INTRODUÇÃO
A baixa representatividade do atual quadro do regime democrático demanda que o poder público encontre soluções novas para o déficit de legitimidade em que se encontra.
Neste contexto, as audiências públicas podem ser utilizadas como método de legitimação da atuação estatal, por permitirem que as decisões tomadas pelo Estado passem pelo crivo da população, destinatária final dos atos administrativos.
Entende-se que apenas os atos administrativos complexos aceitam tal configuração, porque a sua formação passa por diversos estágios e demanda uma série de manifestações para entrar em vigor no mundo jurídico.
POR QUE FALAR EM PARTICIPAÇÃO POPULAR?
A participação popular que se prega neste trabalho diz respeito àquela inserida no contexto Constitucional vigente após 1988. Promulgada após longos anos de autoritarismo no país, a Carta Magna daquele ano trouxe em seu bojo os interesses da sociedade civil por mais liberdade, autonomia e principalmente por voz.
Extrai-se daquele momento histórico que as forças políticas da sociedade decidiram por dar à Constituição um viés democrático muito além da formalidade: mais real e efetivo.
Desta forma, deu-se vida a diversos institutos jurídicos de extrema importância para a concretização da democracia, dentre os quais destaca-se a possibilidade de participação popular de forma direta nos desígnios estatais.
Conforme se depreende da interpretação sistemática da Constituição, o direito de participação é direito fundamental, inscrito no caput do art. 1º da Carta Magna e decorre diretamente dos princípios do estado de direito e do princípio democrático. [01]
Apesar de o sistema brasileiro ser eminentemente representativo, observa-se a possibilidade de explorar mais profundamente o aspecto de consulta à população como forma de aprofundar as relações entre representantes e representados.
A necessidade de uma maior abertura à participação popular advém da falta de legitimidade que o sistema republicano imprimiu aos representantes no atual momento.
Incapazes de cumprir as promessas de desenvolvimento social e de combate às desigualdades, a atuação dos representantes eleitos fica cada vez mais complexa.Torna-se patente, cada vez mais, a sua inação no que concerne à realização dos direitos fundamentais.
Deste modo, a democracia direta seria uma ferramenta que passaria a legitimar a atuação estatal, já que além do esforço dos governantes, somar-se-ia o apoio da população na definição dos desígnios administrativos.
QUAL A IMPORTÂNCIA DAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS NESTE CONTEXTO?
O ato administrativo tem sido o objeto de estudo mais importante do Direito Administrativo por muito tempo. Com o advento do Estado Social e Democrático de Direito, as atenções passaram para o processo administrativo, por se tratar do procedimento de criação da vontade estatal [02] e é, precisamente neste contexto que se inserem as audiências públicas.
A utilização dos instrumentos de participação popular e particularmente das audiências públicas tem progredido no sentido de contemplar o princípio democrático. [03] Trata-se de ferramenta útil de técnica social na tentativa de diminuir as controvérsias no âmbito da sociedade civil e de tomada de decisões que sejam consensualmente aceitas.
A importância atribuída às audiências públicas é explicada pela sustentação que ela dá às decisões tomadas [04], a partir do apoio popular, aos atos da administração pública. [05]
A Lei do Procedimento Administrativo Federal [06] determina que as audiências públicas deverão ser convocadas a critério do administrador, quando o assunto em voga importar à coletividade e tiver reconhecida a sua relevância frente ao interesse geral.
O público é parte interessada e ativa e possui, dentre outros direitos: os processuais (de produzir e oferecer provas), o de se controlar o que é produzido, bem como, o direito de fazer alegações. [07] Este instituto possibilita o debate por pessoas físicas e por organizações da sociedade civil e é, normalmente, inserido no âmbito de um processo administrativo.
Aceita-se que todos os princípios que servem de base ao processo administrativo estarão contidos nas audiências públicas, como por exemplo, o devido processo legal e o princípio da publicidade. [08]
Pode-se afirmar com tranqüilidade que o instituto em estudo cria um grande espaço para manifestação de opiniões e de aspirações da população e evidencia que a administração produziu a melhor decisão tomando como base o diálogo com os representados: [09]
"(...) audiência pública é um processo administrativo de participação aberto a indivíduos e a grupos sociais determinados, visando ao aperfeiçoamento da legitimidade das decisões da Administração Pública, criado por lei, que lhe preceitua a forma e a eficácia vinculatória, pela qual os administrados exercem o direito de expor tendências, preferências e opções que possam conduzir o Poder Público a decisões de maior aceitação consensual." [10] (grifo nosso)
São tidas como método de vanguarda na busca pelo aperfeiçoamento da legitimidade das decisões do Poder Público. [11] Deste modo, a democracia passaria a ser vista não apenas como uma técnica, bastante formal, de escolha dos governantes, mas sim a escolha do modo pelo qual gostaríamos de ser governados. [12]
O princípio constitucional da participação caracteriza-se pelo controle do mérito, da eficácia, da conveniência e da oportunidade do ato administrativo [13]. Deste modo, garante-se a coleta da opinião da população na formação do ato administrativo, contemplando exemplo prático da democracia participativa [14] e garantindo a eficácia social da Constituição. [15]
O ATO ADMINISTRATIVO COMPLEXO E SUA CONSTRUÇÃO
O ato administrativo é a manifestação da "vontade" da administração pública. Coloca-se vontade entre parênteses, porque não se pode falar, segundo MARÇAL JUSTEN FILHO [16], em vontade de um ente abstrato, como o Estado.
É através dos agentes públicos que compõem os órgãos da administração que o Estado se manifesta e, com o intuito de inibir a imposição da vontade de um indivíduo (agente público) sobre os demais, a criação da vontade estatal se faz pelo direito.
Explica-se: a manifestação do indivíduo, quando dotada de certos critérios jurídicos e revestida de formalidades legais, torna-se a vontade estatal [17].
Tal conceito segue na mesma direção apontada pela teoria do órgão, de que a autoridade pública se manifesta através destes institutos administrativos, caracterizadores da descentralização de competências.
E é precisamente a esta manifestação que se dá o nome de atos administrativos. Os atos, no entanto, possuem subclassificações, que são as seguintes: de acordo com a) a natureza da atividade; b)a estrutura do ato; c)os destinatários do ato; d) o grau de liberdade da Administração em sua prática; e) a função da vontade administrativa; f) os efeitos; g) os resultados sobre a esfera jurídica dos administrados; h) a situação de terceiros; i) a composição da vontade produtora do ato; j)a formação do ato; l) a natureza das situações jurídicas que criam e; m) a posição jurídica da administração. [18]
Neste caso específico de estudo, nos interessa observar a classificação colocada na letra i, qual seja, a classificação dos atos administrativos de acordo com a composição da vontade produtora do ato.
Segundo CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, é possível, dentro da classificação exposta acima, encontrarmos dois tipos de atos administrativos: os atos simples e os atos complexos. [19]
Os primeiros caracterizam-se pela declaração jurídica de um único órgão, em oposição clara à segunda classificação, em que é possível encontrar atos expressos pela junção da vontade de diversos órgãos da administração pública. [20]
Uma conceituação distinta para os atos complexos [21] determina que estes são os atos produzidos pela conjugação da atuação de órgãos de competências heterogêneas, de modo que cada sujeito desempenha uma atividade distinta dos demais.
O ato administrativo complexo caracteriza-se por ser formado em várias etapas, necessitando que, para ter validade, tenha, em seu interior, a manifestação de variados entes, cada qual exercendo a sua parcela de competência.
Não se vê nos atos administrativos simples a possibilidade de formação plural. Não se visualiza neles a participação do plenário das audiências públicas, objetivo que precisamente se busca alcançar neste artigo, pois naquela modalidade de ato não há possibilidade de manifestação de múltiplos órgãos com o intuito de formar vontade estatal.
CONCLUSÃO: A LEGITIMIDADE DAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS COMO PARTE INTEGRANTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, PARTICIPANDO DA FORMAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS COMPLEXOS
Neste contexto é importante integrar as audiências públicas ao aparelho decisório estatal. Vê-se, aqui, a possibilidade de interpretação deste instituto como um órgão do Estado, apto a expelir comandos por meio da vontade dos agentes, conforme a conceituação supra mencionada.
É necessário, contudo, que, por meio de lei, seja dada competência à audiência pública, como órgão independente, para se manifestar, podendo, assim, inclusive, participar da construção de atos administrativos.
Importante frisar que não se busca o esvaziamento de competências da administração direta central, mas apenas a democratização na construção do ato administrativo e o aumento do número de atores sociais a influenciar nos procedimentos decisórios.
Segundo a teoria do órgão, estes foram criados como centro de competências estatais, como forma de descentralização da atuação administrativa. Para tanto, receberam para si diversas responsabilidades que antes pertenciam ao poder central. Nota-se que não passam de simples repartições de atribuições. [22]
É precisamente essa colocação que se procura dar às audiências públicas no bojo deste trabalho. Tornar possível sua transformação em órgãos estatais, com competências definidas por lei podendo influenciar, diretamente, nas políticas públicas estatais.
A vontade do órgão, então, antes de ser definida pelos agentes do estado seria conformada pela população, de uma maneira geral, indo além da lei ordinária, contemplando mais do que isso, princípios constitucionais, como o princípio da participação popular e o princípio democrático, de onde seria retirada a legitimidade da atuação popular no âmbito administrativo.
Os diversos procedimentos internos da administração que demandam a realização de audiências públicas o fazem por entender que aquela traz à baila a legitimidade da participação dos interessados.
É desta forma, portanto, que se entende possível a utilização desta modalidade para a criação de atos administrativos complexos: percebendo que as audiências públicas podem ser aceitas como órgãos da administração pública, tendo competência própria, definida por lei, justificando assim, a sua participação na criação dos atos jurídicos complexos, bem como, dando relevância às audiências públicas neste contexto, para que ocorresse, dentro do Direito Administrativo, a concretização de princípios constitucionais básicos, renovando-o com os novos ares da democracia direta.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007.
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Direito Municipal. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
FONSECA, Gilberto Nardi. A gestão democrática dos Municípios. Texto disponível em Jus Navigandi: http://jus.com.br/artigos/3478. Acessado em 28/03/2006
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.
MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Audiências Públicas. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 210, p. 11-23, out./dez. 1997.
PETRUCCI, Jivago. Gestão Democrática da Cidade: delineamento constitucional e legal. Texto disponível em Jus Navigandi: http://jus.com.br/artigos/5051. Acessado em 13/07/2006.
SCHIER, Adriana da Costa R. A Participação Popular na Administração Pública: o Direito de Reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
SOARES, Evanna. A Audiência Pública no Processo Administrativo Brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 229, p. 259-283, jul./set. 2002.
VILLELA SOUTO, Marcos Juruena. Direito Administrativo em Debate. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004.
NOTAS
01 SCHIER, Adriana da Costa R. A Participação Popular na Administração Pública: o Direito de Reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.p. 27
02 SOARES, Evanna. A Audiência Pública no Processo Administrativo Brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 229, p. 259-283, jul./set. 2002. p. 260.
03 VILLELA SOUTO, Marcos Juruena. Direito Administrativo em Debate. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004. p. 231
04 GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo. 4ª Ed. Buenos Aires: Fundácion de Derecho Administrativo, 2000, Tomo 2, Apud, SOARES, Evanna. A Audiência Pública no Processo Administrativo Brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 229, p. 259-283, jul./set. 2002. p. 264
05 SOARES, Evanna. A Audiência Pública no Processo Administrativo Brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 229, p. 259-283, jul./set. 2002. p. 264.
06 Lei nº. 9784/1999
07 GORDILLO, Agustín Gordillo., Apud, FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Direito Municipal. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 336.
08 MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, Apud, FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Direito Municipal. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 336
09 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery, Op. Cit., p. 345.
10 MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Audiências Públicas. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 210, p. 11-23, out./dez. 1997. p. 14
11 MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Audiências Públicas. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 210, p. 11-23, out./dez. 1997.p. 15.
12 RIVERO, Jean. A propos dês métamorphoses de l´administration d´aujourd´hui: démocratie et administration. In: Mélanges offerts à René Savatier. Paris: Dalloz, 1965, Apud, MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Op. Cit., p. 15
13 CARRION, Eduardo Kroeff Machado. Apontamentos de direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, Apud, FONSECA, Gilberto Nardi. A gestão democrática dos Municípios. Texto disponível em Jus Navigandi: http://jus.com.br/artigos/3478. Acessado em 28/03/2006. p. 2.
14 FONSECA, Gilberto Nardi. A gestão democrática dos Municípios. Texto disponível em Jus Navigandi: http://jus.com.br/artigos/3478. Acessado em 28/03/2006. p. 2.
15 PETRUCCI, Jivago. Gestão Democrática da Cidade: delineamento constitucional e legal. Texto disponível em Jus Navigandi: http://jus.com.br/artigos/5051. Acessado em 13/07/2006. p. 8
16 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p.
17 JUSTEN FILHO, Marçal. Op. Cit, p.
18 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007. P. 404-410.
19 Idem. p. 409
20 id. p. 409
21 JUSTEN Filho, Marçal. Op. Cit. p. 299
22 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. Cit. p. 136