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O acordo de leniência e seus reflexos no direito penal

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2 O Acordo de Leniência

2.1 Noções e Conceito

A Medida Provisória n.º 2.055, de 11 de agosto de 2000 introduziu à Lei n.º 8.884 de 11 de junho de 1994 novos dispositivos, criando o chamado acordo de leniência. Após três edições, a Medida Provisória, foi convertida na Lei n.º 10.149/2000 e consolidou, entre outros, os artigos 35-B e 35-C no Capítulo II, do Título VI, que trata da instauração e instrução do processo administrativo.

O termo leniência (igual a lenidade, do latim lenitate) corresponde à brandura, suavidade, doçura ou mansidão. [27] Inserido o termo na lei antitruste, prima facie, remete à idéia de atenuação da sanção a ser imposta quando da ocorrência de práticas anti-concorrenciais. Lenidade que ultrapassa a esfera administrativa e se aplica também na esfera criminal, em que se vislumbra até mesmo a hipótese de exclusão da pena.

O acordo de leniência é celebrado entre União e pessoas físicas ou jurídicas autoras de infrações contra a ordem econômica interessadas em livrar-se de pena administrativa imposta pelo CADE ou tê-la reduzida, mediante a efetiva colaboração nas investigações levadas a efeito pela SDE e no próprio processo administrativo. É, portanto, o mais novo instrumento na tentativa de manutenção da ordem concorrencial, pois é instituído com a nítida intenção de desfazer os trustes, tarefa que, atualmente, demonstra-se muito além das estruturas investigatórias das agências governamentais.

É idéia não tradicional no país, mas, embora seja tida como inédita no combate ao abuso do poder econômico, semelhante instrumento, de aplicação genérica no direito criminal, já foi anteriormente experimentado. A delação premiada, introduzida pela Lei n.º 9.807 de 13 de julho de 1999 trouxe a previsão da concessão de benefícios àqueles que colaborarem com o Estado mediante o repasse de informações. Colaborando, então, o acusado com a investigação policial ou com o processo criminal, preenchidos determinados requisitos legais, fará jus à redução de um a dois terços da pena ou, até mesmo, da sua total extinção, se o juiz entender pela aplicação do perdão judicial.

Conforme já salientado, o abuso do poder econômico, representado, na maioria das vezes, na tão prejudicial figura da formação de cartel, está tipificado como reprimenda administrativa no artigo 21 da Lei Antitruste, o qual elenca diversas condutas, as quais, produzindo os efeitos nocivos descritos no artigo 20, encerram o suporte fático à incidência da norma repressiva.

Contudo, a fluidez dos conceitos normativos levou o CADE a editar a Resolução número 20, de 9 de junho de 1999. Em seu Anexo I, trata das práticas restritivas horizontais, definindo os cartéis da seguinte maneira:

"Acordos explícitos ou tácitos entre concorrentes do mesmo mercado, envolvendo parte substancial do mercado relevante, em torno de itens como preços, quotas de produção e distribuição e divisão territorial, na tentativa de aumentar preços e lucros conjuntamente para níveis mais próximos dos de monopólio."

Os órgãos de defesa da concorrência têm, atualmente, a formação e a atuação de cartéis como o distúrbio à ordem econômica que mais os desafia, gerando grandes dificuldades à efetiva responsabilização dos agentes, pois a obtenção de dados demonstra-se precária. Dada a ilegalidade e a clandestinidade que revestem a formação e a atuação de cartéis, a sua investigação e a comprovação são bastante complexas, exigindo dos órgãos estatais mecanismos capazes de desestruturar internamente o cartel de modo que a prática venha a público. [28]

Nessa esteira, a ineficácia dos instrumentos de combate aos atos de concentração de mercado levou as autoridades antitrustes a enxergarem no acordo de leniência um caminho para a ampliação dos seus poderes de investigação, através do incentivo aos agentes econômicos para que forneçam provas que ajudem a condenar todos os demais membros dos cartéis e encerrar os efeitos nocivos dessas organizações sobre a economia.

Sendo recente, o instituto ainda não se emoldurou devidamente ao sistema jurídico brasileiro, tendo sido celebrado um único acordo até o momento. [29] Contudo, conforme adiante será tratado, o acordo de leniência apresenta algumas questões a serem suscitadas como quais os seus reais benefícios, o tratamento do sigilo e a falta de independência da autoridade, gerando grande controvérsia frente ao seu impacto na ação penal.

2.2 Requisitos

A Lei n.º 8.884/94, com a modificação que introduziu o acordo de leniência elenca um extenso rol de requisitos para a sua adesão. É louvável que tenha tido o legislador tal cuidado, pois, para que o programa seja efetivo e que, principalmente, não reste margem ao arbítrio da autoridade investigadora, importante é a taxatividade dos elementos do instituto.

Assim, nos termos do parágrafo 2.º do artigo 35-B, são os requisitos para a celebração do acordo: (a) que a empresa ou pessoa física seja a primeira a se qualificar com respeito à infração noticiada ou sob investigação; (b) que a empresa ou a pessoa física cesse completamente o seu envolvimento na infração noticiada ou sob investigação a partir da data da propositura do acordo; (c) que a SDE não disponha de provas suficientes para assegurar a condenação da empresa ou pessoa física quando da propositura do acordo e; (d) que a empresa ou pessoa física confesse sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas a todos os atos processuais, até seu encerramento.

Depreende-se da lei que cada caso de formação de cartel comportará somente um beneficiário do acordo. A SDE celebrará o acordo apenas com o primeiro que buscar o benefício. E não seria racional, se diferente fosse. Isso daria margem a novo conluio entre parte das empresas envolvidas no cartel, as quais, sabendo que algum envolvido já tenha buscado a SDE, poderiam também intentar o acordo, diante da eminente aplicação de penalidade. E as informações poderiam, mediante acerto entre as empresas, ser repassadas em cotas, para que todas viessem a ter a punibilidade extinta ou a pena reduzida.

Por derradeiro, é requisito a cessação da atividade ilícita por parte do candidato à leniência. Não se poderia imaginar o ente público consentindo com a conduta ainda sendo perpetrada enquanto vigente o acordo. Estar-se-ia, assim, diante de uma imoralidade praticada pelo próprio Estado, pois a manutenção da conduta implicaria a equivalência a um flagrante preparado, tendo em vista a possibilidade de manipulação do indivíduo dentro da organização criminosa, de acordo como melhor aprouvesse ao órgão investigador.

A pessoa ou empresa que se candidatar ao acordo de leniência deverá fornecer à SDE informações ainda inéditas. Esse requisito visa justamente a trazer à tona condutas as quais dificilmente seriam reveladas, porque as infrações não têm conseqüências que efetivamente alterem o mundo dos fatos, restringindo-se os delitos às maquinações perpetradas em um sigiloso grupo. Aliás, determinados mercados podem até apresentar identidade de preços, de fornecedores ou de modos de produção e distribuição, como se em conluio agissem os agentes. Contudo, difícil é saber se efetivamente ocorreu a comunhão de esforços e a vontade dirigida ao ilícito.

Não é correto afirmar, no entanto, que o acordo de leniência seja somente dirigido àqueles que deflagrarem práticas totalmente desconhecidas. Pode ser que o órgão estatal investigativo já tenha ciência da existência de determinada organização ilícita, mas as informações prestadas devem, ao menos, ser inéditas ao ponto de conduzir a investigação a caminhos não anteriormente perpetrados, transformando-se em um diferencial para o desvelo das condutas apontadas. Enfim, a informação, nas palavras de Ibrahim Acácio Espírito Sobral, deve ser "inédita e contundente" [30]. Em vista disso, deve-se ter atenção para o contrário, pois o desconhecimento da informação não é suficiente para que a autoridade a aceite como requisito para a adesão ao acordo de leniência. Uma vez que a informação, mesmo sendo inédita, não conduza a elementos para a identificação e a comprovação de condutas, não estará apresentando a qualidade necessária à celebração do acordo.

A SDE não pode dispor de provas suficientes para assegurar a condenação da empresa. O objetivo do acordo é, justamente, que seja levado a efeito uma cooperação completa e contínua, que conduza a informações e documentos aptos a comprovarem a infração. Deve proporcionar a angariação de provas necessárias à identificação dos partícipes, bem como à aplicação de penalidade.

A confissão é elemento que implica a posterior concessão dos benefícios de redução ou extinção da pena. Logo, o sigilo do acordo é a necessidade decorrente da confissão, pois as empresas ou pessoas físicas que estão delatando co-infratores podem correr sérios riscos de retaliação comercial e até pessoal. Tais riscos geram, portanto, a necessidade de tratar o acordo de leniência de modo confidencial, desde o primeiro contato para sua negociação. [31] O rigorismo na conservação do sigilo das negociação acarretam duas conseqüências imediatas: são importantes para o sucesso das investigações e preservam a imagem da empresa ou pessoa física que se coloca na condição de delatora.

Não aceita pela SDE a proposta de acordo de leniência, tendo em vista o parágrafo 10 do artigo 35-B da lei, a confissão não se formalizará quanto à matéria de fato nem haverá reconhecimento de ilicitude da conduta analisada. Contudo, não há dispositivo impedindo que a SDE instaure investigações preliminares para investigar a prática delatada, o que pode gerar forte insegurança daqueles que pretendem procurar o órgão para a tentativa de colaboração. Ainda assim, embora esse aspecto possa ser prejudicial à atração de possíveis delatores, não poderia a SDE restar engessada a tomar providências, o que seria um inverso estímulo à procura demasiada e desmedida a partir de toda e qualquer informação suspeita.

A SDE, além de todas essas condições estabelecidas em lei, poderá estipular outros requisitos, dependendo do caso. A Secretaria estipulará as condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo.

A lei traz, também, a restrição da possibilidade de celebração do acordo por pessoas físicas ou jurídicas que tenham estado à frente da conduta tida como infracionária. Por certo, não pode o instituto ser utilizado como via da qual os maiores infratores da ordem econômica pudessem lançar mão mediante mera confissão para beneficiarem-se com a redução ou exclusão da pena. O Estado estaria, assim, abrindo uma via "alternativa" para o empreendimento ilícito, estando o infrator sempre certo de que, ao sinal de perigo, se socorreria do próprio ente repressor para lhe abrandar as conseqüências de seu ato. O acordo de leniência volta-se, portanto, a co-partícipes os quais, em verdade, agem como peças de uma engrenagem nociva à ordem econômica. Abre-se mão da repressão a essa espécie de infrator para desmantelar todo o aparato criminoso, buscando-se a origem intelectual da organização.

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O problema, então, reside, justamente, na identificação do que viria ser a expressão "estar à frente da conduta infracionária". Qual seria o elemento caracterizador dessa posição? A portaria n.º 849, de 22 de setembro de 2000 do Ministério da Justiça define "como tendo estado à frente da conduta infracionária a pessoa física ou jurídica que tenha promovido ou organizado a cooperação da infração, dirigido a atividade ou ainda que tenha coagido alguém a cometê-la". Essa norma administrativa ganha força legal na medida em que a lei antitruste prescreve, em seu artigo 35-B, parágrafo 11, que a aplicação dos dispositivos do artigo "observará a regulamentação a ser editada pelo Ministro de Estado da Justiça". Pode-se dizer que a norma antitruste resta aberta ao complemento administrativo. Logo, a conceituação elaborada sobre o que seria o tal encabeçamento da conduta infracionária é importante para reduzir a margem de arbitrariedade na aplicação do instituto do acordo de leniência, muito embora se trate de uma simples portaria.

Mesmo assim, promover e organizar, como prescreve a portaria, podem ainda ser expressões vagas, quando avaliado o caso concreto para verificar o preenchimento dos requisitos para a concessão do acordo de leniência. Resta saber quais seriam os limites ao poder decisório e organizacional dos agentes envolvidos no cartel para que não sejam considerados como estando à frente da conduta infracionária e assim possam ser beneficiários do instituto.

É perceptível que as empresas de maior poder econômico, geralmente, encabeçam as organizações, tendo em vista, muitas vezes, que as demais aderem frente à necessidade das demais em sobreviver à concorrência (ou aos blocos que se formam para suprimir a concorrência). Daí, inclusive, a justificativa da inclusão, na portaria, da possibilidade do elemento "coação", ao qual atribuímos o caráter do assédio econômico, tendo em vista à pressão das forças concorrenciais.

2.3 Origens

A legislação dos Estados Unidos acerca da repressão aos trustes é pioneira, sendo pródiga em inovações e instrumentos para a repressão. A famosa Sherman Antitrust Act (Lei Sherman), que passou a viger ainda no século XIX, representa a entrada de vez do Estado na política liberal norte-americana. Preocupados com as monstruosas combinações que tinham agregado tanto poder em detrimento da economia do país [32], criou-se uma agência administrativa para o cumprimento e o estabelecimento de normas que inibissem contenções ao comércio que fossem contra o interesse público. Surgiram também as Leis Clayton e Robinson Patman e a agência Federal Trade Comission, as quais, somadas à Lei Sherman, constituem o arcabouço legal do sistema antitruste estadunidense.

Inédito no sistema jurídico brasileiro, o acordo de leniência é instituto de origem norte-americana, onde existe desde 1978, quando foi criado, pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América. O programa previa a concessão do perdão judicial no âmbito criminal, se os infratores se antecipassem à agência governamental e se apresentassem antes do início das investigações, confessando a prática ilícita. Inicialmente, o programa não se demonstrou exitoso, pois a margem de discricionariedade para o ato concessão do perdão era muito larga, deixando os infratores na dependência de um alto grau de arbítrio por parte do governo. O programa, portanto, gerava muita desconfiança, do que decorria a baixa procura pela tentativa de acordo, acarretando o seu insucesso.

Em busca de um programa efetivo, que proporcionasse o incremento das investigações levadas a efeito pelo Departamento de Justiça dos EUA, em 1993, foi criado o Programa de Leniência Corporativa, o "Amnesty Program". Com a diretriz sintetizada na expressão "Making conpanies an offer they shouldan’t refuse", o Departamento intentou estender as oportunidades e aumentar os benefícios a empresas que delatassem condutas criminosas e cooperassem com as investigações. No ano seguinte, estendeu o programa a pessoas físicas que se apresentassem às autoridades autonomamente, que não estivesse à frente da responsabilização pela conduta das empresas envolvidas.

Com isso, o programa passou a basear-se, visceralmente, em questões as quais se demostraram fundamentais na atração dos delatores. Itens que, diga-se de passagem, são, basicamente, os mesmos estabelecidos na lei antitruiste brasileira, quais sejam, a ameaça da aplicação de penas e a possibilidade de redução ou exclusão da pena mediante a confissão e a colaboração com as investigações.

Primeiramente, a redução da discricionariadade da agência governamental foi fundamental, porque, estando regrada expressamente na lei a concessão automática de leniência, o infrator é estimulado a procurar o órgão, tendo a certeza de que se beneficiará com a delação. Assim, desde que não haja investigação prévia e sejam as informações desconhecidas pela agência governamental, a leniência é concedida por direito. Ademais, mesmo que a cooperação seja estabelecida após iniciado o processo investigatório, resta a possibilidade do acordo, no sentido de estabelecer, ao menos, a redução da pena. Por fim, todos os executivos, diretores e funcionários que cooperem ficam protegidos de processo criminal.

Os fatores confiança e segurança jurídica oferecidas pelo Amnesty Program são fundamentais para o seu sucesso. Nessa senda, a taxatividade dos requisitos de adesão se demonstraram importantes para a preservação das garantias constitucionais, apresentando-se como um contraponto à perigosa relativização do devido processo legal que a adesão ao programa representa.

Em decorrência desses resultados ocorridos no sistema norte-americano, o instituto do acordo de leniência sofreu um processo de globalização e passou a ter previsão em vários ordenamentos jurídicos internacionais. No Brasil, não foi diferente, e o instituto do acordo de leniência, apresenta-se com os mesmos objetivos e requisitos bastante semelhantes ao Amnesty Program de origem norte-americana.

2.4 A Experiência no Brasil

A análise da atuação dos órgãos brasileiros de proteção à concorrência tem-se dividido quanto à avaliação da eficiência dos mecanismos investigativos e repressivos. Enquanto, de um lado, os resultados podem apresentar-se insatisfatórios a fervorosos defensores do rigorismo sancionatório, de outro, considerando-se a pouca tradição da economia liberal brasileira e dos seus instrumentos de proteção, é possível verificar uma atuação eficiente, tendo em vista um expressivo aumento dos números de processos e condenações, tanto administrativas quanto criminais. É claro que este incremento não pode ser considerado, por si só, como um aspecto positivo para a sociedade, pois o que se quer é o bom funcionamento da ordem econômica, não uma caçada sufocante aos agentes econômicos. O importante é que os procedimentos sejam capazes de resguardar a dignidade dos investigados, pois muitas liberdades estão em questão, quando se trata da repressão a supostas condutas contra a ordem econômica.

Ainda assim, a maior razão para o reduzido número de processos e condenações é a dificuldade de obtenção de provas da existência do ilícito. E essa dificuldade não é privativa das autoridades brasileiras, o que gera, em vários países, a necessidade da busca por institutos sui generis. A efetiva atuação da SDE e do CADE esbarra na ausência de mecanismos eficientes para a captação de informações, sendo essas modalidades de infrações extremamente peculiares em razão da dificuldade de percepção das condutas. Dessa forma, o Brasil, seguindo o exemplo de autoridades estrangeiras, também passou a adotar medidas que pudessem minimizar o problema ao acesso de informações sobre os cartéis. Daí decorre a importância de instrumento como o acordo de leniência.

A SDE atua em, aproximadamente, duzentos e sessenta investigações de cartéis em andamento no Brasil, envolvendo trinta setores diferentes da economia. [33] Contudo, apenas um acordo de leniência foi celebrado no país. Em 8 de outubro de 2003, um então integrante de suposto cartel noticiou à Secretaria de Desenvolvimento Econômico uma organização de vinte e uma empresas, três entidades e trinta pessoas físicas, arquitetada para, entre outras condutas ilícitas, fraudar licitações e combinar preços no setor de segurança privada do Rio Grande do Sul. O acordo, firmado entre a SDE e uma das empresas participantes do cartel (representada por seu proprietário e um funcionário), teve o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul como intervenientes. Com isso instaurou-se processo, o qual foi publicado no Diário Oficial de 29 de outubro de 2003. [34]

A instauração desse processo, portanto, é resultado direto do acordo de leniência, sem o qual, provavelmente o cartel não teria emergido. Pela primeira vez, houve a ajuda de ex-integrantes de um cartel para levar a efeito as investigações. Pelo acordo, os denunciantes se comprometeram a prestar todas as informações necessárias para a investigação em troca da redução ou extinção da pena, tanto em âmbito administrativo quanto em âmbito criminal.

As empresas são acusadas de fraudar licitações públicas a diversos órgãos, determinando previamente qual seria a vencedora das licitações. Uma das estratégias empregadas era fazer com que outros participantes do cartel também participassem das licitações, porém apresentando preços superiores ao que seria oferecido pela vencedora. Uma outra empresa do cartel não apresentaria todos os documentos necessários e seria considerada inabilitada.

A combinação de preços surgia na medida em que, nos contratos para empresas privadas, os integrantes do suposto cartel se reuniam para decidir quais valores seriam oferecidos, a fim de manipular a tomada de preços e determinar quem seria o vencedor.

Selado o acordo, a SDE passou a ter acesso a todas as informações sobre a atuação do suposto cartel. A obtenção de provas a partir dos chamados "insiders" pode ser fundamental para o sucesso de uma investigação. No entanto, é recurso que suscita a questão do comportamento ético/moral do Estado frente a uma verdadeira barganha que oferece a infratores. A delação é instrumento que, historicamente, não é bem visto, pois confere ao Estado um aspecto fluido, não condizente com a sua rígida imagem de ente garantidor de conceitos estanques e seguros [35].

Em verdade, não raro, existem, nos cartéis, as empresas ditas caroneiras, as quais, coagidas diante das estruturas organizadas para perpetrarem infrações contra a ordem econômica, muitas vezes, aderem à estrutura ilícita. O acordo de leniência passa a ser, então, uma oportunidade para se criarem estímulos e condições a que essas empresas caroneiras passem para a legalidade, colaborando com as autoridades. Nessa perspectiva, as empresas que se encontram à frente das organizações não fazem jus ao benefício, o que se revela um razoável limite à barganha oportunizada pela lei.

Ao CADE e à SDE, representantes da União e, conseqüentemente, da sociedade, no que diz respeito à ordem econômica, foi conferida pela legislação constitucional e infra a tarefa de reprimir as infrações que atentem à livre concorrência. E o legislador outorgou-lhes um grande campo por onde possam livremente transitar em busca de informações. Enfim, isso é lei, e não cabe à doutrina, a todo custo, promover infrutíferos esforços na tentativa desconstituir esse instrumento. O relevante é que o Ministério Público, como agente responsável pela defesa da ordem jurídica, esteja sempre presente aos atos perpetrados pelo CADE e pela SDE, assim como o fez no caso acima exposto, de forma a observar e fiscalizar os limites que a própria lei impõe à celebração do acordo de leniência, bem como ao sujeito delator seja oportunizada a assistência técnica.

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Sobre o autor
André Maciel Vargas dos Santos

advogado, especialista em Direito Penal Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, André Maciel Vargas. O acordo de leniência e seus reflexos no direito penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1502, 12 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10270. Acesso em: 26 abr. 2024.

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