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Responsabilidade subjetiva com presunção de culpa do empregador nos casos de acidente de trabalho

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26/08/2007 às 00:00
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O modelo da culpa presumida do empregador no acidente de trabalho

            Dizer que a responsabilidade do empregador nos acidentes de trabalho é subjetiva, isto é, dependente da comprovação de culpa patronal, não significa que não se possa presumir a culpa do empregador pelo infortúnio laboral. Aliás, sugere-se neste trabalho que a culpa do empregador nas ações acidentárias deve ser presumida.

            Ao se presumir a culpa do empregador, o que se faz é exigir dele, e não mais do subordinado jurídico que se acidentou, a comprovação do cumprimento da legislação de saúde e segurança no trabalho. Apenas isso. Não se trata de exigir do empregador a produção de prova negativa, já que, v.g., os cuidados com o ambiente de trabalho, a manutenção de máquinas, o treinamento do empregado, a exigência de utilização de equipamentos de proteção individual etc são fatos facilmente comprovados mediante documentos que são especificamente produzidos para esses fins ou por intermédio da produção de prova testemunhal facilmente obtida, considerando-se que as testemunhas serão os próprios empregados da empresa-ré.

            Sob outro prisma, quando não se adota o modelo da culpa presumida do empregador, o trabalhador é quem deve produzir a prova testemunhal, pois não possui acesso aos documentos da empresa. Essa exigência, com a máxima vênia, é extremamente prejudicial ao hipossuficiente, já que as testemunhas, em geral, são empregadas do Reclamado e, num contexto de desemprego alarmante, sentem-se psicologicamente pressionadas a não depor em desfavor de seu empregador, o que poderia prejudicar, senão seu emprego, sua carreira profissional.

            Ademais, quando o trabalhador acidentado consegue uma testemunha destemida para depor, na maioria das vezes ela desconhece os detalhes que a legislação de saúde e segurança no trabalho exige do empregador, podendo relatar, no máximo, o não-fornecimento ou a não-fiscalização da utilização de equipamentos de proteção individual, ou ainda a ausência de treinamento.

            De outro lado, a justificar o modelo da culpa presumida está a obrigatoriedade legal que tem o empregador de evitar a ocorrência do acidente de trabalho. Tal o que determina o artigo 157 da CLT, in verbis:

            "Art. 157. Cabe às empresas:

            I – cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho;

            II – instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais;

            III – adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão regional competente;

            IV – facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente."

            O simples fato de o empregador contribuir sozinho para o Seguro de Acidentes de Trabalho – SAT, fonte do direito ao benefício previdenciário acidentário, não é suficiente para reparar o acidente que, além de incapacitar, mutila o empregado física e psicologicamente.

            Outrossim, o empregado afastado pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS em decorrência do acidente de trabalho percebe apenas 91% (noventa e um por cento) de seu salário-de-contribuição [17], menos, portanto, que sua remuneração na empresa, e ainda deverá desembolsar numerário com deslocamentos, medicamentos e consultas médicas.

            Com efeito, o intuito da legislação de segurança e saúde no trabalho, prevista na Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, nas Normas Regulamentares do Ministério do Trabalho e Emprego e nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho adotadas pelo Brasil, é o de prevenir os acidentes de trabalho, preservando, com isso, a saúde e a integridade física e psíquica do trabalhador.

            Ao descumprir as referidas normas, o empregador incorre em contravenção penal, devendo arcar com o pagamento de multa, prevista tanto no artigo 19, §2º, da Lei nº 8.213/91 [18] quanto no artigo 201 da CLT [19]. Porém, não é só. Se ocorrer um acidente de trabalho por negligência do empregador, caberá ao INSS promover ação regressiva relativa aos valores pagos em favor do segurado acidentado, a título de auxílio-doença acidentário [20]. Ainda, a depender da gravidade do acidente, responderá o empregador por homicídio, tentativa de homicídio, lesão corporal grave etc.

            Ora, se a ocorrência de um acidente de trabalho tem reflexos tão graves para o empregador na seara jurídica, nada mais natural que lhe exigir, em determinada ação cujo objeto é a reparação de danos materiais e morais ao acidentado, a comprovação de observância estrita da legislação preventiva constante do ordenamento jurídico pátrio.

            Fazendo-se um paralelo com as hipóteses de acidente de trânsito, é pacífico no meio social hoje em dia, por força da maciça jurisprudência a respeito, que se presume a culpa de quem bate com seu carro na traseira do veículo imediatamente à sua frente. Isso porque a legislação de trânsito prevê o dever do motorista de manter distância regulamentar do veículo da frente, além da obrigação de observar o limite de velocidade máxima previsto para a rodovia. Cabe ao motorista de trás, por conseguinte, provar que não teve culpa do acidente, vale dizer, provar que observou a legislação de trânsito vigente. Por que não é exigido o mesmo nas hipóteses de acidente de trabalho?

            Na verdade, a busca da solução (justiça) para o grande número de improcedências das ações acidentárias passa mais pelo sistema processual relativo ao ônus da prova do que pela teoria da responsabilidade adotada para julgamento da ação acidentária.

            Nesse particular, é relevante relembrar que, recentemente, ao interpretar o artigo 114, VI, da Lei Maior na sessão de julgamento do Conflito de Competência nº. 7.204 (Relator Ministro Carlos Britto, DJ de 9.12.2005), o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal proclamou a competência material da Justiça do Trabalho para julgar as ações de reparação de danos moral e material, que envolvam empregado e empregador, por acidente de trabalho.

            Ora, o direito à indenização acidentária é um direito tipicamente trabalhista, previsto na Lei Maior (artigo 7º, XXVIII) no capítulo II, intitulado "Dos direitos sociais". Assim, o ônus da prova, nas causas acidentárias, deve ser regido pelo artigo 818 da CLT, que dispõe, in litteris: "A prova das alegações incumbe à parte que as fizer".

            Como bem observa Manoel Antônio Teixeira Filho:

            "A CLT ao estatuir, no art. 818, que ´´A prova das alegações incumbe à parte que as fizer´´, demonstra, à evidência plena, que possui dicção expressa e específica sobre a matéria, desautorizando, desta maneira, que o intérprete – a pretexto de que o art. 769 do mesmo texto o permite – incursione pelos domínios do processo civil com a finalidade de perfilhar, em caráter supletivo, o critério consubstanciado no art. 333 e incisos. Não seria equivocado asseverar-se, portanto, que tais incursões são irrefletidas, pois não se têm dado conta de que lhes falece o requisito essencial da omissão da CLT." [21]

            Com efeito, nas ações acidentárias em geral, o trabalhador narra inicialmente como ocorreu o acidente (quase sempre incontroverso) e atribui a culpa ao empregador. Que culpa seria essa? Culpa pelo descumprimento da legislação referente à saúde e segurança no trabalho. Em sede de contestação, o empregador, quando não tenta atribuir a culpa exclusiva pelo acidente ao empregado, no mínimo diz que observou a integralidade da legislação protetiva. Em suma, o empregado diz que "não houve descumprimento da legislação" e o empregador diz que "houve descumprimento da legislação".

            Como se observa, ambas as partes fazem alegações, só que inversas. Seria correto, então, à luz do artigo 818 da CLT, atribuir o ônus da prova ao empregado, somente porque ele é o autor da ação? Certamente que não. Isso não só em função dos argumentos de que o artigo 818 da CLT não atribui ao autor da ação o ônus da prova e pela circunstância de o autor ser o hipossuficiente na relação jurídica trabalhista, mas especialmente porque o empregador é muito mais apto a produzir as provas pertinentes ao cumprimento da legislação de segurança e saúde no trabalho, que, por força de lei, lhe compete observar.

            Como já mencionado, o empregador é o detentor de toda a documentação pertinente ao meio ambiente de trabalho, aos eventuais treinamentos e recibos de aquisição de equipamentos de proteção individual, além de as testemunhas serem (maioria) ou terem sido (minoria) seus empregados. Como é possível constatar, não se trata de inversão do ônus da prova, razão pela qual não é necessário invocar-se o artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor [22] para se exigir do empregador tal conduta. Trata-se apenas de facilitação da produção das provas, em busca da verdade real (não apenas formal, como no direito civil).

            Portanto, é absolutamente coerente o entendimento do professor Manoel Antônio Teixeira Filho, segundo o qual:

            "Concluímos, portanto, que o art. 818 da CLT, desde que o intérprete saiba captar, com fidelidade, o seu verdadeiro conteúdo ontológico, deve ser o único dispositivo legal a ser invocado para resolver os problemas relacionados ao ônus da prova no processo do trabalho, vedando-se, desta forma, qualquer invocação supletiva do art. 333, do CPC, seja porque a CLT não é omissa, no particular, seja porque há manifesta incompatibilidade com o processo do trabalho.

            Discordamos, por essa razão, dos que sustentam ser o art. 818 da CLT, insuficiente para disciplinar a distribuição da carga probatória entre os litigantes (com o que se insinua a necessidade de incidência complementar da norma processual civil). Interessante é observar que essa insuficiência somente passou a ser alegada após a vigência do atual CPC...

            Admitamos, apenas ad argumentandum, que em determinado caso o art. 818 da CLT, se revele, efetivamente, insatisfatório para resolver a matéria; nem por isso, todavia, deverá o intérprete, ato contínuo, arremessar-se aos braços do CPC, buscando socorro no art. 333. Constatada que seja a insuficiência do dispositivo processual trabalhista, competirá ao julgador verificar, em concreto, quem estava apto a produzir a prova, segundo os meios e condições de que realmente dispunha, pouco importando que se trate de prova positiva ou negativa ou de que o interesse fosse desta ou daquela parte.

            Assim, o princípio da aptidão da prova, a que já se referira Porras López, deve ser eleito como o principal elemento supletivo do processo do trabalho, em cujo âmbito permanecerá em estado de latência, vindo a aflorar sempre que convocado para dirimir eventuais dificuldades em matéria de ônus da prova, proscrevendo-se, em definitivo, a presença incômoda do art. 333 do CPC, que nada mais representa – em última análise – do que uma abstração da realidade prática do processo do trabalho." [23]

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            Por oportuno, registre-se o posicionamento deste autor de que o melhor sistema de distribuição do ônus da prova, especialmente onde vige o princípio da busca da verdade real, como na Justiça do Trabalho, seria aquele que atribuísse ao agente o ônus de provar a prática do ato. Além disso, o confesso possuidor de determinado documento deveria ter o dever apresentá-lo em juízo, se requerido pela outra parte. Tais sugestões ficam a título de lege ferenda. Se fossem aplicáveis, contudo, não seriam incompatíveis com a tese ora defendida, relativa à presunção de culpa do empregador nos acidentes de trabalho, já que o empregador é o agente incumbido de implementar a legislação protetiva do trabalhador, além de possuir toda a documentação útil em casos tais.

            Adote-se a linha de raciocínio aristotélico e a conclusão será a mesma. Presume-se que a legislação de saúde e segurança no labor, elaborada pelos profissionais do Ministério do Trabalho e Emprego, seja suficiente para evitar o acidente (premissa maior). Portanto, se não se prova culpa exclusiva do trabalhador (premissa menor), presume-se o descumprimento da norma protetiva trabalhista pelo empregador (ilação). Agora, se a premissa maior é equivocada, o Estado é que será responsável por indenizar o trabalhador e, nesse caso, a responsabilidade será objetiva, à luz do artigo 37, §6º, da Lei Maior [24].

            Em suma, cabe ao empregador comprovar que observou a totalidade da legislação de segurança e saúde no trabalho, se for chamado a defender-se em eventual ação acidentária, sob pena de ser condenado a indenizar o trabalhador vitimado.


Conclusão

            Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho - OIT, o Brasil gasta 4% (quatro por cento) de seu Produto Interno Bruto (trinta e dois bilhões de reais) por ano com despesas relacionadas a acidentes de trabalho. Segundo o Anuário da Previdência Social, que desconsidera os trabalhadores informais, somente em 2005 ocorreram 2.700 (duas mil e setecentas) mortes por acidente de trabalho no Brasil e 491.000 (quatrocentos e noventa e um mil) trabalhadores sofreram lesões ou tiveram doenças por motivos ocupacionais [25].

            Esses dados revelam que a legislação de saúde e segurança do trabalho vem sendo descumprida em grande medida no Brasil. A crescente ocorrência de acidentes de trabalho no país nos últimos anos deve-se especialmente à responsabilização objetiva da Previdência Social e ao quase insignificante número de condenações de empregadores nas ações acidentárias, fatores esses que desmotivam as empresas à estrita observância da legislação protetiva laboral.

            Visando modificar esse cenário repugnante e vergonhoso, inclusive no cenário internacional, um dos mecanismos propostos é a adoção, pelos operadores jurídicos, especialmente pelos magistrados na condução da distribuição do ônus da prova nas ações acidentárias, da teoria da culpa presumida do empregador.

            A teoria da culpa presumida, conforme foi demonstrado neste trabalho, não é incompatível com o sistema da responsabilidade subjetiva do empregador. Aliás, consoante foi explicitado, o modelo de responsabilidade subjetiva, previsto no artigo 7º, XXVIII, Constituição de 1988, não foi revogado pelo artigo 927, parágrafo único, do Código Civil de 2002.

            Entende-se que a busca da solução (justiça) para o grande número de improcedências das ações acidentárias passa mais pelo sistema processual relativo ao ônus da prova do que pela teoria da responsabilidade adotada para julgamento das ações acidentárias. Ainda, sendo a indenização acidentária um direito de natureza tipicamente trabalhista, conforme previsão constitucional (artigo 7º, XXVIII), o ônus da prova é regulado pelo artigo 818 da CLT.

            Nesse particular, cumpre notar que a exegese correta do artigo 818 da CLT, nos casos de ações em que se pleiteiam indenizações acidentárias, não apenas inviabilizam a invocação do artigo 333 do CPC. Com efeito, a melhor interpretação do artigo 818 da CLT possibilita ao operador jurídico, especialmente aos magistrados, que a distribuição do ônus da prova seja feita do modo mais justo possível, adequando-se, quando necessário, ao princípio da aptidão da prova, que atribui o ônus à parte com maior capacidade de produzi-la – sem dúvida o empregador, nas ações acidentárias.

            Destarte, com a adoção da teoria da responsabilidade subjetiva com culpa presumida do empregador nos casos de infortúnio laboral, acredita-se, haverá maior respeito tanto ao ordenamento jurídico em vigor quanto ao trabalhador acidentado que procura justa indenização.

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Sobre o autor
Gustavo Teixeira Ramos

advogado em Brasília (DF), sócio de Alino & Roberto e Advogados, pós-graduado em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Gustavo Teixeira. Responsabilidade subjetiva com presunção de culpa do empregador nos casos de acidente de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1516, 26 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10329. Acesso em: 24 abr. 2024.

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