Tendo em vista as constantes alterações legislativas e de interpretação das normas constitucionais, buscando-se constantemente acompanhar os avanços empreendidos pela sociedade, percebemos ser possível que uma sentença transitada em julgado seja tida por inconstitucional, em diversas hipóteses: sentença amparada na aplicação de norma inconstitucional; sentença amparada em interpretação incompatível com a Constituição; sentença amparada na indevida afirmação de inconstitucionalidade de uma norma; sentença que se ampara ou que veicula uma violação direta de normas constitucionais; sentença que gera uma situação diretamente incompatível com a ordem constitucional.
A rigor, "sentença inconstitucional" revestida de coisa julgada é aquela que, não sendo mais passível de rescisão, por ter expirado o prazo decadencial para o ajuizamento de ação rescisória, gera uma afronta à Constituição.
O obstáculo encontrado pela doutrina para desconsiderar a coisa julgada, ainda que inconstitucional, resulta de estar ela prevista na Constituição da República Federativa do Brasil, mais precisamente no Capítulo I, do Título II, que versa sobre os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, o que lhe garante o status de cláusula pétrea (art. 60, §4º, inciso IV).
Ocorre que o instituto da coisa julgada, como todos os demais direitos individuais, não traduz garantia absoluta, sendo certo que deve, numa situação de conflito, se compatibilizar com os direitos de igual hierarquia.
Busca-se, com a relativização da coisa julgada, o equilíbrio, que há muito vem sendo discutido, "entre duas exigências opostas, mas conciliáveis - ou seja, entre a exigência de certeza ou segurança, que a autoridade da coisa julgada prestigia, e a de justiça e legitimidade das decisões, que aconselha não radicalizar essa autoridade. Nessa linha: a ordem constitucional não tolera que se eternizem injustiças a pretexto de não eternizar litígios. A linha proposta não vai ao ponto insensato de minar imprudentemente a auctoritas rei judicatæ ou transgredir sistematicamente o que a seu respeito assegura a Constituição Federal e dispõe a lei. Propõe-se apenas um trato extraordinário destinado a situações extraordinárias com o objetivo de afastar absurdos, injustiças flagrantes, fraudes e infrações à Constituição - com a consciência de que providências destinadas a esse objetivo devem ser tão excepcionais quanto é a ocorrência desses graves inconvenientes." (Revista da Escola Paulista da Magistratura, v. 2, nº 2, p. 7-45, julho-dezembro/2001).
Para a eliminação dos efeitos da coisa julgada, alguns instrumentos processuais são recomendados pela doutrina, a saber, ação rescisória, mandado de segurança, embargos à execução e ação ordinária declaratória de nulidade absoluta. Trata-se, todavia, de tema controvertido, ainda longe de ser pacificado.
No que tange à desconsideração ou relativização da coisa soberanamente julgada, ou seja, decisão não mais passível de rescisão pela via da Ação Rescisória, o novel artigo 475-L, §1º, do Código de Processo Civil, trouxe a solução.
Primeiramente, cuido ressaltar a incongruência da expressão "relativização da coisa julgada", sendo certo que o ordenamento jurídico brasileiro, ao prever a Ação Rescisória como meio de desconstituição da coisa julgada, tratou de mitigar expressamente a autoridade da res iudicata. Como não se pode tornar relativizar o que é relativo, conclui-se que o §1º, do art. 475, do Codex de Ritos, veio apenas para ampliar essa relativização, considerando inexigível "o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal."
Em sendo assim, e por expressa previsão legal, é possível que a inconstitucionalidade seja alegada depois de esgotado o prazo previsto para a propositura da ação rescisória, no momento da impugnação ao cumprimento de sentença ou nos embargos à execução contra a Fazenda Pública (parágrafo único do art. 741, com idêntica redação do §1º, do art. 475, ambos do C.P.C.).
Pois bem.
Conforme já abordado, a CF-88 prescreve a "irretroatividade da lei em face da coisa julgada", não o "absolutismo da coisa julgada". O princípio do respeito à sentença que transita em julgado se lança na mesma hierarquia de outros princípios constitucionais instituídos pelo Poder Constituinte Originário. Logo, na colisão entre eles, devem ser conformados (ponderados) dentro de um juízo de proporcionalidade, acatando-se os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.
Quando o Supremo pronuncia a inconstitucionalidade de uma norma, opera como legislador negativo, pois a retira do ordenamento jurídico com eficácia ex tunc (de regra, pois é possível a modulação temporal dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade). Assim, não se pode admitir que uma sentença, fundada em norma que foi declarada pelo STF como jamais integrante do sistema, possa produzir efeitos. Não se deve esquecer, no entanto, que o aludido dispositivo teve o cuidado de restringir tal possibilidade às decisões do E. Supremo Tribunal Federal, não sendo possível acolher a impugnação com base no § 1º do art. 475-L se a inconstitucionalidade houver sido declarada por qualquer outro tribunal, no controle difuso, incidental.
Todavia, ainda persiste dúvida quanto à possibilidade de se aplicar o dispositivo nos casos em que o Supremo declara a inconstitucionalidade em sede de controle difuso, posto que o legislador não restringiu. Parece-nos, contudo, que seria mais seguro que esta jurisprudência parta de julgados produzidos em controle abstrato de constitucionalidade, ou no máximo em controle concreto firmado pelo Plenário da Corte Suprema (uma vez que, em ambas as hipóteses, os demais órgãos do Poder Judiciário ficam vinculados à decisão).
Essa não é, todavia, a opinião de Teori Albino Zavascki, ministro do Superior Tribunal de Justiça (ZAVASCKI, Teori Albino. Embargos à Execução com Eficácia Rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único do CPC. Revista de Processo, São Paulo, n. 125, p. 79-91, jul. 2005), para quem,
"Pouco importa, para os fins previstos no art. 741, parágrafo único do CPC, a época em que o precedente do STF foi editado, se antes ou depois do trânsito em julgado da sentença exeqüenda, distinção que a lei não estabelece. A tese de que somente se poderia considerar, para esse efeito, os precedentes supervenientes à sentença exeqüenda não é compatível com o desiderato de valorizar a jurisprudência do Supremo. Se o precedente já existia à época da sentença, fica demonstrado, com mais evidência, o desrespeito à sua autoridade.
É indiferente, também, que o precedente tenha sido tomado em controle concentrado ou difuso, ou que, nesse último caso, haja resolução do Senado suspendendo a execução da norma. Também essa distinção não está contemplada no texto normativo, sendo de anotar que, de qualquer sorte, não seria cabível resolução do Senado na declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto e na que decorre da interpretação conforme a Constituição. Além de não prevista na lei, a distinção restritiva não é compatível com a evidente intenção do legislador, já referida, de valorizar a autoridade dos precedentes emanados do órgão judiciário guardião da Constituição, que não pode ser hierarquizada em função do procedimento em que se manifesta. Sob esse enfoque, há idêntica força de autoridade nas decisões do STF em ação direta quanto nas proferidas em via recursal, estas também com natural vocação expansiva, conforme tivemos oportunidade de mostrar em sede doutrinária.
A recomendação da doutrina clássica - de que a eficácia erga omnes das decisões que reconhecem a in-constitucionalidade, ainda que incidentalmente, deveria ser considerado "efeito natural da sentença", está ganhando campo no plano legislativo e jurisprudencial. É assim na ação rescisória em matéria constitucional, conforme já se referiu, onde os precedentes do STF atuam com idêntica força, pouco importando a natureza do processo do qual emanam. É assim também para os fins do art. 481, parágrafo único do CPC, que submete os demais Tribunais à eficácia vinculante das decisões do STF em controle de constitucionalidade, indiferentemente de terem sido tomadas em controle concentrado ou difuso.
Deve-se aplaudir essa aproximação, cada vez mais evidente, do sistema de controle difuso de constitucionalidade ao do concentrado, que se generaliza também em outros países e que, entre nós, está conduzindo, no plano do direito infraconstitucional, ao reconhecimento da idêntica força de autoridade às decisões do STF, em qualquer das circunstâncias processuais em que são proferidas. Não é por outra razão, aliás, que vozes importantes se levantam para sustentar o simples efeito de publicidade às resoluções do Senado previstas no art. 52, X, da Constituição. É o que defende, em doutrina, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, para quem "não parece haver dúvida de que todas as construções que se vêm fazendo em torno do efeito transcendente das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional, com o apoio, em muitos casos, da jurisprudência da Corte, estão a indicar a necessidade de revisão da orientação dominante antes do advento da Constituição de 1988".
Ditas questões ainda estão longe de serem pacificadas, mas deverão ser analisadas pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas em face do §1º do artigo 475-L e do parágrafo único, do artigo 741, ambos do C.P.C. (com idêntica redação).
Acerca da eventual argüição de inconstitucionalidade dos mencionados dispositivos, temos que os mesmos não malferem a Constituição, posto não autorizarem o desfazimento ou a desconstituição da sentença ou do acórdão porventura inconstitucionais, ou seja, o pedido formulado quando da impugnação ao cumprimento de sentença, ou quando da oposição de embargos à execução, não será o de rescisão do decisum, mas tão somente o de reconhecimento da inexigibilidade do título.
Araken de Assis, ao debruçar-se sobre o tema, em seu Manual da Execução (11ª edição, atualizada com a Reforma Processual 2006-2007), parece ratificar esse entendimento. Observa que a norma "tornou sub conditione a eficácia de coisa julgada do título judicial que, preponderante ou exclusivamente, serviu de fundamento da resolução do juiz. Pode-se dizer, então, que toda sentença assumirá transparência eventual, sempre passível de ataque via embargos" (ou via impugnação ao cumprimento de sentença).
Assevera, ainda, sobre a origem da regra, que "o §79-2 da Lei do Bundesverfassungsgericht estabelece que, apesar de remanescerem íntegros os provimentos judiciais proferidos com base em lei pronunciada inconstitucional, torna-se inadmissível sua execução". "Essa disposição inspirou o art. 741, parágrafo único, do CPC brasileiro".
Percebemos que o efeito da inexigibilidade, in casu, assemelha-se ao da prescrição. O direito existe, mas não pode ser exigido por motivo superveniente. Permanece intacta a obrigação, mas o beneficiário não pode fazer uso da ação para exigir o seu cumprimento, ante a ausência de responsabilidade. Numa sentença condenatória existirá a obrigação (shuld), mas o obrigado não terá de cumpri-la (haftung). Enfim, a inexigibilidade imposta a uma sentença transitada em julgado não vulnera a coisa julgada (art. 5º, XXXXVI, da CF/88).
Entendendo-se assim, caso a obrigação venha a ser cumprida, a despeito de inexigível o título, não poderá o devedor pleitear a repetição do indébito, como seria possível em sede de ação rescisória.