VI. Aportes Finais
Numa palavra final: essa "redução" do direito ao plano da validade, a confundir a perspectiva jurisdicional e a legislativa, não é novidade, valendo referir o modo como isto é visto pela teoria da argumentação jurídica proposta por Robert Alexy. Veja-se, nesse sentido, a descabida crítica que Alexy [20] faz à distinção de Klaus Günther faz entre "discursos de fundamentação e discursos de aplicação", na qual fica claro um deslocamento da esfera de tensão dessa distinção em direção aos discursos de validade ("the application of norms, too, can be considered a justification of norm; in its logical form it only differs from is generally called "justification os norms" insofar, as its object of is not na universal but an individual norm"). Por isso a argumentação é hispostasiada, isto é, tudo se resume a fórmulas matemáticas e a cálculos de custo-benefício, que, por ter pretensão corretiva, acaba se substituindo ao próprio direito. Com efeito, Alexy resume essa tensão à validade do Direito, buscando uma espécie de discurso com validade universal. Esse discurso de validade, ao que indica, conteria a "idéia" que daria uma validade universalizante das diversas situações aplicativas (norma universal, nas palavras de Alexy).
No Brasil, essa tese – a de Alexy e a do Supremo Tribunal Federal na Rcl n.º 4335-5 - pode dar (ainda mais) respaldo aos defensores das súmulas vinculantes e a distorções no seu processo inadequado de aplicação. De fato, ao se constituírem em discursos de validade construídos para resolver problemas futuros que nela se "subsumam" (não parece haver dúvida a esse respeito, porque a súmula busca impedir a construção de discursos de aplicação - Anwendugsdiskurs), as súmulas vinculantes parecem encaixar-se na tese de que tudo se resume a discursos de validade, uma vez que nos discursos de justificação (validade) já haveria a referência a muitas situações construídas e experenciadas. [21]
Não se pode deixar de lembrar que, para os discursos de justificação – e essa tese é subscrita por Alexy -, a questão é saber qual norma universal é correta. Mas do fato de que essas duas questões (aplicação e justificação) devem ser distinguidas, não implica a existência de dois tipos de discurso essencialmente diferentes; para ele, é possível que essas duas questões iniciem duas operações diferentes dentro de uma mesma forma de discurso e, então, leve a duas variações de uma mesma forma de discurso.
A pergunta que fica é: como saber em que circunstâncias uma norma "universal" é correta ou "qual" das normas é correta? Afinal, correção normativa no Direito é antes de tudo uma questão legislativo-democrática, assegurados os direitos fundamentais garantidores da eqüiprimordialidade das autonomias pública e privadas (Habermas). Além isso, o problema é saber se é suficiente descobrir que - e quando - uma norma universal é correta, uma vez que uma norma pode ser correta, mas inaplicável ao caso concreto. Talvez o problema esteja na exigência de Alexy, de que um juízo em fase de uma situação concreta deve se justificar também em razão da sua universalidade, ou seja, ele deve ser adequado a toda e qualquer situação que àquela se assemelhe. Por aqui – e parece que a questão relacionada ao destino a ser dado ao controle difuso está inexoravelmente ligada a essa querela -, parece que a tese da hipostasiação da discussão acerca da validade toma corpo a cada dia. Com isso, soçobra a realidade.
Afinal, cabe ao Supremo Tribunal Federal "corrigir" a Constituição? A resposta é não. Isso faria dele um poder constituinte permanente e ilegítimo. Afinal, quais seriam os critérios de correção, uma suposta "ordem concreta de valores", um "Direito Natural" no estilo de Radbruch?...
Agregue-se a essa relevante questão hermenêutica a seguinte preocupação: decisões do Supremo Tribunal Federal, como a da Reclamação sob comento, podem incorrer no equívoco de confundir as tarefas constituídas daquelas constituintes, o que traduziria, portanto, uma séria inversão dos pressupostos da teoria da democracia moderna a que se filia a Constituição da República. Volta-se à discussão acerca do direito enquanto paradigma, no seguinte ponto: qual é o papel do poder judiciário (ou da justiça constitucional?) É o de elaborar discursos de validade? É o de construir discursos de validade que "contenham" de antemão todas as hipóteses de aplicação? Mas, se assim fosse, a pergunta que sempre fica(ria) é: quais as condições de possibilidade que tem esse poder de Estado de ultrapassar esse limite tensionado e tensionante entre validade e aplicação? A discussão acerca da validade prescinde da aplicação?
Tais questões, ao que tudo indica, devem preocupar sobremodo a comunidade jurídica. E não provocar – como está a parecer – um silêncio eloquente!
Ainda, finalmente, uma observação: as sentenças de um tribunal são simbólicas e suas conseqüências o são quase que integralmente, até o gesto do carrasco que, real por excelência, é imediatamente também simbólico em outro nível, como bem alerta Castoriadis. Ou seja, um sistema de direito, que se constrói a partir de doutrina, jurisprudência, legislação, etc, existe socialmente enquanto sistema simbólico. As coisas não se esgotam no simbólico (os atos reais, individuais ou coletivos, o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade, não são, nem sempre, nem diretamente, símbolos); mas elas só podem existir no simbólico e são impossíveis fora de um simbólico. [22] Assim, as conseqüências de determinados gestos, atos, decisões, são mais graves no aspecto do seu significado simbólico do que no seu aspecto "real". É possível, desse modo, apreender a dimensão da crise que atravessa o direito a partir das representações simbólicas. Dito de outro modo: como no gesto do carrasco, talvez o mais grave seja o que este representa simbolicamente. Nessa linha, a decisão do Supremo Tribunal Federal, por mais que esteja imbuída de um sentido pragmático e sustentada na melhor ciência jurídica, pode (e, certamente assim será) representar uma afirmação do imaginário jurídico que justamente levou àquilo que hoje é combatido: o excesso de recursos e a multiplicação das demandas. Se o Supremo Tribunal Federal pode fazer mutação constitucional, em breve essa "mutação" começará a gerar – como se já não existissem à saciedade [23] - os mais diversos frutos de cariz discricionário (portanto, positivista, no sentido em que Dworkin critica as teses de Hart). Exatamente porque no Brasil cada um interpreta como quer, decide como quer e recorre como quer (e isso parece recorrente na cotidianidade dos fóruns e tribunais da República), é que faz com que cresçam dia-a-dia as teses instrumentalistas do processo, como que a mostrar, a todo instante, que as teses de Oscar Von Büllow não foram (ainda) superadas. A solução tem sido essa: corte-se o acesso à justiça. Sob pretexto de agilizarmos a prestação jurisdicional, criamos mecanismos para impedir o processamento de recursos. E quem perde com isso é a cidadania que vê assim negada a jurisdição.
Notas
01 Até a publicação deste texto, o julgamento está no seguinte ponto: "Após o voto de vista do Senhor Ministro Eros Grau, que julgava procedente a reclamação, acompanhando o Relator; do voto do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence, julgando-a improcedente, mas concedendo habeas corpus de ofício para que o juiz examine os demais requisitos para deferimento da progressão, e do voto do Senhor Ministro Joaquim Barbosa, que não conhecia da reclamação, mas igualmente concedia o habeas corpus, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Ricardo Lewandowski. Ausentes, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello e a Senhora Ministra Cármen Lúcia. Presidência da Senhora Ministra Ellen Gracie. Plenário, 19.04.2007".
02No original: "5. Eine Partei ist nicht schon dann verfassungswidrig, wenn sie die obersten Prinzipien einer freiheitlichen demokratischen Grundordnung (vgl. BverfGE 2, 1[12f.]) nicht anerkenn; es muß vielmehr aktiv, kämpferische agressive Haltung gegenüber der bestehenden Ordnung hinzukommen" (in: Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, hrg. von den Mitgliedern des Bundesverfassungsgerichts, 5. Band, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck). Tübingen, 1956, p. 85).
03Não vamos discutir, aqui, o problema da relação entre o papel do Senado (art. 52,X,CF) e a questão da "repercussão geral" introduzida pela EC 45/04, regulamentada no art. 543-B do CPC. Observe-se a complexidade do problema: além do poder que o Supremo Tribunal Federal terá a partir da equiparação do controle difuso ao controle concentrado, tem-se que aquela Corte pode, agora, determinar a interpretação de uma norma constitucional e impô-la a todos os processos em sede de controle difuso. Podem ser anuladas, inclusive, as decisões já proferidas pelas diversas instâncias do Poder Judiciário. Portanto, como bem alerta Fernando Faccury SCAFF (Novas Dimensões do Controle de Constitucionalidade no Brasil: Prevalência do Concentrado e Ocaso do Difuso. In: Revista Dialética do Direito Processual n.50, São Paulo, 2007, pp. 20 e segs), isto é mais do que uma súmula vinculante: é uma decisão única, tomada por seis ministros (maioria absoluta), que pode desfazer as decisões adotadas pelos Tribunais de todo o País. A exigência de quorum qualificado (oito votos) é apenas para o juízo de admissibilidade e não para a votação do mérito. É um poder jamais visto no Brasil nas mãos do STF" (id. ib.).
04O que não significa dizer em concreto, quando direitos subjetivos não estão em questão, ou seja, no sentido esse em que o termo é comumente emprestado por doutrina e jurisprudência do controle da constitucionalidade.
05 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, Forense, 2ª ed., 2004, pp. 479 e ss.
06 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Aplicação do Direito: os limites da modulação dos efeitos em controle difuso de constitucionalidade - O caso dos crimes hediondos. Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2006, pp. 115 e ss.
07 STRECK, Hermenêutica e Aplicação, op.cit.
08 STRECK, Hermenêutica e Aplicação, op.cit.
09 Cf. CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed. Coimbra, Almedina, 2002, p. 950.
10 Cf. MIRANDA, Jorge. Manuel de Direito Constitucional II. Coimbra, Copimbra Editora, 1996, pp. 265 e segs.
11Ver, nesse sentido, MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade. Lisboa, Universidade Católica, 1999, p. 836 e 837, referindo a doutrina de: Nunes de Almeida, A justiça constitucional no quadro das funções estaduais, nomeadamente espécies, conteúdo e efeitos das decisões sobre a constitucionalidade de normas jurídicas. In: Justiça Constitucional e espécies, conteúdo e efeitos das decisões sobre a constitucionalidade das normas. Lisboa: Tribunal Constitucional, 1987, p. 133; TELES, Miguel Galvão. A concentração da competência para o conhecimento jurisdicional da inconstitucionalidade das leis. In: Revista O Direito. Lisboa, 1971, p.209; ALMEIDA, J.M. Ferreira de. A justiça constitucional no quadro das funções do Estado, op. cit., p.72; ENTERRIA, Eduardo Garcia de. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid, Tecnos, 1982, p. 141 e 142; ENGELHARDT, Dieter. Das richterliche Prüfungsrecht im modernen Verfassungsstaat. In: Jör, 1959, p. 136 e RUGGERI, Antonio. Storia di un "falso" – L''efficacia inter partes delle sentenze di regetto della Corte Constituzionalle. Milano, 1990, p. 41 e segs; STRECK, Lenio Luiz, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, op.cit.
12Cfe. SIMON, Helmut. La jurisdicción Constitucional. In: Benda, Maihofer, Vogel, Hesse, Heide. Manual de Derecho Constitucional. 2ª ed. Madrid, Marcial Pons, 2001, p. 843.
13 MENDES, Gilmar Ferreira. "A eficácia das decisões de inconstitucionalidade – 15 anos de experiência" in: SAMPAIO, José Adércio Leite. !5 anos de Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.207.
14 JACOBSON, Artur J. e SCHLINK, Bernhard. Weimar: A Jurisprudence of crisis (Berkeley: University of Califórnia, 2000, p. 46; pp. 54-57.
15 De todo modo, lembremos que Hsü Dau Lin escreveu o seu texto no contexto da República de Weimar, havendo todo um debate sob a Lei Fundamental, por exemplo, com Konrad Hesse e Böckenförde.
16 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. Belo Horizonte: del Rey, 2002, p.104-105. GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional Comparado. Madrid: Alianza, 1993, p. 137-138. VERDU, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político. Madrid: Tecnos, 1984, v. 4, p. 179-180.
17 Sabe-se que na época em que foram escritas as obras de Lin e Smend, não havia Tribunais Constitucionais nos moldes construídos posteriormente. A tese da mutação não significa que não tenha sido dado valor fundamental às práticas políticas no parlamento ou no governo. A conseqüência das teses "mutacionistas" em tempos de "cortes constitucionais" poderia ser diferente.
18CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: Uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. 2.ª ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006. Também CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006.
19 No fundo, toda (ess)a discussão é similar à pretensão de universalização das súmulas vinculantes; ou seja, as súmulas vinculantes podem ser entendidas como uma hipostasiação de discursos de justificação, isto é, o pólo de tensão passa a estar somente no plano da validade do discurso jurídico.
20Cf. ALEXY, Robert. Justification and Application of Norms. In: Ratio Juris, vol. 6, no. 2, jul 1993.
21Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 2ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007.
22 Cf. CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p.142. Também STRECK, Verdade e Consenso, op.cit., onde é feita uma crítica às conseqüências de decisões que extrapolam os limites semânticos dos textos jurídicos.
23Por todos, veja a "mutação constitucional" feita recentemente pelo STJ no art. 514 do Código de Processo Penal. Com efeito, considerando ultrapassada a garantia da defesa prévia de quinze dias que o CPP concedia ao funcionário público quando processado, o STJ editou a Súmula 330, alterando, não a norma do art. 514, mas o texto...!