado - agora com eficácia suspensa diante da medida cautelar, é contrário ao próprio art. 21, §3º. Assim, o artigo 21, § 3º, da Lei nº 8.429/92, incluído pela Lei nº 14.230/21, determina que as sentenças civis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa de autoria.

Contrário a este entendimento, o § 4º do mesmo antigo estabelecia que “a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto‑lei nº 3.689, de 3‑10‑1941 Código de Processo Penal”.

Com isso, surgem dúvidas sobre qual entendimento deveria ser aplicado no caso concreto. Ou seja, poderia haver julgamentos utilizando o fundamento previsto no §3º e decisões aplicando o §4º, haja vista que na sentença penal absolutória podem ocorrer fatos distintos da inexistência da conduta ou negativa da autoria e pelo entendimento do §4º deveria produzir efeitos, independentemente da sua fundamentação.

É evidente que a intenção inicial do legislador era ampara-se na interpretação de que a lei de improbidade passou a acolher o princípio do non bis in idem, diante da ocorrência de sentença penal absolutória, independentemente da sua fundamentação, proferida por órgão colegiado, conferindo maior peso à segurança jurídica aos julgamentos proferidos anteriormente. Contudo, passou a trazer instabilidade e possibilidade de julgamentos distintos, pela contradição dos parágrafos citados, ao passo que também passou a ignorar a independência entre a instância penal e outras esferas.

3. INDEPENDÊNCIA ENTRE AS INSTÂNCIAS E SUA COMUNICABILIDADE.

Antes de adentrar o tema da independência entre as instâncias se faz necessário entender que o conceito de autonomia das esferas deriva do conceito constitucional da separação dos poderes. Consagrada pelo art. 2º da Constituição Federal6, a divisão dos poderes tem como base a ideia de que dentro da organização do Estado os poderes são harmônicos e autônomos entre si.

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Segundo Ferreira (2015 p. 67), existe controvérsia acerca da origem da separação dos poderes, sendo que alguns encontram o conceito já na antiguidade e outros somente enxergam o conceito na modernidade. Assim, há quem diga que a ideia surgiu na obra de Aristóteles; outros juristas que o surgimento ocorreu na obra de John Locke, opondo-se aqueles que adotam a ideia de ter sido formulada pela primeira vez por Montesquieu, no Espírito das leis.

Lenza (2022 p. 941) pactua da teoria de que a base surgiu ainda na antiguidade, por Aristóteles:

As primeiras bases teóricas para a “tripartição de Poderes” foram lançadas na Antiguidade grega por Aristóteles, em sua obra Política, em que o pensador vislumbrava a existência de três funções distintas exercidas pelo poder soberano, quais sejam, a função de editar normas gerais a serem observadas por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto (administrando) e a função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da execução das normas gerais nos casos concretos.

Independentemente da evolução e contexto histórico, a independência dos poderes é consagrada pela Constituição Federal, dando origem à criação de leis autônomas que derivam de responsabilizações conjuntas.

Segundo Machado (2019, p. 266), a independência entre as instâncias pode ser compreendida como resultado de um duplo movimento no processo de diferenciação entre as esferas civis e penais no final do século XIX e início do século XX, sendo também justificada pela evolução do direito administrativo com incidência simultânea ao direito penal.

A independência entre as esferas do direito encontra respaldo normativo e se justifica com o surgimento de diversas leis que estabelecem responsabilizações independentes e conjuntas, sem qualquer comunicação entre as decisões ou proposituras das ações.

Desse modo, explica Furtado (2012, p. 827):

Dispõe o artigo 125, in fine, que as sanções penal, civil e administrativa são independentes entre si. Fixa a lei, portanto, que a regra de que a condenação ou a absolvição em uma instância não deve importar em absolvição ou em condenação nas outras instâncias. Fixa-se, ademais, a regra de que as sanções decorrentes das diferentes instâncias, ainda que relacionadas à prática de um só ato, podem ser acumuladas sem que isto caracterize dupla ou tripla punição. A regra, portanto, é a independências das instâncias. O art. 126 da Lei nº 8.112/90 dispõe, todavia, que ‘a responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.

Exemplos dessas leis autônomas são o artigo 935 do código civil, que estipula que a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal, e o já citado artigo 12 da lei de improbidade. De mais a mais, a matéria já foi pacificada pelo SFT7 em diversas oportunidades.

Contudo, essa independência entre as esferas administrativa, civil e penal não é absoluta, sendo relativa no tocante à atuação das respectivas esferas. Assim, há casos de mitigação desse conceito, ocorrendo a comunicabilidade prevista em lei.

Exemplos cabais dessa mitigação são o artigo 935 do CC, que estipula que não se pode mais questionar sobre a existência do fato ou quem seja o seu autor quando estas questões se acharem decididas no crime, e o artigo 65 do CPP, que prevê que faz coisa julgada, no civil, a sentença penal que reconhece estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito.

Desse modo, são diversas as hipóteses de mitigação do princípio da autonomia entre as instâncias diante da ressalva pelo non bis in idem e respeito à coisa julgada, dependendo da matéria pretendida no resultado.

4. A MITIGAÇÃO ENTRE INSTÂNCIA PENAL E OUTRAS ÁREAS AO LONGO DA JURISPRUDÊNCIA.

Ao longo do tempo a jurisprudência já se manifestou no sentido de que as instâncias penal e administrativa são independentes e autônomas, porém podendo ser mitigadas em relação a ceifar a proporcionalidade e razoabilidade sancionatória.

Em entendimento, o Plenário do Supremo Tribunal Federal tem reiterado a independência das instâncias penal e administrativa, afirmando que aquela só repercute nesta quando conclui pela inexistência do fato ou pela negativa de sua autoria. (MMSS 21.708, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 18.05.01, 22.438, rel. Min. Moreira Alves, DJ 06.02.98, 22.477, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 14.11.97, 21 .293, rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 28.11.97). Segurança denegada” (MS nº 23.188/RJ, Relatora a Ministra Ellen Gracie, Tribunal Pleno, J de 19/12/02).

Ainda no julgamento dos MS nº 23.625/DF e MS nº 23.401/DF, a sentença proferida em processo penal poderá servir de prova em processos administrativos apenas se a decisão concluir pela não ocorrência material do fato ou pela negativa de autoria. Exceção ao princípio da independência e autonomia das instâncias administrativa e penal.

No julgamento da Reclamação 41.557/SP26 o Supremo Tribunal Federal julgou pela possibilidade de recebimento da ação de improbidade administrativa sobre os mesmos fatos de uma ação penal trancada diante da ausência de justa causa. Proferido em 15/12/2020 – antes da vigência da Lei 14.230/21 –, o Ministro Gilmar Mendes apresentou entendimento no sentido de que a independência entre as diversas esferas punitivas é relativa, devendo, necessariamente, ser criado espaço de consenso e diálogo conjunto entre as vertentes sancionadoras. No voto, o Ministro ressaltou que a adoção de uma noção de independência mitigada entre as esferas penal e administrativa é uma posição mais acertada diante dos princípios constitucionais reitores do sistema penal, principalmente da proporcionalidade, da subsidiariedade e da necessidade na interpretação da lei de improbidade administrativa.

O que observa é uma alteração pelo entendimento dos tribunais superiores, uma guinada no sentido de que as múltiplas instâncias sancionatórias devem se comunicar e caminhar, conjuntamente, rumo a um único sentido, dando segurança jurídica à aplicação das decisões proferidas na esfera penal.

Como já aventado previamente, o entendimento pela mitigação encontra amplo contexto jurisprudencial, ao passo se conservar a comunicação nos casos de inexistência de fato ou negativa de autoria, entendimento agora previsto no próprio art. 21, §3º da Lei de improbidade, passando o entendimento a ser legal, quando versar pela inexistência do fato e negativa de autoria.

Tecidas tais considerações, passa-se à análise mais detida acerca dos reflexos da sentença penal na ação de improbidade administrativa diante da mitigação imposta pelo 21, §4º da lei de improbidade, objeto distinto do §3º, que inclusive foi tema do julgamento preliminar da ADI 7363.

5. DA AUTONOMIA ENTRE AS INSTÂNCIAS REFERENTE ÀS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA NOVA LIA

De um modo geral, as hipóteses de conexão que excepcionam o princípio da independência das instâncias nunca foram bem delimitadas na legislação, deixando espaço para interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, como efeito da interpretação analógica de outras leis.

Na esfera criminal essa independência sempre foi bem delimitada, uma vez que o artigo 935 CC apresenta a responsabilização civil independentemente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal ou frente às possibilidade previstas nos artigos 658 e 66 do código de processo penal.

Já na lei de improbidade o entendimento sempre partiu de uma posição jurisprudencial, como delimitado em tópico próprio, haja vista que a própria lei em seu artigo 12 prevê a aplicação de sanções independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, se efetivo, e das sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica, inclusive, cumulativamente.

Desse modo, mesmo que a ação de improbidade tenha por fundamento fatos idênticos aos já analisados em outras instâncias, não há que se falar em bis in idem. Portanto, fica evidente a intenção do legislador de que um fato pode produzir efeito e sanção previstos nas esferas penal, civil e administrativa, sem que ocorra então o chamado bis in idem.

Contudo, mesmo diante dessa autonomia devidamente prevista e pacificada pelos tribunais, referente à sentença penal absolutória, a Lei de improbidade traz em seu artigo 21 entendimentos distintos acerca das sentenças penais, sendo que em seu §3º a comunicação ocorre somente quando ocorrer a negativa de autoria ou inexistência da conduta. Aqui, o legislador foi categórico ao determinar que as sentenças somente produzirão efeitos imediatos diante de fundamentos específicos, não necessitando do trânsito em julgado ou confirmação por órgão colegiado.

O grande debate doutrinário na aplicação da lei surge no texto previsto no §4º pelo entendimento de que a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no artigo 386 do código de processo penal.

Primeiramente, nota-se que a interpretação do §4º é contrária à interpretação dada pelo §3º, sendo que o primeiro versa sobre comunicação “com todos os fundamentos previstos no artigo 386 do código de processo penal” e o segundo somente em comunicação de efeitos em casos específicos, o que impede a interpretação de forma conjunta de ambos os incisos. Surge, então, o principal questionamento – que deverá ser analisado pelo judiciário - sobre a aplicação conjunta dos dois parágrafos, uma vez que poderá ocorrer o entendimento jurisprudencial de aplicação dos efeitos somente pela negativa e autoria, bem como o entendimento da aplicação, independentemente do fundamento previsto no 386 do código de processo penal.

Em primeiro caso, faz-se necessário recordar que o artigo 3869 do código de processo penal prevê múltiplas possibilidades para a absolvição, sendo que, o §4º determina a impossibilidade de tramitação da ação de improbidade independentemente da fundamentação, inclusive, nas hipóteses de inexistência de prova suficiente para a condenação.

Diante da ampla possibilidade, a nota técnica do Ministério Público apresenta que o parágrafo ofende o princípio da proporcionalidade e do devido processo legal:10

Ofenderá o princípio da proporcionalidade e do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV da CF), e à autonomia do sistema de improbidade administrativa (artigo 37, §4º da CF), interpretação que conduza a comunicabilidade automática de sentença penal ou acórdão criminal absolutório, de que trata o artigo 21, §4º da LIA, fundada no artigo 386, inciso VII do CPP (não existir prova suficiente para condenação criminal), no âmbito do sistema de improbidade administrativa, na medida em que referida absolvição de réus somente se legitima à luz da aplicação de normas penais, materiais e processuais, inseridas no Direito Penal e no Direito Processual Penal, fundadas no princípio in dubio pro reo, na tutela do jus libertatis, o que não se reproduz na improbidade administrativa, no terreno do Direito Administrativo Sancionador, preordenada a tutela da probidade na organização do Estado (interesse público), à luz do artigo 37, §4º da CF, e do próprio artigo 1º, caput e seu §4º da LIA.

Discordando do entendimento da nota técnica exarada, a absolvição do acusado em quaisquer instâncias não pode ser ignorada no julgamento da ação de improbidade diante da evidente unicidade de um sistema jurisdicional. Isto se explica porque as esferas são autônomas e harmônicas entre si.

Segundo o entendimento de Osório11, com a ampliação o legislador quis evitar que, em razão dos mesmos fatos e mesmas provas, uma pessoa possa ser absolvida numa esfera e condenada noutra instância, denotando atuação de segurança das decisões proferidas na medida em que evitaria sentenças contraditórias e garantiria ao acusado – em caso de absolvição penal – a comunicação dos fundamentos absolutórios ao juízo da ação de improbidade.

Assim, as disposições do art. 21, § 4º, da LIA decorrem de um compromisso político do sistema punitivo com os valores da coerência e da unidade do ordenamento jurídico, resguardando vetores funcionais suficientes para estancar atos ilícitos dentro destes esquemas normativos, à luz dos postulados da segurança jurídica e da racionalidade estatal.

Com isso, a visão do legislador é trazer segurança jurídicas às sentenças prolatadas na esfera penal; contudo, resta assegurado o livre convencimento do juiz, que, se assim discordar, poderá fundamentar pelo prosseguimento da ação. O que se tutela com a alteração é o respeito à coisa julgada.

Nesse sentido, segundo Justen Filho12, se a decisão judicial concluir pela inexistência de ilicitude ou de autoria, cria-se impedimento insuperável ao prosseguimento da ação de improbidade. Assim se passa em virtude do efeito próprio da coisa julgada, que implica a vedação à que a mesma questão seja objeto de nova apreciação pelo Poder Judiciário, enquanto a sentença absolutória fundada em insuficiência de provas produz presunção da ausência dos requisitos exigidos para a punição do agente por meio da improbidade. Desse modo, diante da necessidade de coerência entre as decisões proferidas pelas diversas instâncias estatais se faz necessária a comunicação entre elas. Contudo, justifica o autor que há possibilidade de o juízo que julgar a ação de improbidade, pelo livre convencimento, discorrer de uma interpretação distinta, desde que devidamente justificada.

De igual modo, também será fundamentado pelo livre convencimento do juiz quando o fundamento da sentença penal não interferir no curso da ação de improbidade ou para configurar o ato improbo. A explicação para isso é que dentro do vasto ordenamento jurídico e pluralidade das ações pode ocorrer a possibilidade de a conduta ser considerada improba, e não considerada crime.

Cita-se, por exemplo, a falta de comprovação de danos ao erário e enriquecimento ilícito do agente para configuração dos atos de improbidade previstos no artigo 11 da Lei de improbidade ou a mera absolvição pela atipicidade de conduta que absolve o agente pelo princípio da bagatela, haja vista que tal princípio não atinge a Administração Pública.

A norma aplicada não traz considerações se a comunicação será suficiente diante do fundamento apresentado, uma vez que, mesmo com a comunicação, os efeitos seriam insuficientes para cessar a configuração do ato improbo.

Com isso, diante do vasto entendimento contraditório da alteração trazida, faz-se necessário que o poder judiciário, no julgamento da medida cautelar, ainda que em consignação sumária, fizesse uma análise detalhada da aplicação dos efeitos do §4º frente à fundamentação utilizada pelo juízo para absolvição diante do princípio da proporcionalidade.

Desse modo, em análise pelo STF para concessão da medida liminar, a independência de instâncias exige tratamentos sancionatórios diferenciados entre os atos ilícitos em geral (civis, penais e político-administrativos) e os atos de improbidade administrativa. Nada obstante o reconhecimento dessa “independência mitigada” (Rcl 41.557, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 10/03/2021), a comunicabilidade ampla pretendida pela norma questionada acaba por corroer a própria lógica constitucional da autonomia das instâncias, o que indica, ao menos em sede de cognição sumária, a necessidade do provimento cautelar. Diante de todo o exposto, presentes os requisitos para concessão de medida, suspendeu-se a eficácia do artigo 21, §4º da Lei 8.429/1992, incluído pela Lei 14.230/2021.

Dessa forma, o entendimento jurisprudencial exarado atualmente é pela suspensão do parágrafo frente a sua incompatibilidade com os entendimentos jurisprudenciais apresentados anteriormente, sendo acatada a impossibilidade de ampliação das comunicações, além das já previstas no §3º diante da inexistência do fato e negativa de autoria na ação penal (art. 386, l e IV, do CPP).

Em relação ao segundo requisito apresentado pelo §4º referente a “decisão colegiada” e falta de comprovação do trânsito em julgado da decisão, a regra não foi objeto detalhado no julgamento sumário; contudo, ainda que venha a ter um entendimento diferente da liminar concedida e o parágrafo retorne a ter eficácia, deverá reportar ao entendimento de que o acórdão penal condenatório ainda não transitado em julgado não vincula a decisão na instância administrativa, que pode decidir diferentemente do juízo criminal, enquanto inexistir coisa julgada.

6. CONCLUSÃO

O presente trabalhou partiu da análise das modificações apresentadas pela lei de improbidade referente ao artigo 21, §4º frente ao princípio da independência entre as instâncias. Surge da ideia de até que ponto o princípio pode sofrer mitigação e a ideia do legislador em realizar as modificações apresentadas.

Diante da alteração fica evidente que a nova mitigação da independência entre instancias foi além do que dispõem os artigos 935 do Código Civil de 2002 e 126 da Lei nº 8.112/90 e artigos 66 e 67, III, do Código de Processo Penal, sendo aplicável, inclusive na ocorrência de insuficiência de provas, o que deverá conduzir a uma revisão do posicionamento do STJ a respeito da correta aplicação das modificações apresentadas, haja vista as possibilidades de interpretações distintas pelos julgadores.

Com o trabalho conclui-se que o legislador foi omisso quanto à possibilidade e pluralidade de atos ímprobos existentes no ordenamento jurídico, que podem, de um modo geral, constituir crime ou não, portanto, resta um vácuo legislativo referente à correta interpretação do artigo mencionado.

Percebeu-se que o intuito do legislador com a alteração foi a primazia da esfera penal e o resguardo pela coisa julgada, quando se tratar do mesmo conjunto fático-probatório, com o intuito de não aplicação de sanções divergentes e conflitantes. A mitigação da independência é importante para que o sistema jurídico se atualize, evitando decisões repetidas, de interpretações equivocadas, preservando o princípio do bis in idem.

A discussão do presente trabalho resta relevante ao passo que o recente julgamento preliminar da ADI 7236/22 suspendeu a eficácia do artigo 21, §4º da lei de improbidade administrativa diante da afronta à independência entre as instâncias.

Dessa forma, restou assentado que com o entendimento sumário que acompanha os entendimentos jurisprudenciais apresentados até o momento, as sentenças penais somente poderão surtir efeito quando julgarem pela negativa de autoria ou inexistência dos fatos, entendimento apresentado pelo artigo 21, §3º que permanece com a eficácia plena.

Sobre os autores
Tarsis Barreto Oliveira

Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.

Aryanne Coelho Salgado

Advogada, acadêmica do curso de pós-graduação em Direito Administrativo pela Universidade Federal do Tocantins, 2022.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Tarsis Barreto ; SALGADO, Aryanne Coelho. Os efeitos da absolvição criminal nas ações de improbidade administrativa e a independência entre as instâncias.: Uma análise sobre o artigo 21, §4º, da Lei nº 14.230/21. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7167, 14 fev. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102470. Acesso em: 22 dez. 2024.

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