CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eu penei, mas aqui cheguei
("Pau-de-Arara" - Luiz Gonzaga)
O sistema internacional passa por um momento de profundas mudanças que se refletem, principalmente, nas relações dos atores envolvidos nos processos negociais e na estruturação de sua base de poder. A hegemonia, entretanto, não pode ser exercida somente através de meios materiais, financeiros e tecnológicos. É imprescindível que ela atue igualmente no campo dos valores, ou seja, da ideologia – uma concepção do intelecto que elabora uma teoria acerca da situação segundo seus interesses, valores e atitudes.
O desenvolvimento dos meios de comunicação e o fim dos antigos sistemas políticos, associados ao aumento e diversificação dos fluxos econômicos, sociais e culturais, implicaram em uma nova configuração do cenário mundial. Essa integração organizada, entre uma multiplicidade de economias nacionais, requer um mecanismo de interface de mediação, inclusive porque o comércio entre os países tem como uma de suas bases as diferenças de vantagens comparativas entre as economias. A OMC é esse mecanismo.
Tal mecanismo é fundamental porque o mercado nunca é perfeito e não opera no vazio. Requer uma moldura jurídica que exprime realidades políticas e econômicas. Além disso, se o mercado e a competição podem ser vistos como uma luta de todos por todos – é a tese do doux commerce – é também, simultaneamente, a luta de todos contra todos. Imprescindível é que o comércio internacional transforme-se numa alavanca do desenvolvimento e da redução das desigualdades sociais e, portanto, que a liberalização não se faça a qualquer preço.
A idéia diretiva da OMC é a de que a gestão dessa relação, de conflito e cooperação, deve ser um jogo que tem normas, compartilhadas por todos que dele participam e vistas por todos como as de um fair play. Nesse sentido, o patrimônio da OMC não são recursos, mas sim a credibilidade, a aceitabilidade e a observância de suas normas.
Nesse sentido, o campo das soluções pacíficas de controvérsias internacionais sempre ocupou um lugar de destaque no Direito Internacional Público, pois representam um duplo papel nas relações internacionais: solucionar questões controvertidas entre Estados, e, ao mesmo tempo, servir de prevenção a que estes recorram a medidas extremas, que importam na própria negação do Direito Internacional, como o uso de represálias econômicas ilegítimas, de ameaça ou uso de represálias militares, até uma situação de guerra declarada.
Cabe, pois, uma avaliação – tendo em vista a evolução histórica – da perspectiva acerca da possibilidade da promoção de alterações no ESC, de forma a se reformular o rol de sanções disponíveis no sistema de solução de controvérsias da OMC.
No ponto de partida do GATT, os governos das partes contratantes tinham como cara a liberdade para desobedecer as suas regras, o que gerou, em meio a alguns sucessos, uma grande lista de fracassos do sistema que antecedeu ao hoje vigente na OMC. Acreditava-se que o sistema de solução de controvérsias funcionaria melhor se o membro demandado participasse de forma estritamente voluntária, sendo contraproducente tentar forças os governos a adotar decisões que eles não estariam aptos a cumprir voluntariamente.
A mudança de atitude, que levou à aprovação do texto do ESC atualmente em vigor, operou-se em virtude da crescente utilização, pelos Estados Unidos, de mecanismos internos para adjudicar questões de descumprimento, por outras partes do GATT, de suas obrigações previstas naquele acordo, o que levava à imposição unilateral de sanções contra as partes tidas como em violação das normas do GATT. O atual texto do ESC nasceu nesse contexto, passando a servir, a partir de sua entrada em vigor em 1995, a uma clientela bastante relutante, que ainda tinha sérias reservas à obediência de decisões de órgãos adjudicatórios internacionais.
Dessa forma, a conclusão é a de que o sistema de tomada decisões hoje vigente na OMC impede a realização de uma reforma do ESC que seja significativa a ponto de incluir inovações quanto às sanções previstas. Isto ocorre porque: (a) o Acordo Constitutivo da OMC prevê um quorum unânime para a alteração do texto de seu Anexo 2, o ESC; (b) os países desenvolvidos possuem constante aversão a submeter-se a qualquer tipo de votação em que estejam envolvidos países em desenvolvimento; (c) não há acordo entre os próprios países desenvolvidos quanto a diversas questões fundamentais referentes ao comércio mundial; (d) alguns congressistas norte-americanos possuem o pensamento de que a opção de descumprimento, hoje disponível aos países ricos, é indispensável à proteção mínima da soberania dos membros da OMC.
Configura-se assim a forte resistência a qualquer tentativa de se conferir mais eficácia ao sistema de solução de controvérsias da OMC, através da indução de demandados ao cumprimento de decisões, não havendo qualquer avanço concreto no sentido de se alterar o atual regime das contramedidas.
Não obstante, a questão continua na pauta de negociações, o que mantém aberta a possibilidade de, uma vez obtido o grau de consenso necessário, ser alterado o corrente sistema de retaliação no mecanismo de solução de controvérsias da entidade.
No tocante ao sistema de solução de controvérsias adotado no âmbito da OMC – o Dispute Settlement Body – pode até restar a imagem de que tal sistema é ineficaz, uma vez que as decisões dele emanadas, por si só, não são capazes de conferir plena satisfação aos que recorrem ao mesmo, haja vista a duvidosa utilidade do poder de retaliar concedido ao vencedor.
Essa imagem, todavia, não corresponde à realidade. Aos se analisar a forma como o DSB se encontra estruturado, verifica-se que o mesmo não foi efetivamente concebido para autorizar a aplicação de sanções – não se destinando a funcionar como uma espécie de "poder de polícia". Ao revés, em todos os seus termos, o Entendimento relativo às normas e procedimentos sobre Solução de Controvérsias prioriza a solução negociada e as consultas bilaterais entre as partes envolvidas, na tentativa de promover o entendimento e evitar que os conflitos comerciais evoluam para o quadro crítico de sanções e retaliações comerciais. Ressalte-se que, na medida do possível, o OSC vem obtendo êxito nesse campo.
O fato de o sistema de solução de controvérsias da OMC conter imperfeições, e, sobretudo, de ainda não oferecer mecanismos que permitam conferir satisfação integral às partes prejudicadas por condutas contrárias aos acordos comerciais firmados, não retira a sua importância no cenário do comércio internacional, nem tampouco o coloca em uma situação sob suspeita. Sua atuação vem sendo pautada na estrita observância das normas contidas nos acordos firmados. Se tais acordos, contudo, não atendem às necessidades dos países em desenvolvimento, notadamente, quanto à questão dos subsídios, o foco deve ser a modificação desses acordos, e não a discussão em torno da importância e da lisura de um sistema de solução de controvérsias.
O sistema não se encontra totalmente livre de pressões ou influências, principalmente na fase de implementação das decisões proferidas, mas essa situação é inerente à própria história da humanidade e, até mesmo, da própria natureza, em que o mais apto exerce o domínio sobre os menos preparados. O que se busca é o controle dessa situação, amenizando-a e enquadrando-a numa ótica de igualdade e interdependência, em que a condição de prevalência esteja indissociavelmente atada às regras previamente estabelecidas e, dessa forma, conseqüentemente neutralizada. Se um sistema de solução de controvérsias consegue, ao menos, reduzir e neutralizar, na medida do possível, esse desequilíbrio de forças, já está cumprindo boa parte de seus objetivos, contribuindo para uma certa organização e forma às relações comerciais internacionais, o que trará, inegavelmente, benefícios para a ordem política mundial.
Em virtude dessa busca da equalização de medidas comerciais e forças políticas, se, de um lado, a globalização favorece a maioria, constitui, em oposição, perdedores que tendem a se organizar em blocos turbulentos. Existe ainda uma acirrada disputa por recursos naturais, que pode acarretar medidas protecionistas e até mesmo conflitos armados – foi o que desencadeou a Primeira Guerra Mundial e interrompeu um período de globalização capaz de rivalizar com o atual. Nesse viés, a história ensina um perigoso paradoxo: a abertura comercial ajuda as nações a prosperar, mas a prosperidade das nações não é garantia de que a abertura se amplie, nem sequer de que se mantenha. [46]
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