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Divórcio liminar no exercício de um direito potestativo:

possibilidade e negacionismo

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22/02/2023 às 18:26

Resumo:


  • A Emenda Constitucional nº 66/2010 simplificou o divórcio no Brasil, tornando-o um direito potestativo, independente de prazos ou anuência do cônjuge, e promovendo a autonomia da vontade e a busca pela felicidade.

  • Há um debate jurídico sobre a possibilidade de concessão liminar do divórcio, com argumentos favoráveis baseados na tutela da evidência e na celeridade processual, enquanto os contrários enfatizam a necessidade do contraditório e a ausência de previsão legal para tal medida.

  • A decisão sobre a concessão do divórcio liminar varia conforme o caso concreto, devendo o juiz equilibrar os princípios do devido processo legal e do contraditório com a autonomia da vontade e a dignidade da pessoa humana.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Diante do novo status constitucional conferido ao fim da conjugalidade, instituído pela EC n. 66/2010, ainda há necessidade do preenchimento de requisitos subjetivos, objetivos ou a espera do término da instrução processual para fins de alteração do estado civil?

RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de abordar o instituto do divórcio, sua natureza potestativa conferida a partir da Emenda constitucional n. 66/2010 e sua concessão liminar, através de posicionamentos favoráveis e contrários, respaldados na autonomia da vontade, valorização do afeto e felicidade.

PALAVRAS-CHAVE: Autonomia da Vontade. Divórcio Liminar. Direito Potestativo. Felicidade.


1. INTRODUÇÃO

1.1. Direito Civil à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (Direito Civil Constitucional)

A partir da vigência do Código Civil de 2002 o viés patrimonialista adotado pelo ordenamento civil de 1916 deixou de ser o cerne das relações interpessoais. O indivíduo com suas questões existenciais passou a ser o foco das relações humanas, privilegiando a pessoa em detrimento do patrimônio. Essa alteração de parâmetro é reflexo das diretrizes traçadas pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988. Assim,

Não se pode mais reconhecer ao Código Civil o valor de direito comum. É tempo de se reconhecer que a posição ocupada pelos princípios gerais de direito passou a ser preenchida pelas normas constitucionais, notadamente, pelos direitos fundamentais. (...) acima do direito codificado pairam os conceitos criadores de uma superlegalidade a que tende irresistivelmente o desejo universal de uma convivência de harmonia e paz. (PEREIRA, 2008,p.23-24)

Nesse contexto, cabe ressaltar a relevância dos princípios e direitos fundamentais constitucionais e de sua influência em todo ordenamento jurídico pátrio, conforme declara Marinoni (1971, apud ALEXY, 2006, p.44):

Ao dizer que a lei encontra limite e contorno nos princípios constitucionais, admite-se que ela deixa de ter apenas uma legitimação formal, ficando amarrada substancialmente aos direitos positivados na Constituição. A lei não vale mais por si, porém depende da sua adequação aos direitos fundamentais. Se antes era possível dizer que os direitos fundamentais eram circunscritos à lei, torna-se exato afirmar que as leis devem estar em conformidade com os direitos fundamentais. (grifo nosso)

Corroborando com essa sistemática o Supremo Tribunal Federal reconheceu a aplicação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana às relações familiares, nos termos da CRFB/88, reconhecendo também implicitamente o direito de ser feliz, a saber:

(...) A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento normativo para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da felicidade. A dignidade humana compreende o ser humano como um ser intelectual e moral, capaz de determinar-se e desenvolver-se em liberdade, de modo que a eleição individual dos próprios objetivos de vida tem preferência absoluta em relação a eventuais formulações legais definidoras de modelos preconcebidos, destinados a resultados eleitos a priori pelo legislador. Jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão (BVerfGE 45, 187). A superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário do sobreprincípio da dignidade humana. O direito à busca da felicidade, implícito ao art. 1º, III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares. (...) O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade protege o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei.(,,.) (grifo nosso) (STF,Recurso Extraordinário n. 898.060/SC)

Essa visão contemporânea resulta no fenômeno da constitucionalização do Direito Civil e do reconhecimento explícito do Princípio da Supremacia da Constituição. Conforme esclarece PEREIRA (2008):

Na hermenêutica do novo Código Civil destacam-se hoje os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, os quais se impõem às relações interprivadas, aos interesses particulares, de modo a fazer prevalecer uma verdadeira “constitucionalização” do Direito Privado. (p.23)

Sendo assim, o direito das famílias também sofre influência direta e irrestrita das normas constitucionais. Relações patriarcais, discriminatórias e rígidas previstas no passado não se encaixam em uma sociedade pluralizada, democrática, livre e globalizada, fundamentada na afetividade das relações familiares, autonomia da vontade e não intervenção estatal na vida privada.

Ainda que tenha o Estado o dever de regular as relações das pessoas, não pode deixar de respeitar o direito à liberdade e garantir o direito à vida, não só a vida como mero substantivo, mas a vida de forma adjetivada: vida digna, vida feliz. A norma escrita não tem o dom de aprisionar e conter os desejos, as angústias, as emoções, as realidades e as inquietações do ser humano. Pereira (2007, p.13 apud DIAS, 2010 p. 25) (grifo nosso).ˆ

Diante dessa integração constitucional no ordenamento civil vigente e de seu relevante progresso no âmbito das relações privadas, sobretudo nas temáticas que versam sobre família, o presente artigo tem o objetivo de abordar uma das questões mais debatidas nos últimos tempos: o instituto do divórcio liminar a partir da Emenda Constitucional n. 66/2010. Essa análise não possui a intenção de esgotar o tema, devido sua ampla abrangência e complexidade, mas trazer apontamentos embasados em doutrinas, artigos, jurisprudências com posicionamentos favoráveis e contrários a respeito de sua concessão.

1.2. Evolução histórica do divórcio no Brasil

Historicamente a manutenção do vínculo conjugal serviu de objeto de consolidação das relações sociais. Relações firmadas à margem do matrimônio contavam com severa repressão social e forte reprimenda legal. O Código Civil de 1916 manteve a ideologia sacralizada do casamento, prevendo o desquite como única possibilidade de finalização do matrimônio mantendo, porém, sua indissolubilidade. (DIAS, 2010)

Os recorrentes conflitos trazidos ao judiciário e a mudança de padrão no comportamento social resultaram na alteração do texto constitucional da época, por intermédio da Emenda Constitucional (EC) n. 9/77, de iniciativa do Senado Federal e autoria do Senador Nelson Carneiro (MDB-RJ). A partir de então, foi introduzida a dissolução do vínculo conjugal no ordenamento jurídico pátrio, que resultou no fim da “(...)indignidade social, o que só deixava para aqueles que foram infelizes no casamento duas inaceitáveis opções: a frustração da solidão ou a pecha do concubinato (...)”, ( Lígia Bastos Arena -RJ) (SENADO FEDERAL, 2017). Como fruto desse avanço, foi instituída a lei do Divórcio (L. 6.515/77): O que antes se chamava desquite passou a se chamar separação. Sendo assim, existiam duas etapas no procedimento para a efetiva realização do divórcio: primeiro as pessoas se separavam e, posteriormente, convertiam a separação em divórcio. Com o advento da CRFB/88 houve a redutibilidade do prazo de separação para 02 anos, mas a exigibilidade de comprovação da culpa deixou de existir. Porém, ainda subsistia a obrigatoriedade do procedimento bifásico para a extinção do vínculo matrimonial.

Diante desse cenário, foi proposto um projeto de Emenda Constitucional de iniciativa do Instituo Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), com objetivo de findar o duplo procedimento e o debate sobre a manutenção de uma sociedade conjugal ruída, mas não efetivamente extinta. Tal feito deu origem a EC n. 66/2010 que alterou o disposto no art. 226, §6º, CF e a partir de então, não há relevância acerca da discussão da culpa ou da necessidade de implementação de prazo para dissolução do casamento. O sistema jurídico a partir de agora passa a contar com o divórcio como única forma resolutiva do matrimônio. (DIAS, 2010)

Entretanto, ainda existe entendimento diverso no sentido de resgatar a coexistência dos dois institutos de forma autônoma e independente em nosso ordenamento pátrio. Essa discussão pende de análise pelo Supremo Tribunal Federal que reconheceu repercussão geral de questão constitucional a respeito do tema. (Recurso Extraordinário n. 1.167.478/RJ) Sobre a defesa do divórcio direto como o único instituto existente na atualidade capaz de pôr fim ao vínculo jurídico do casamento, Dias (2010) ressalta que:

A nova ordem constitucional veio para atender ao anseio de todos e acabar com uma excrescência que só se manteve durante anos pela histórica resistência à adoção do divórcio. Mas, passados mais de 30 anos, nada, absolutamente nada justifica manter uma dupla via para assegurar o direito à felicidade, que nem sempre está na manutenção coacta de um casamento já roto. (p.290) (grifo nosso)

Nesse contexto, para Tartuce (2003, apud CANOTILHO, 2020, p.1211) diante da hermenêutica constitucional contemporânea, os princípios constitucionais da máxima efetividade, da força normativa da constituição e da interpretação conforme ratificam o fim do instituto da separação jurídica, sob a justificativa de que “a tese da manutenção da separação de direito remete a um Direito Civil burocrático, distante da Constituição Federal, muito formal e pouco material; muito teórico e pouco efetivo.” (TARTUCE, 2020, p.1211)

2. DIVÓRCIO LIMINAR

2.1. Possibilidade

Diante do novo status constitucional conferido ao fim da conjugalidade, instituído pela EC n. 66/2010 não há necessidade do preenchimento de requisitos subjetivos, objetivos ou a espera do término da instrução processual para fins de alteração do estado civil, já que “(...) o divórcio unilateral surge como desdobramento da nova redação do art. 226 da Constituição Federal, o qual reconheceu uma revolução no Direito de Família, caracterizada pela perspectiva eudemonista de busca pela felicidade(...)”(GONÇALVES,2020,p.37) (grifo nosso) Essa mudança de paradigma conferiu ao instituto “(...) o caráter de direito potestativo de quem é casado, eis que pode ser exercido independentemente do cumprimento de prazos e da anuência do outro cônjuge.”(TRABUCO, 2016, p.14) (grifo nosso) Sendo assim, privilegia-se a vontade da pessoa que não mais deseja viver uma relação matrimonial que sucumbiu, havendo uma relação de subordinação entre a vontade do cônjuge interessado em se divorciar e do outro consorte que apenas deve acatar tal pretensão, ou seja, prevalece a máxima de que quando um não quer, dois não permanecem casados, uma vez que: “(...)Direito potestativo é aquele que se contrapõe a um estado de sujeição, pois encurrala a outra parte.(...)” (TARTUCE, 2020, p.316)

Não é de outro modo o acórdão oriundo do TJ/SP a respeito da aplicabilidade da técnica de cisão do julgamento nas ações de divórcio, prestigiando a máxima efetividade da Constituição e dignidade da pessoa humana.

(...)com a promulgação da Emenda Constitucional n. 66/2010, e a nova redação do § 6.º do art. 226 da CF, o instituto da separação judicial não foi recepcionado, mesmo porque não há direito adquirido a instituto jurídico. A referida norma é de aplicabilidade imediata e não impõe condições ao reconhecimento do pedido de divórcio, sejam de natureza subjetiva – relegadas para eventual fase posterior à discussão sobre culpa – ou objetivas – transcurso do tempo. (...). Discussões restantes: nome, alimentos, guarda e visitas aos filhos, bem como a patrimonial, devem ser resolvidas, conforme ensinamentos de Cândido Rangel Dinamarco, em ‘cisão da sentença em partes, ou capítulos, em vista da utilidade que o estudioso tenha em mente. É lícito: a) fazer somente a repartição dos preceitos contidos no decisório, referentes às diversas pretensões que compõem o mérito; b) separar, sempre no âmbito do decisório sentencial, capítulos referentes aos pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito e capítulos que contêm esse próprio julgamento; c) isolar capítulos segundo os diversos fundamentos da decisão’ (Capítulos de Sentença. 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, p. 12). Observa-se que solução diversa não preservaria a força normativa da Constituição e a carga axiológica decorrente da normatização dos princípios da dignidade humana e liberdade na busca do amor e da felicidade(...)(Agravo de Instrumento n. 990.10357301-3) (grifo nosso)

A novidade trazida pelo atual ordenamento processual civil prevê de forma expressa o instituto do julgamento antecipado parcial do mérito (art.356,CPC), o que vem se tornando cada vez mais recorrente no âmbito dos tribunais brasileiros na análise das ações litigiosas que versam sobre o fim do vínculo conjugal. Nesse aspecto:

(...) insta salientar, que em razão da natureza potestativa da ação de divórcio, é juridicamente possível pleitear tutela de evidência para encerramento do vínculo matrimonial em caráter liminar, antecipando os efeitos definitivos através de sentença de julgamento parcial de mérito.(GONÇALVES,2020,p.39 (grifo nosso)

Tal possibilidade justifica-se pelo fato do pedido de divórcio ser incontroverso. Assim, sua deliberação posterior, no momento de prolação da sentença, impede a realização pessoal de quem deseja o fim da relação matrimonial. Vejamos então:

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A ação de divórcio não dispõe de causa de pedir. Não é necessário o autor declinar o fundamento do pedido. Não há defesa cabível. Culpas, responsabilidades, eventuais descumprimentos dos deveres do casamento não integram a demanda, não cabem ser alegados, discutidos e muito menos reconhecidos na sentença. Daí a salutar prática que vem sendo adotada: a decretação do divórcio a título de tutela antecipada, ainda que não tenha o autor pedido sua concessão liminar. Ao despachar a inicial, o juiz decreta o divórcio e determina a expedição do mandado de averbação após a citação do réu e o decurso do prazo de recurso. Tal não ofende o princípio do contraditório até por ser admitida sentença parcial antecipada (CPC 356). Dias (2016 apud Tartuce, 2020, p. 6) (grifo nosso)

Neste contexto, havendo pedido divorcista cumulado com pleitos diversos esses serão analisados no curso do processo enquanto aquele deverá ser objeto de julgamento antecipado parcial do mérito. É nesse sentido o enunciado n. 18 aprovado no X Congresso Brasileiro do IBDFAM: “nas ações de divórcio e de dissolução de união estável, a regra deve ser o julgamento parcial do mérito (art. 356 do novo CPC), para que seja decretado o fim da conjugalidade, seguindo a demanda com a discussão de outros temas.” (grifo nosso)

Nesse diapasão, a VII JORNADA DE DIREITO CIVIL DE 2015 ao debater sobre o assunto aprovou o enunciado 602 estabelecendo o seguinte: “transitada em julgado a decisão concessiva do divórcio, a expedição do mandado de averbação independe do julgamento da ação originária em que persista a discussão dos aspectos decorrentes da dissolução do casamento.”

A autonomia da vontade é condição bastante para a concessão de plano do fim do vínculo matrimonial, utilizando-se apenas da juntada da certidão de casamento para servir como meio de prova apta a comprovar o estado de casado(a) para o fim da concessão da dissolução liminar do vínculo conjugal, nos termos do art. 311, IV, CPC, conforme se verifica no decisum originado do TJ/RJ:

(...)a doutrina e a jurisprudência pátria atual vem admitindo a concessão da tutela pretendida, tendo em vista haver interesse exclusivo de partes maiores e capazes de ver prevalecer um direito potestativo, evidenciado apenas por prova documental que comprove o casamento (index 06 dos autos originários) e o pedido de decretação liminar, sendo dispensável a produção de outras provas, as quais não alterariam a vontade manifestada. Ressalte-se que, em relação a tutela provisória fundada na evidência, a doutrina pátria ensina que ela se caracteriza pela “possibilidade de antecipação dos efeitos finais da decisão, satisfazendo-se desde logo o provável direito do autor, mesmo nas situações em que não exista a urgência (...)(Agravo de Instrumento n. 0042493-26.2019.8.19.0000) (grifo nosso)

Nunes e Marques (2019) também encampam a possibilidade da aplicação da tutela da evidência, nos termos do artigo 311, II e IV do CPC, e fundamentam que a maturação do pedido liminar tem embasamento no direito incondicionado de se divorciar, uma vez que

(...)Constata-se, portanto que a cognição da ação de divórcio já se inicia com maturação suficiente para o deferimento da antecipação dos efeitos do pleito de dissolução do vínculo conjugal, de modo que não é razoável impor ao demandante o ônus de suportar a morosa tramitação do feito para que, só ao final, tenha apreciada sua pretensão, quando já houver manifestado inequívoco interesse em se divorciar. Por esta razão, entende-se ser plenamente possível a concessão da tutela de evidência para que seja, liminarmente, decretado o divórcio entre as partes, com fulcro no artigo 311, incisos II e IV do Código de Processo Civil, tendo em vista a inconteste evidência do direito material do demandante, por se tratar de alegação comprovada apenas documentalmente (para tanto, basta a juntada da certidão de casamento e a manifestação de vontade da parte autora), com respaldo em norma de índole constitucional. Perceba-se que o fundamento do instituto da tutela da evidência é assegurar a antecipação de efeitos em hipóteses nas quais há a presunção de uma cognição maturada pelas hipóteses normativas apresentadas no artigo 311, CPC. Na hipótese em comento, como já se evidenciou estamos diante de um quadro normativo mais inconteste ao se vislumbrar um direito potestativo previsto no texto constitucional, qual seja, o direito incondicionado de se divorciar.(...) (grifo nosso)

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), somente no ano de 2019 foram realizados 383.286 divórcios em todo o país (na proporção de cada quase 4 judiciais X 1 extrajudicial). Dessa forma, “ (...) não resta dúvida que com a implementação do divórcio unilateral ao ordenamento jurídico brasileiro venha a garantir maior celeridade ao processo de divórcio, deixando este de ser um processo lento e burocrático.” (ALMEIDA, 2020, p.35) (grifo nosso) Seguindo essa tendência, aquele que tem a intenção de alterar seu status quo não deve suportar o ônus do tempo do processo, aguardando o trâmite regular do rito ordinário processual para a efetivação do desenlace matrimonial.

Nesse viés, o TJ/BA negou provimento ao recurso de apelação e reafirmou a potestividade acerca da vontade inequívoca de pôr fim ao vínculo jurídico do matrimônio, mesmo diante da extinção do processo sem resolução do mérito em decorrência do falecimento do autor, uma vez que o divórcio foi decretado em sede de tutela da evidência quando o mesmo estava vivo, tendo em vista que: “(...) Não custa rememorar o caráter acessório do direito processual, o qual não deve obstar o exercício do direito material, que in casu, é potestativo.”

A ementa do acórdão originado do TJ/DF também ressalta a valorização da vontade humana e celeridade processual, dando ênfase constitucional ao instituto do divórcio, respaldado nos ditames traçados pela EC n.66/2010, e, no CPC de 2015, pela utilização da tutela da evidência (art. 311, IV, do CPC), por intermédio de uma interpretação integrativa para a efetivação de sua concessão liminar, a saber:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIVÓRCIO LIMINAR. DIVÓRCIO IMPOSITIVO. TUTELA PROVISÓRIA DE EVIDÊNCIA. POSSIBILIDADE. DIREITO POTESTATIVO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. A Emenda Constitucional 66/2010 promoveu uma mudança de paradigma no direito de família, ao suprimir os requisitos temporais para dissolução do casamento e simplificar o processo para cessação do vínculo conjugal. Ao passo que se diminui a intervenção estatal na vida privada, privilegia-se a autonomia da vontade e a dignidade da pessoa humana em regular sua vida amorosa e afetiva. 2. Em que pese o legislador não ter incluído a hipótese do divórcio no inciso IV do artigo 311 do Código de Processo Civil dentre as hipóteses de concessão liminar, deve-se realizar uma interpretação integrativa quando desnecessário o contraditório. 3. No pedido de decretação do divórcio em sede de tutela de evidência, a decretação de vontade de um dos cônjuges é suficiente e a defesa contra o pedido possui apenas caráter protelatório, autorizando-se a antecipação da tutela. 4. O deferimento liminar do divórcio privilegia a celeridade do processo e prestigia a autonomia da vontade nas relações intersubjetivas. 5. Recurso conhecido e provido. (grifo nosso)

Para Dias (2020) a análise do direito ao divórcio unilateral liminar não se limita apenas ao campo da legalidade. Situando-se axiologicamente no âmbito da justiça e da legitimidade. Fundamenta-se nas escolhas de vida dos indivíduos e suas realizações, deixando evidente seu nítido caráter social.

(...)Demoramos muito tempo para tomar das mãos do Estado o poder de dizer quando o ápice da vida privada, a relação conjugal/afetiva, começará ou terminará. Com a Emenda Constitucional n. 66/2010, que retira definitivamente do Judiciário o direito de perquirir os motivos do desenlace, outorgando aos envolvidos o direito material subjacente a essa escolha, não faria o menor sentido renunciar a ele por conta de entraves naturais do processo ou formalidades inúteis, de índole meramente instrumentais. O divórcio unilateral liminar não é apenas dotado de juridicidade, é uma necessidade social. (grifo nosso)

 2.2. Entendimento negacionista

Apesar da crescente aceitação por parte de diversos tribunais acerca da concessão in limine do vínculo matrimonial ainda há entendimento contrário a respeito do assunto. De acordo com a corrente negacionista existe vedação da concessão do divórcio antes da formação da angularização processual, ou seja, sem a realização da citação do réu.

O TJ/GO foi ao encontro desse entendimento e por unanimidade negou provimento ao agravo de instrumento, ratificando a negativa a respeito da concessão liminar do divórcio sob o argumento de que é:

“(...)inadequada a concessão da tutela de urgência que ensejaria verdadeiro adiantamento integral da tutela satisfativa, uma vez que não há bens a partilhar nem filhos, o que esvaziaria por completo o conteúdo da ação originária de divórcio litigioso, sem o devido contraditório. (Agravo de Instrumento n. 5022847.21.2019.8.09.0000) (grifo nosso)

Em outro julgado do mesmo tribunal a negativa para a concessão liminar encontrou amparo no Princípio do Devido Processo Legal sendo “(...) inviável a concessão do p. de julgamento antecipado, parcial de mérito, quanto ao divórcio, vez que o deferimento atinge o Agravado/R., notadamente, quanto ao seu estado civil, motivo pelo qual deve ser citado(...)” Tal entendimento foi reiterado em sede de embargos de declaração: “(...)Antes de ocorrida a citação, não é possível considerar incontroversos os fatos alegados na petição inicial, consoante dispõe o art. 356 do CPC, o que obsta o julgamento parcial do mérito para a decretação do divórcio.” (Agravo de Instrumento n. 5542723.36.2018.8.09.0000) (grifo nosso)

Por unanimidade o TJ/MT igualmente julgou pela não concessão da dissolução liminar do vínculo conjugal com respaldo em uma interpretação legalista, privilegiando os ditames literais da lei, mesmo diante da alegação de separação de fato do casal há mais de dois anos, e, da impossibilidade de localização da agravada para que a mesma tome conhecimento da demanda, por esta se encontrar em local incerto e não sabido. Segundo o decisum a concessão da tutela da evidência nas ações que versam sobre divórcio devem atender cumulativamente aos requisitos previstos no inciso II, do art. 311, CPC. (Agravo de Instrumento n. 1012916-08.2019.8.11.0000)

A respeito da impossibilidade de vinculação da vontade de apenas um dos consortes sobre a decretação liminar de dissolução do vínculo matrimonial, ou seja, antes da ciência do outro cônjuge e do caráter potestativo conferido pela EC n. 66/2010 ao término do vínculo conjugal por se tratar de uma questão unicamente de direito, sem requisitos objetivos ou subjetivos para a sua efetivação. Comel (2015) dispõe que a “(...) potestividade, portanto, que só pode ser compreendida como um estado de poder comum dos cônjuges, vinculando-os de tal forma a não se permitirem efeitos definitivos ao exercício unilateral e isolado.” (grifo nosso) (p. 45) Nesse sentido, tal impossibilidade decorre do fato das ações de divórcio resultarem em pronunciamento judicial que diz respeito ao estado das famílias, onde se encontram inseridos os cônjuges em comunhão de vida plena, produzindo efeitos que extrapolam a esfera de interesses de seus titulares. Além da incompatibilidade procedimental com os requisitos tutela provisória em decorrência da irreversibilidade da decisão e das características da precariedade e provisoriedade serem inconciliáveis com as ações de estado. (COMEL,2015)

Sobre o ponto de vista de SILVA (2020) os artigos 355 e 356 do Código de Processo Civil de 2015 possibilitam o decreto divorcista no início da lide, por se tratar de pedido incontroverso, bastando a juntada da certidão de casamento, admitindo que os demais pedidos cumulados não impedem a regularização do estado civil na fase inicial da demanda. Salienta ainda que a técnica da cisão do julgamento é dotada de legitimidade, porém não endossa a ideologia do divórcio liminar, sob o argumento de que:

(...)a decisão que decreta a separação ou o divórcio no início da lide é uma sentença parcial e antecipada de mérito, prevista no ordenamento processual, e não mera tutela de urgência, de modo que não se trata de uma mera decisão liminar, que pode ou não ser confirmada em sentença final(...) (SILVA, 2020, p.19)

No mesmo sentido, Peixoto (2020) fundamenta sua convicção negacionista na ausência de previsão legal. Porém, defende a aplicação do disposto no art. 356, CPC, após a realização da citação do outro cônjuge.

(...) a interpretação doutrinária e jurisprudencial do art. 226, §6º da CF/88 no sentido de que o divórcio é um direito potestativo não leva à conclusão de que o ordenamento jurídico admite a decretação do divórcio unilateral através de uma tutela provisória, notadamente sem a oitiva da parte contrária (...) Do exposto, até que haja a regulamentação do divórcio unilateral ou impositivo por meio de lei, reputa-se inadequada e sem respaldo normativo sua decretação através de decisão liminar, inaudita altera pars, baseada na tutela provisória da evidência. (...), o divórcio pode ser determinado antes da sentença e até mesmo no início do processo, mas por meio do julgamento antecipado parcial do mérito previsto no art. 356 do CPC, após a citação e oportunidade de manifestação do outro consorte, garantindo-se o respeito ao contraditório e, em consequência, ao devido processo legal (...) (PEIXOTO,2020) (grifo nosso)

CONCLUSÃO

Com a valorização da vontade do individuo e de suas questões existenciais promovidas pela alteração do paradigma instituído pelo Código Civil de 2002, fruto das diretrizes constitucionais vigentes, a autonomia privada passou a ser regra de incidência sobre as relações humanas e, com mais veemência, nas relações familiares.

Seguindo essa tendência, o instituto do divórcio que atualmente possui uma sistemática procedimental desburocratizada, de caráter potestativo, resultante da EC n. 66/2010 privilegia a vontade de quem não possui interesse na manutenção da vida conjugal, amparado pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e do direito à busca da felicidade afetiva. A partir de então, surge no âmbito doutrinário e jurisprudencial amplo debate acerca de sua decretação in limine, ou seja, antes da oitiva da parte contrária.

Aqueles que defendem ser possível o decreto do fim da conjugalidade sem a formação da angularização processual enfatizam que o atual status constitucional do artigo 226, §6º, da Constituição Federal permite a aplicação da tutela da evidência, e, da técnica do julgamento antecipado parcial do mérito em observância da duração razoável do processo e celeridade processual.

Todavia, a vertente negacionista argumenta que a potestividade constitucional do pleito divorcista não representa fator de chancela para sua decretação liminar, seja por incompatibilidade procedimental, seja por falta de previsão legal. Sendo permitida apenas a utilização da técnica de julgamento antecipado parcial do mérito após a realização da integração do réu nos autos, por intermédio do ato citatório, em prestígio aos princípios do devido processo legal e do contraditório.

Nesse caso, a potestividade do direito ao divórcio se torna um ponto de convergência entre aqueles que defendem sua concessão inaudita altera pars e aos que encampam negativa sobre tal possibilidade. Contudo, a questão procedimental para sua procedência de plano esbarra em ampla divergência no âmbito doutrinário e jurisprudencial. Diante do conflito entre prestigiar o contraditório, respaldado na ampla defesa, devido processo legal e nos ditames literais da lei ou postergá-lo em favor da autonomia da vontade, felicidade afetiva e dignidade da pessoa humana, caberá ao juiz a análise do caso concreto a fim de realizar uma prestação jurisdicional justa, equânime, razoável e efetiva.

E, por fim, como sabedoria de educação sentimental merecem atenção os versos finais do poeta Vinícius de Moraes em seu clássico poema “SONETO DE FIDELIDADE”: “(...) Eu possa me dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure.”(4) Moraes (1957, apud MORICONI, 2001,p. 101)

Sobre a autora
Grasielly Seabra Felizardo

Advogada, Graduada e Pós Graduada em Direito Civil e Processual Civil pelo UNIFLU- Centro universitário Fluminense, Campos dos Goytacazes-RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELIZARDO, Grasielly Seabra. Divórcio liminar no exercício de um direito potestativo: : possibilidade e negacionismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7175, 22 fev. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102600. Acesso em: 24 dez. 2025.

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