Resumo: A imensidão territorial brasileira abriga centenas de etnias indígenas, cada uma com caracteres peculiares que não podem ser olvidados. O presente artigo objetiva fazer um paralelo entre os povos indígenas situados na região da Amazônia e os localizados no Sul do Brasil, mormente os encontrados no oeste de Santa Catarina, no que concerne ao seu desenvolvimento, organização, urbanização, politização, comportamento, eventuais conflitos agrários e interação com a sociedade. Busca-se, outrossim, fazer uma análise das consequências advindas das diversidades étnicas e comportamentais, que inexoravelmente resultará, ao longo do tempo, em graus diferentes de desenvolvimento com relação à capacidade de autodeterminação e entendimento, a influenciar na cognição e no exame da imputabilidade. Ademais, também é realizada uma análise acerca da normatização que regula os direitos dos indígenas, bem como de sua possível insuficiência diante do surgimento de diferentes graus de desenvolvimento cognitivo dos índios, bem como da omissão estatal acerca da demarcação das terras indígenas, o que resulta no denominado Estado de Coisas Inconstitucional, já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo do que ocorre no sistema carcerário brasileiro.
Palavras-chave: Amazônia, Desenvolvimento, Diversidade, Indígenas, Sul do Brasil.
INTRODUÇÃO
A população indígena há muito tempo sofre com a opressão praticada por categorias notadamente econômicas, que usam da violência para subjugá-los a fim de explorar as riquezas de suas terras. De tais condutas surgem reflexos não apenas sociais, mas também individuais nos comportamentos dos índios que, em especial na região da Amazônia, procuram cada vez mais se isolar objetivando não mais manter contato com a população intitulada de “civilizada”.
O presente artigo tem por escopo demonstrar que, conquanto haja uma maior concentração do povo indígena na região amazônica, há uma gradativa tendencia das etnias ao isolamento, decorrente dos traumas históricos sofridos pelos seus antepassados, sem olvidar da hodierna violência perpetrada por fazendeiros, grileiros, garimpeiros, etc.
O comportamento voltado ao isolamento social dos indígenas da Amazônia, inevitavelmente resultará em menor desenvolvimento social e cognitivo, se comparado com a população indígena situada no Sul do Brasil, mormente as localizadas na região oeste de Santa Catarina.
A longo prazo, os diferentes graus de desenvolvimento cognitivo das etnias indígenas, trarão como consequência uma insuficiência normativa no que concerne à tutela dos direitos dos índios que, acrescida à omissão estatal com relação à demarcação de suas terras, redundarão no denominado “Estado de Coisas Inconstitucional” na tutela dos correlatos direitos fundamentais.
Destarte, procurar-se-á com o presente estudo trazer uma reflexão acerca de tais questões, iniciando-se no primeiro capítulo com a demonstração das etnias indígenas localizadas na região amazônica e no Sul do Brasil. Posteriormente, o segundo capítulo irá tratar da concentração populacional indígena no Brasil, preponderantemente localizada na Amazônia.
Por sua vez, o terceiro capítulo irá discorrer acerca da influência da expansão urbana no desenvolvimento social e cognitivo dos índios e, em seguida, no quarto capítulo, serão relatadas as consequências dela decorrentes e que acarretam diferentes graus de intelecção dos povos indígenas.
Por fim, no quinto capítulo será feita uma análise a respeito da possível insuficiência normativa que poderá surgir ao longo tempo, precipuamente diante dos diversos níveis de desenvolvimento cognitivo e social da população indígena e da omissão estatal, a resultar no chamado “Estado de Coisas Inconstitucional”.
Pretende-se com o estudo realizado, trazer uma reflexão sobre o poder de influência da colonialidade e da opressão no comportamento do índio, de modo a interferir no desenvolvimento de uma população, a ponto de causar diferenças comportamentais que demandarão uma atuação normativa, judicial e concretizadora de direitos também diversificada.
1. DAS ETNIAS INDÍGENAS BRASILEIRAS
A população indígena é caracterizada por traços regionais que diferenciam as variadas etnias, sobretudo, os povos localizados na região da Amazônia se cotejados com os índios do Sul do Brasil. Destacam-se os situados na região oeste de Santa Catarina, com etnia Kaingang e pertencentes à Reserva Indígena Xapecó, pelo alto grau de desenvolvimento social, organização, urbanização, politização e demais caracteres que os diferenciam dos seus pares localizados na região amazônica.
É cediço que as populações se organizam e se desenvolvem de maneira diversa, uma vez que influenciadas por fatores geográficos, climatológicos, logísticos, relacionados à colonização, dentre outros, de modo que não seria diferente com relação aos povos indígenas.
No Brasil, espalhadas em todo o território, existem aproximadamente 256 (duzentos e cinquenta e seis) etnias, distribuídas em várias Terras Indígenas, concentrando-se na região Sul as seguintes: Charrua (RS), Guarani (RS/SC/PR), Kaingang (RS/SC/PR), Xetá (PR) e Xokleng (SC).
Na região amazônica, por sua vez, podem ser encontradas, ao menos até então conhecidas, as etnias Apurinã (AM/MT/RO), Arapaso (AM), Banawá (AM), Baniwa (AM), Barasana (AM), Bará (AM), Baré (AM), Borari (PA/AM), Deni (AM), Desana (AM), Dâw (AM), Hixkaryana (PA/AM), Hupda (AM), Jamamadi (AM), Jarawara (AM), Jiahui (AM), Juma (AM), Kaixana (AM), Kambeba (AM), Kanamari (AM), Karapanã (AM), Katuenayana (AM/PA), Katukina do Rio Biá (AM), Kaxarari (AM/RO), Katxuyana (AM/PA), Kokama (AM), Koripako (AM), Korubo (AM), Kotiria (AM), Kubeo (AM), Kulina (AM), Kulina Pano (AM), Makuna (AM), Maraguá (AM), Marubo (AM), Matis (AM), Matsés (AM), Miranha (AM), Mirity-tapuya (AM), Munduruku (AM/PA), Mura (AM), Nadöb (AM), Parintintim (AM), Paumari (AM), Pira-tapuya (AM), Pirahã (AM), Sateré Mawé (AM), Siriano (AM), Tariana (AM), Tenharim (AM), Ticuna (AM), Torá (AM), Tsohom-dyapa (AM), Tukano (AM), Tunayana (AM/PA), Tuyuka (AM), Waimiri Atroari (AM/RR), Waiwai (AM/PA/RR), Warekena (AM), Witoto (AM), Yanomami (AM/RR), Yuhupdeh (AM) e Zuruahã (AM). (POVOS INDÍGENAS NO BRASIL, 2021)
Surpreende a enorme diferença numérica das etnias indígenas situadas no Norte do Brasil, em especial na região amazônica que possui 63 (sessenta e três), enquanto no Sul ainda remanescem apenas 05 (cinco) povos.
No que se refere à região oeste de Santa Catarina, prevalece a etnia Kaingang, localizada na Terra Indígena Xapecó, entre os municípios de Ipuaçu, Bom Jesus e Entre Rios, que recebe o título de maior reserva indígena do Sul do Brasil (15.632 hectares), com 16 (dezesseis) aldeias distribuídas entre um pequeno grupo de guaranis, uma família de Xocleng e uma família de gurani xetá. (PORTAL DE TURISMO DE IPUAÇU, 2022)
2. DA CONCENTRAÇÃO POPULACIONAL DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL
Segundo dados encontrados no próprio site da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, o Censo Demográfico de 2010 revelou que, das 896 mil pessoas que se declaravam ou se consideravam indígenas, 572 mil (63,8%) viviam em área rural e 517 mil (57,5%) moravam em Terras Indígenas oficialmente reconhecidas, sendo que estudos apontam que ainda existiriam 77 (setenta e sete) povos totalmente isolados na região amazônica. (FUNAI, O Brasil Indígena, 2013, p. 3)
Ademais, conforme estudos do Instituto Socioambiental - ISA, as etnias que se destacam pelo maior número de habitantes no Brasil são: Guarani (85 mil); Ticuna (50 mil); Kaingang (45 mil); Macuxi (30 mil); Guajajara (27 mil); Terena (26 mil); Yanomami (26 mil); Xavante (18 mil); Potiguara (18 mil) e Pataxó (12 mil). (BEZERRA, 2022)
Não há dúvida, contudo, que o Norte é a região do Brasil com a maior população indígena do país, notadamente em 03 (três) municípios localizados no estado do Amazonas, quais sejam: São Gabriel da Cachoeira, com 29.017 índios contabilizados; São Paulo de Olivença, possuindo 14.947 indígenas; e Tabatinga, que concentra uma população com 14.855 índios.
A elevada concentração indígena na região amazônica decorre principalmente da maior preservação da flora e da fauna naquele ecossistema, de modo que o número populacional está intimamente ligado à manutenção de seu habitat natural e inversamente proporcional à expansão urbana.
A floresta amazônica, inclusive, demonstra-se um ambiente adequado ao isolamento de alguns povos indígenas que, conforme alhures mencionado, sequer foram contabilizados para fins científicos e estatísticos.
3. DA INFLUÊNCIA DA EXPANSÃO URBANA NA CULTURA INDÍGENA
Percebe-se que a expansão urbana ocorrida no Sul do Brasil, precipuamente em meados do século XX, propiciou uma maior integração com a população indígena, não apenas para aprofundar pesquisas empíricas, mas principalmente para inseri-los na sociedade dita como moderna e civilizada.
Referida integração resta mais do que evidente, quando se observa a Reserva Indígena Xapecó e a socialização dos índios Kaingang nos municípios de Ipuaçu, Bom Jesus e Entre Rios, bem como em outras cidades da região oeste catarinense.
A inserção na comunidade urbana é tamanha, que muitos comportamentos foram adotados, inclusive, objetivando a gestão da própria aldeia, a exemplo do que ocorreu nas “eleições indígenas de 2022”, que foi amplamente noticiada pela imprensa com o título “Em Ipuaçu, eleitores indígenas fazem filas para eleger o cacique, vice-cacique e capitão”. (BASTOS, 2022)
Constata-se, outrossim, a existência de intensos e constantes movimentos sociais comandados pelos caciques da Reserva Indígena Xapecó, mobilizando centenas de índios com o escopo de reivindicar direitos sociais, como o ocorrido no ano de 2019, quando a rodovia SC-480 foi bloqueada, no município de Ipuaçu, a fim de tutelar interesses relacionados à saúde. (CANAL IDEAL, Indígenas bloqueiam SC-480 em Ipuaçu, 2019)
Resta indubitável, portanto, que o povo indígena Kaingang não mais se encontra isolado e alheio às informações que dizem respeito aos seus interesses, demonstrando-se uma etnia que conhece profundamente o seu papel na sociedade e os direitos que tutelam a sua existência. Cita-se, como exemplo, outro movimento indígena ocorrido em 2016, quando igualmente a SC-480 em Ipuaçu foi bloqueada, agora para reivindicar direitos afetos à infraestrutura da aldeia e a demarcação de terras indígenas. (NDTV, Índios fazem manifestação em rodovia de Ipuaçu, 2016)
Vale ressaltar que o empreendedorismo também é destaque entre o povo Kaingang, uma vez que, no ano de 2019, o município de Ipuaçú sediou o “1º Encontro de Agricultores Indígenas da região Sul do país”, que ocorreu na Reserva Indígena Xapecó e que reforça a assertiva de sua total inserção na cultura e comportamento da sociedade organizada. (NDTV, Ipuaçu sedia primeiro encontro de agricultores indígenas do Sul do Brasil, 2019)
Do mesmo modo, demonstra-se frequente a participação política de algumas lideranças indígenas da Reserva Xapecó. Um famoso exemplo é do índio Orides Belino Correia, eleito vice-prefeito de Ipuaçu e que, desde o ano de 1977, também foi funcionário da Fundação Nacional do Índio – FUNAI. (TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL, 2003)
Por outro lado, em sentido diametralmente oposto à inserção e urbanização, encontram-se as etnias indígenas situadas na região da Amazonia que, em regra, vivem em total isolamento mantendo os seus costumes e as origens culturais, motivo pelo qual procuram evitar qualquer contato com a sociedade civilizada. Além disso, considerando a dificuldade de acesso proporcionada pela floresta amazônica, existem etnias que sequer foram descobertas e catalogadas.
4. DOS DIFERENTES GRAUS DE INTELECÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS
A imensidão territorial do Brasil e suas peculiaridades regionais, resultaram em níveis diferenciados de desenvolvimento e socialização dos inúmeros povos indígenas encontrados no país, que não pode passar despercebida e que demanda um estudo mais aprofundado relativo as suas razões, bem como concernente às consequências que poderão surgir de tais caracteres.
Além da dificuldade de acesso proporcionada pela floresta amazônica, outro aspecto é apontado para diferenciar o comportamento dos povos indígenas localizados na Amazônia se comparados com os da região Sul do Brasil. Noutros termos, há uma clara intenção dos índios da Amazônia no sentido de não manter contato com outros povos, o que não se visualiza na conduta dos indígenas localizados na região Sul, notadamente os pertencentes à Reserva Xapecó, em Ipuaçu.
Essa intenção voltada ao isolamento percebida na conduta dos índios da Amazônia, é possivelmente resultado da violência sofrida em tempos remotos, decorrente dos conflitos relacionados à invasão e destruição de sua floresta, local onde naturalmente residem. Por exemplo, quando da extração durante o ciclo da borracha, uma enorme quantidade de índios foi escravizada e morta, fato histórico que ocasionou feridas e traumas para algumas etnias.
Desse modo, as atrocidades sofridas pelos antepassados resultaram aos povos indígenas lembranças difíceis de esquecer e que ainda estão presentes em suas memórias, o que justifica a vontade de permanecer em contínuo isolamento e, até mesmo, em constante movimento a fim de não serem encontrados.
Sabe-se que algumas etnias são nômades, construindo e desfazendo suas moradias em poucas horas, a fim de permanecerem ocultas nas profundezas da floresta amazônica, em ininterrupta fuga aos opressores que no passado tentaram destruir sua população.
Ademais, alguns povos indígenas da Amazônia ainda sofrem nos dias atuais com constantes invasões de terras e violência perpetrada por grileiros, madeireiros, fazendeiros e garimpeiros que atuam clandestinamente, sem olvidar que são também “legalmente” ameaçados por grandes projetos de construção de estradas e hidrelétricas, a pretexto de proporcionar desenvolvimento social na região.
Não bastasse isso, ainda existem as ameaças decorrentes das doenças transmitidas pela população intitulada de civilizada, que podem dizimar completamente uma etnia indígena ante a sua baixa resistência imunológica e que, por consequência, acarreta ao povo uma condição de extrema vulnerabilidade sanitária.
As razões esposadas, por si só, são por demais suficientes para justificar o comportamento adotado por algumas etnias indígenas da Amazônia, objetivando o total isolamento e alheamento no que concerne aos demais povos, de modo que resta antropologicamente demonstrado o motivo pelo qual tais ações são voltadas precipuamente a fim de preservar a espécie.
Infere-se, ainda, que o fator colonialidade possui relevância também no desenvolvimento diferenciado dos povos indígenas espalhados nas diversas regiões do país, sobretudo, quando comparada a inserção das etnias localizadas na região amazônica e Sul do Brasil, a exemplo do que ocorre com os índios Kaingang da Reserva Indígena Xapecó.
Não obstante, é cediço que o desenvolvimento e inserção comunitária desuniforme das etnias indígenas brasileiras, poderá no decorrer do tempo acarretar situações de desigualdade social e cognitiva, de modo que a tutela de seus interesses deverá ainda permanecer diferenciada, a depender do grau de imputabilidade observado em cada população indígena.
Dessa forma, fazendo-se um cotejo do comportamento inclusivo dos índios Kaingang da Reserva de Xapecó e das etnias isoladas da região amazônica, não há dúvida que a longo prazo aquela população alcançará um tal nível de desenvolvimento cognitivo, que não haverá mais qualquer fundamento que justifique uma tutela diferenciada de seus interesses. Ao revés, os índios da Amazônia, considerando a total ausência de inclusão social, ainda demandarão uma maior proteção ante a sua permanente condição de silvícolas.
A demarcação de terras indígenas, com a consequente proteção estatal de seus marcos divisórios, poderia amenizar a postura amedrontada dos índios residentes na região da Amazônia e, quiçá, resultar a longo prazo numa espontânea vontade das respectivas etnias em procurar uma maior inserção social.
No entanto, a omissão do Poder Público na execução de políticas públicas voltadas à delimitação do território indígena, aumenta ainda mais a tensão social e os conflitos existentes entre a população indígena e grupos econômicos com interesses, legítimos ou não, em suas terras. Surge então um círculo vicioso, que traz como consequência cada vez mais medo e isolamento ao povo indígena da Amazônia.
Cabe asseverar que, entre os anos de 2017 e 2018, dos quase mil conflitos registrados na região amazônica, mais da metade (59%) ocorreram pela disputa de terras sem titulação legal, localizadas, na maioria dos casos, em comunidades tradicionais e indígenas cujos territórios não foram reconhecidos e demarcados.
Ressalta-se que, no mesmo período (2017 e 2018), foram praticamente nulas as ações de demarcação, sendo que das 1.306 terras reivindicadas pelos povos indígenas no Brasil, um total de 847 terras (o que representa 64%) apresenta alguma pendência do Estado para a finalização do processo demarcatório e o registro como território tradicional indígena na Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e, destas 847, um volume de 537 terras (63%) não teve ainda nenhuma providência adotada pelo Estado. (WENCZENOVICZ, 2019, p. 73)
Considerando que a Constituição Federal de 1988 determinou a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil até 1993, fica evidente uma completa omissão do Poder Executivo no cumprimento de sua obrigação constitucional.
Há uma contínua disputa agrária em terras indígenas na região da Amazônia, que prima facie não se demonstra tão frequente no Sul do Brasil, de modo que é premente a atuação do Poder Público a fim de amenizar os conflitos que se demonstram infindáveis, em prejuízo às etnias que, repisa-se, encontram-se cada vez mais amedrontadas e isoladas.
Considerando todos os argumentos esposados, tendo em vista a grande dificuldade encontrada na resolução dos conflitos fundiários em terras indígenas na Amazônia e, principalmente, diante da omissão estatal na sua demarcação, não se verifica um horizonte favorável a um desenvolvimento uniforme para todas as etnias indígenas existentes no Brasil.
À vista disso, revela-se imperiosa uma análise mais aprofundada das consequências desse desenvolvimento diversificado, que possui reflexos não apenas na inclusão social do índio na sociedade civilizada, mas principalmente em sua esfera cognitiva, a acarretar uma permanente situação de inimputabilidade ou incapacidade para se autodeterminar em suas relações com os demais cidadãos.
5. DA TUTELA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS RELATIVOS AOS ÍNDIOS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL
A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 231 e 232, possui um capítulo específico intitulado “DOS ÍNDIOS” para tratar dos seus interesses, em especial o relacionado às suas terras. Além disso, possui diversos dispositivos espalhados em seu texto normativo com idêntica finalidade.
Em nível infraconstitucional, foi editada a Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que “dispõe sobre o Estatuto do Índio”, estabelecendo em seu artigo 1º que referida norma “regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”.
A fim de executar as correlatas políticas públicas, no ano de 1967 foi também criada a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, notoriamente conhecida como sendo o órgão indigenista oficial do Brasil, sendo responsável por promover e proteger os direitos dos povos indígenas no território nacional, em consonância com o que preceitua a Constituição Federal.
Depreende-se da disposição normativa, portanto, que há uma preocupação, ao menos na esfera legislativa, no sentido de preservar a cultura do índio, contudo, sem olvidar de sua integração à sociedade, de forma progressiva e harmoniosa.
Destarte, revela-se inexorável que a desuniformidade de desenvolvimento e inclusão social dos povos indígenas nas diversas regiões do país, em especial os residentes na Amazônia, seja em decorrência do medo ou das dificuldades oriundas da imensidão da floresta, redundará numa permanente violação ao Ordenamento Jurídico vigente, criando-se um “estado de coisas inconstitucional” no que se refere à tutela do índio.
A Suprema Corte brasileira já reconheceu o “Estado de Coisas Inconstitucional”, como sendo a existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem alterar a situação inconstitucional. (STF, 2015)
No que concerne aos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente aos povos indígenas, não há dúvida da existência de um “Estado de Coisas Inconstitucional”, considerando a permanente omissão do Poder Público na implementação de políticas públicas relacionadas à demarcação das terras indígenas, bem como a consequente violação de normas que tutelam a integração e inclusão das respectivas etnias, que acarretarão num prejudicial desenvolvimento desuniforme das populações espalhadas em todo país.
A fim de solucionar essa violação sistêmica e reiterada aos direitos fundamentais dos povos indígenas no Brasil, demonstra-se necessário que haja, primeiramente, uma profunda alteração legislativa com a criação de normas que estejam adaptadas à atual realidade fática que envolve tal grupo de indivíduos.
Ademais, devem ser implementadas políticas públicas para a execução dos comandos normativos, em especial com a demarcação das terras indígenas e supervisão estatal no cumprimento dos marcos divisórios, com o escopo de delimitar o espaço territorial do índio e amenizar o medo que há muito tempo acomete principalmente as etnias localizadas na região da Amazônia.
Dessa forma, para afastar esse “Estado de Coisas Inconstitucional”, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário deverão agir em conjunto e, por óbvio, dentro de sua respectiva esfera de atribuição, para que sejam resguardados os interesses dos povos indígenas dentro do hodierno contexto social em que vivem, alterando-se a legislação vigente, implementando-se políticas públicas adequadas, sobretudo, relacionadas ao espaço territorial, com a consequente tutela judicial acaso ocorram eventuais violações a seus direitos.
Sabe-se, contudo, que o referido “Estado de Coisas Inconstitucional” demandará uma contínua e permanente atuação estatal, para que se inicie uma mudança coordenada de ações voltadas à uma inserção uniforme da população indígena na sociedade civilizada, sem que ocorram traumas e feridas a macular ainda mais essa população historicamente oprimida.
Não obstante a atuação estatal objetivando o desenvolvimento e inclusão social uniforme da população indígena no Brasil, não se pode olvidar da manutenção dos costumes e da cultura que há séculos é passada de geração a geração dentro de determinada etnia, de modo a não suprimir valores e comportamentos que estão intrinsicamente ligados a determinado povo, sob pena de indiretamente resultar em genocídio cultural ou memoricídio.
A memória cultural de todos os povos deve ser mantida, não apenas a concernente aos indígenas, razão pela qual o desenvolvimento cognitivo e social do índio não poderá acarretar no esquecimento de sua origem cultural, de modo a apagar a transmissão de conhecimento que há séculos ocorre apenas verbalmente, sem qualquer anotação escrita a eternizar os seus valores.
Não há como deixar de perceber a existência de falha estrutural na implementação de direitos relacionados ao índio, bem como a complexidade na exigência da atuação estatal para a consecução de tal desiderato, motivo pelo qual se faz necessário serenidade e paciência para que, a longo prazo, o contexto fático-jurídico seja alterado.
A despeito de tal afirmação, é cediço que a sociedade civil organizada igualmente procura tutelar os interesses dos índios, a exemplo do denominado “Fundo Brasil”, que em seu website relata ter por objetivo “viabilizar uma linha de apoio emergencial exclusiva para atender, em parceria com a APIB, lideranças indígenas ameaçadas e em situação de risco em função da sua luta por direitos e em defesa das terras indígenas”. (FUNDO BRASIL, 2022)
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, por sua vez, trata-se também de uma organização não-governamental, que se autointitula “uma instância de aglutinação e referência nacional do movimento indígena no Brasil, que nasceu com o propósito de: fortalecer a união dos povos indígenas, a articulação entre as diferentes regiões e organizações indígenas do país; unificar as lutas dos povos indígenas, a pauta de reivindicações e demandas e a política do movimento indígena; mobilizar os povos e organizações indígenas do país contra as ameaças e agressões aos direitos indígenas.” (APIB, 2022)
Além das mencionadas, existem outras inúmeras organizações da sociedade civil engajadas com a tutela dos direitos dos indígenas, notadamente por visualizarem a dificuldade do Poder Público para, isoladamente, executar políticas públicas voltadas à proteção e inserção dessas etnias. (OBSERVATORIO DO TERCEIRO SETOR, 2021)