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Cooperação como princípio constitucional positivo

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4.FUNÇÕES DO PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO

Uma vez tendo concluído pela real existência do princípio da cooperação, resta fazermos comentários sobre as funções que ele pode desempenhar dentro do sistema normativo constitucional brasileiro. Isso porque entendemos não ser aceitável interpretarmos qualquer norma contida no ordenamento jurídico sem nos remetermos à Constituição, já que, segundo Kelsen, é ela "que deve sustentar o fundamento de validade da ordem jurídica como um todo" [25]. Explica-se.

Primeiramente, como norma programática, entendida como aquela que requer dos órgãos estatais uma determinada atuação, na consecução de um objetivo traçado pelo legislador constituinte (como o próprio nome diz, um programa), o princípio da cooperação é norma de eficácia contida (segundo a classificação do Prof. José Afonso da Silva). Isso porque o constituinte "em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a lhes traçar os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legisladores, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado" [26]. Cabe ressaltar que todas as vezes que o legislador concretiza o programa nele previsto, o princípio da cooperação perde sua natureza de norma programática e passa a ter plena eficácia, dentro dos limites contidos na lei editada. É o exemplo da Lei 5.764/71, que foi recepcionada em grande parte pela Constituição de 1988, e o da Lei 8949/94, que incluiu o parágrafo único ao art. 442 da CLT, que visam incentivar o cooperativismo como impõe o § 2º do art. 174 da Constituição Federal.

Entretanto, ainda que sendo norma programática, o princípio da cooperação requer do legislador, (in)diretamente, uma determinada atuação, qual seja a de sempre visar o incentivo ao cooperativismo. Por isso, não se pode pensar em qualquer projeto de lei que tenha por escopo desestimular o cooperativismo, ou submetê-lo ao controle ou autorização estatais, porque a Constituição impõe o seu incentivo e, logicamente, proíbe qualquer legislação a ele contrária, sob pena de patente inconstitucionalidade. Trata-se da eficácia negativa das normas constitucionais programática, pela qual este tipo de norma, "embora não produzam seus plenos efeitos de imediato, são dotados da chamada "eficácia negativa", isto é, revogam as disposições em contrário aos seus comandos e impedem a produção de legislação ulterior em disparidade com o programa por elas estabelecidos" [27].

Então, fica estabelecida a primeira função do princípio da cooperação, que é a de tornar inconstitucional qualquer norma existente no sistema que vise desestimular - seja de que forma for – o cooperativismo.

Segundo, como princípio jurídico constitucional (no dizer de José Afonso da Silva), o princípio da cooperação, assim como qualquer outro, exerce as funções informadora (interpretativa) e normativa.

Como informador do sistema, o princípio da cooperação auxilia na interpretação jurídica. Se interpretar é explicar, explanar ou aclarar o sentido da lei, os princípios teriam o papel de ajudar nesta atividade. Por exemplo, quando o art. 90 da Lei 5.764/71 dispõe que "qualquer que seja o tipo de cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados", pode suscitar no intérprete o sentimento de que tal norma estaria inconstitucionalmente afastando os cooperados da proteção trabalhista, no entanto o princípio da cooperação informa que o constituinte dispensou tratamento especial à atividade cooperativa, isto porque viu nela uma valorosa forma de trabalho, mais vantajosa que o trabalho subordinado (emprego formal).

Atuando como norma subsidiária, fonte formal supletiva (como diz Maurício Godinho Delgado), os princípios entrariam em cena para - num caso concreto, onde não existisse norma principal do ordenamento a regulamentá-lo - exercerem a função de norma. Neste diapasão, por exemplo, caso um Ente da Federação determinasse a isenção de certo ramo de cooperativas quanto ao pagamento de um tributo qualquer, com vistas a "incentivar o cooperativismo" e se, neste caso, a concorrência (capitalista) se insurgisse contra tal escolha com a alegação de que não existiria norma geral determinando tal isenção e que isso contrariaria o princípio da legalidade e da livre-concorrência; na falta de norma principal para resolver o conflito, o princípio da cooperação vem integrar o sistema e possibilitar ao aplicador do direito decidir em favor da isenção às cooperativas. No conteúdo deste princípio, pois, está contida a idéia de adequado tratamento tributário ao ato cooperativo (art. 146, III, c da Constituição) – o que já tivemos a oportunidade de comentar.

Finalmente, exercendo a função "normativa própria"(consoante Godinho Delgado) concorrendo com as demais regras legais, como verdadeira "super-fonte" do direito, o princípio da cooperação é responsável pela extensão, restrição ou até mesmo esterilização do conteúdo de uma determinada regra(norma) analisada. Citemos, a título de exemplo, o emblemático caso do parágrafo único do art. 442 da CLT, que derrogou o já citado art. 90 da Lei 5.764/71, que contém o mesmo conteúdo deste último, motivo pelo qual se mostrou despiciendo. Isso porque "o associado cooperativista não é empregado não porque o parágrafo assim vem a dispor, mas porque, quando cumpridos os ideais cooperativistas, a realidade não se ajustava ao disposto nos arts. 3º e 4º da Carta Trabalhista" [28].

Ao interpretar o indigitado parágrafo do artigo consolidado, muitas pessoas – carregadas de más intenções – entenderam que ele possibilitou a intermediação de mão-de-obra por meio de trabalhadores organizados em (falsas) cooperativas, o que não é verdade. O princípio da cooperação restringiu o alcance desta regra, ao deixar claro aos aplicadores do direito que a Constituição protege somente a legítima atividade cooperativa - qualquer que seja o ramo em que atue - consentânea com os princípios do cooperativismo, especialmente os da "adesão livre e voluntária", da "participação econômica do sócio", do "controle democrático exercido pelos sócios" e da "autonomia e independência", os quais não são encontrados na esmagadora maioria das artificialmente constituídas "cooperativas" de mão-de-obra que surgiram após a entrada em vigor do parágrafo do art. 442 da CLT.

Com isso, terminamos de responder o segundo de nossos questionamentos iniciais, vez que restou claro que o princípio da cooperação funciona, ao mesmo tempo, como norma programática munida de eficácia negativa, e também como Princípio Informador e Normativo, na forma aqui delineada.

Por fim, acredita-se que o princípio da cooperação atue também como um "mandado de otimização" (como denomina Robert Alexy) da ordem jurídica, verdadeiro fator de equidade com o fito de abrandar o sentido objetivo das normas. A "aequitas", entendida como sentimento de justiça avesso a um critério de julgamento ou tratamento rigoroso e estritamente legal das normas, é indispensável para a realização da justiça, não devendo os juristas descurarem da referência maior do direito – Justiça para todos – buscando pautarem sua atuação continuamente sobre a égide daquela (a equidade).

Nesta senda, por exemplo, é do conhecimento de todos que muitas cooperativas, principalmente aquelas voltadas para o beneficiamento mais social do que econômico de seus membros, que muito raramente geram sobras (o lucro para a empresa capitalista), tais como as do Ramo Educacional (quando formadas por pais de alunos) ou do Ramo Especial, não possuem grandes fundos de reserva e nem bens suficientes para arcarem com despesas urgentes e imprevisíveis sem comprometerem o bom andamento de suas atividades, como os ônus de uma possível execução contra si. Tomando como fundamento o princípio da cooperação e o status que a Constituição deu ao cooperativismo, poderia o juiz com equidade, no exemplo dado, inverter a ordem do art. 655 do CPC e fazer com que a penhora recaísse sobre "móveis" ou "veículos", por oportuno, ao invés de imediatamente determinar o seqüestro do dinheiro (art. 655, I do CPC) nas contas da entidade. Muitas das vezes, uma decisão como essa pode evitar que uma legítima cooperativa "feche as portas" e que uma centena de trabalhadores/cooperados perca a oportunidade de se beneficiar com os serviços prestados pela entidade, relegando-os à situação anterior de submissão às mazelas do capitalismo neoliberal.

Com efeito, essa é apenas mais uma forma de utilização do princípio da cooperação no ordenamento jurídico brasileiro, cujos fins são amplamente viáveis e consentâneos com o comando constitucional. Entretanto, sua aplicação exigirá coragem e vontade dos operadores do direito a fim de lutarem contra as desigualdades, injustiças e falta de solidariedade no seio da sociedade brasileira.

É mister ressalvar, no entanto, que a aplicação do princípio da cooperação, a exemplo de todo e qualquer princípio constitucional – quer seja explícito, quer implícito – não é absoluta, pois depende de sua ponderação, em cada caso concreto, com outros princípios também constitucionalmente previstos. O importante é sempre visar o interesse social, pois este é, em última análise, a ratio essendi do Estado Democrático de Direito.


5.CONCLUSÃO

A participação das cooperativas no sistema social e econômico do país é de suma importância, principalmente porque possibilitam a redução das desigualdades regionais e sociais, promovem o bem de todos, sem preconceitos de qualquer ordem e ajudam a construir uma sociedade livre, justa e solidária, valorizando a livre iniciativa e o trabalho humano, que são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil contidos no art. 3º da Carta Política de 1988.

Pelos motivos apresentados justificamos a escolha do legislador constituinte em dispensar especial proteção ao cooperativismo, o que nos fez concluir pela existência do princípio da cooperação como princípio geral contido na Constituição. A nossa preocupação cinge-se ao fato de que o princípio da cooperação deve nortear toda a atividade estatal, quer seja legislativa (como "princípio-norma" programática), quer seja administrativa e judiciária (como princípio informador ou normativo subsidiário ou concorrente). Esperamos ter alcançado o objetivo de fomentar este debate.

É indispensável haver uma conscientização de que somente com as ações estatais voltadas para a consecução do princípio da cooperação, onde se busque o seu real conteúdo, função e ampliar sua utilização no ordenamento jurídico brasileiro, é que se pode proporcionar o desenvolvimento do legítimo cooperativismo - como parece ser a vontade ("mens legis") do constituinte originário - com vistas à redução das desigualdades e a construção de um Brasil mais justo e solidário.


REFERÊNCIAS

BECHO, Renato Lopes. Tributação das cooperativas. 2 ed. São Paulo: Dialética, 1999.

CAMPELO, Estenio. Cooperativas de trabalho: relação de emprego. Brasília: Brasília Jurídica, 2005.

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CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Cooperativas de mão-de-obra: manual contra a fraude. São Paulo: LTR, 2002.

COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 4 ed. São Paulo: LTr, 2005.

FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999.

GIL, Vilma Dias Bernardes. As novas relações trabalhistas e o trabalho cooperativo. São Paulo: LTR, 2002.

HOUAISS, Antônio, et. alli. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1993.

SILVA, Paulo Renato Fernandes da. Cooperativas de trabalho, terceirização de mão-de-obra e direito do trabalho. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.


NOTAS:

01 HOUAISS, Antônio, et. alli. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. P. 2299.

02 HOUAISS, Antônio, et. alli. ob. cit.

03 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTR, 2005. P. 187.

04 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. P. 230.

05 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1993. P. 85.

06 SILVA, José Afonso da. ob. cit.

07 SILVA, José Afonso da. ob. cit.

08 SILVA, José Afonso da, ob. cit.. P. 86.

09 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado. ob. cit.

10 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado, ob. cit. P. 188.

11 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado. id ibidem.

12 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado, ob. cit. P. 189.

13 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado. ob. cit. P. 190.

14 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado. ob. cit. P. 191.

15 BECHO, Renato Lopes. Tributação das cooperativas. 2 ed. São Paulo: Dialética, 1999. P. 96.

16 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999. P. 281.

17 GIL, Vilma Dias Bernardes. As novas relações trabalhistas e o trabalho cooperativo. São Paulo: LTR, 2002. P. 241.

18 PINHO apud GIL, Vilma Dias Bernardes. ob. cit. P. 141.

19 PINHO apud GIL, Vilma Dias Bernardes. id. ibidem.

20 PINHO apud GIL, Vilma Dias Bernardes. idem.

21 SILVA, Paulo Renato Fernandes da. Cooperativas de trabalho, terceirização de mão-de-obra e direito do trabalho. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. P. 44.

22 SILVA, Paulo Renato Fernandes da. ob. cit. P. 54.

23 SILVA, Paulo Renato Fernandes da. ob. cit. P. 50.

24 CAMPELO, Estenio. Cooperativas de trabalho: relação de emprego. Brasília: Brasília Jurídica, 2005. P. 26.

25 COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 12.

26 PAULO, Vicente. Aulas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. P. 63.

27 PAULO, Vicente. ob. cit. P. 64.

28 CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Cooperativas de mão-de-obra: manual contra a fraude. São Paulo: LTR, 2002. P. 19.

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Sobre o autor
José Carlos Bastos Silva Filho

Advogado.Procurador do Estado do Piauí.Professor. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão.Especialista em Docência do Ensino Superior pelo Instituto Labora/ Universidade Estácio de Sá-RJ. Especialista em Direito Processual do Trabalho pela OAB/ESA-MA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA FILHO, José Carlos Bastos. Cooperação como princípio constitucional positivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1516, 26 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10325. Acesso em: 29 mar. 2024.

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