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Inversão do ônus da prova em matéria ambiental

08/08/2007 às 00:00
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Em regra, ações judiciais que visam apurar responsabilidade civil por danos ao meio ambiente demandam realização de prova pericial, cujo corpo técnico, invariavelmente, compreende profissionais de várias áreas, tais como: biologia, agronomia, geografia, geologia etc. Contudo, essas ações, quase sempre promovidas pelo Ministério Público, por organizações não governamentais e até pelo Poder Público, costumam ter seu trâmite suspenso por ocasião da prova pericial.

É que os autores dessas demandas não estão obrigados por lei a promover a "antecipação dos honorários periciais", conforme arts. 27, do CPC1, e 18, da Lei da Ação Civil Pública2. Paralelamente, os réus, por opção estratégica e sob o argumento de que a prova dos "danos" compete ao(s) autor(es) (CPC, art. 333, I), deixam de requerer tais provas. Instaura-se, assim, nessa fase processual, uma busca, muitas vezes sem sucesso, para se localizar profissionais habilitados aos trabalhos técnicos e que aceitem receber seus honorários, bem como o reembolso das despesas necessárias à prova, somente ao final pelo vencido.

Essa circunstância vem tornando letra morta inúmeros dispositivos legais que versam sobre matéria ambiental, em especial o disposto no art. 225, caput, da CF/88: "Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

Impõe-se, portanto, proceder a uma releitura do tema à luz dos valores e regras constitucionais, com também em sintonia com os princípios que regem o Direito Ambiental. Cumpre ter em mente que a responsabilidade civil ambiental se reveste de nítido interesse público, consistente na conservação e recuperação dos bens ambientais degradados; volta-se, inclusive, à mudança do modus operandi que conduziu a prováveis situações de risco ou de dano3, e a atuar como instrumento do princípio do desenvolvimento sustentável. Por esses motivos, a tutela ambiental, direito difuso por excelência e de conteúdo intergeracional, deve ser interpretado e aplicado com base em sua relevância e magnitude, não se equiparando, nem à distância, com a tutela de direitos individuais, em que, por exemplo, visa-se ao mero ressarcimento de danos patrimoniais.

É justamente por esta importância, por exemplo, que o legislador previu a responsabilidade objetiva em casos de danos ao meio ambiente, dispensando o elemento culpa para se impor comando indenizatório (Lei 6.938/81, art. 14, § 1º). Além disso, percebeu-se que o sistema tradicional, orientado pela responsabilidade subjetiva, afigurava-se insuficiente para atender aos reclames e peculiaridades da matéria. Sim, porque se sobrecarregava, por demais, o autor da ação, que devia, dentre outros aspectos, provar a culpa do agente degradador, o que, na prática, não era tarefa difícil concretização, conduzindo à improcedência dos pedidos, em detrimento do "meio ambiente".

Nesse contexto, com o escopo de se restabelecer a operosidade do sistema, ora comprometido por circunstâncias técnico-processuais, deve-se recorrer, por analogia, ao art. 6º, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor4, que prevê a possibilidade de inversão do ônus da prova pelo juiz, desde que presentes a verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência do autor. Por esse prisma, teria o juiz o "poder-dever" de, no caso concreto, constatada a presença dos pressupostos legais retro, inverter o ônus da prova, não em prol do autor, mas da sociedade que tem o direito de saber se há, ou não, danos ao meio ambiente, bem como ver reparada, compensada e/ou indenizada possível prática lesiva ao meio ambiente.

O emprego, por analogia, do art. 6º, VIII, do CDC, vem ao encontro a uma série de princípios inerentes ao Direito Ambiental, dentre os quais os princípios da supremacia do bem ambiental, do poluidor-pagador, da prevenção, da precaução, do desenvolvimento sustentável, da função social e ambiental da propriedade.

Ademais, de nada adianta se ter uma legislação ambiental avançada por um lado, prevendo responsabilidade civil objetiva, passível de ser objeto de ações coletivas, repleta de sanções pesadas, mas manietada por aspectos processuais de menor importância, incompatíveis e descontextualizados com a relevância do bem ambiental.

Sobre a aplicabilidade da regra de inversão do ônus da prova além das relações de consumo, está o pensamento de Luiz Guilherme Marinoni5:

"O fato de o art. 6º, VIII, do CDC, afirmar expressamente que o consumidor tem direito a inversão do ônus da prova não significa que o juiz não possa assim proceder diante de outras situações de direito material. (...) A idéia de que somente as relações de consumo reclamam a inversão do ônus da prova não tem sustentação. (...) Basta pensar nas chamadas atividades perigosas ou na responsabilidade pelo perigo e nos casos em que a responsabilidade se relaciona com a violação de deveres legais, quando o juiz não pode aplicar a regra do ônus da prova como se estivesse frente a um caso "comum", exigindo que o autor prove a causalidade entre a atividade e o dano e entre a violação do dever e o dano sofrido.

(...) Não existe motivo para supor que a inversão do ônus da prova somente é viável quando prevista em lei. Aliás, a própria norma contida no art. 333 não precisaria estar expressamente prevista, pois decorre do bom senso ou do interesse na aplicação da norma de direito material..."

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A par disso, cabe ressaltar que a inversão do ônus da prova em matéria ambiental, a exemplo do que ocorre nas relações de consumo, não tem o condão de compelir uma das partes ao custeio de eventual prova pericial, sobretudo se postulada pela parte adversa. Apenas imputa a determinada parte o ônus probatório em relação a determinado aspecto, sob pena de responder pelas conseqüências processuais de sua inércia6. Dessa forma, como não há hierarquia entre as provas, poderá referida parte desincumbir-se de seu ônus por meio de todas as provas em direito admitidas (CPC, art. 332), seja documental, testemunhal, pareceres técnicos etc., como também a pericial, cabendo ao magistrado, por ocasião do julgamento, proceder à devida valoração (CPC, art. 131).

Com isso, crê-se, atender-se-á aos ditames constitucionais, legais e principiológicos que regem o Direito Ambiental, restabelecendo-se o equilíbrio na distribuição dos ônus probatórios, tendo em mira, sempre, a tutela do bem ambiental eventualmente comprometida em certas circunstâncias, de modo a se expedir, se for o caso, comando reparatório, compensatório e/ou indenizatório em favor do meio ambiente e da sociedade em geral, presente e futura.


Notas

01 Art. 27. As despesas dos atos processuais, efetuados a requerimento do Ministério Público ou da Fazenda Pública, serão pagas a final pelo vencido.

2 Lei 7.437/85 – Art. 18. Nas ações de que trata esta Lei não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais.

3 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. STEIGLEDER, Annelise Monteiro e CAPPELLI, Sílvia. Direito Ambiental. 4ª Ed. Verbo Jurídico: Porto Alegre. 2007, p. 136.

3 Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: (...) VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do Juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

4 MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo as peculiaridades do caso concreto. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1168, 12 set. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8845>. Acesso em 05 ago. 2007

5 Nesse sentido, a jurisprudência do STJ: "...Na linha da jurisprudência da Corte, a inversão do ônus da prova, deferida nos termos do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, não significa transferir para a parte ré o ônus do pagamento dos honorários do perito, embora deva arcar com as conseqüências de sua não-produção (STJ - REsp 651632/BA – 3ª Turma – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito – julg. Em 23/03/2007)..

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Sobre o autor
José Ricardo Alvarez Vianna

Juiz de Direito no Paraná. Doutor pela Universidade Clássica de Lisboa. Mestre pela UEL. Professor da Escola da Magistratura do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANNA, José Ricardo Alvarez. Inversão do ônus da prova em matéria ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1498, 8 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10250. Acesso em: 2 nov. 2024.

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