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Três velocidades, um inimigo, nenhum direito.

Um esboço crítico dos modelos de direito penal propostos por Silva Sánchez e Jakobs

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28/08/2007 às 00:00
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5 – CONCLUSÃO

As teorias que preconizam a aceitabilidade, ainda que limitada, de um "Direito Penal de Terceira Velocidade" (Silva Sánchez) ou de um "Direito Penal do Inimigo" (Jakobs) são absolutamente inadmissíveis frente ao Estado Democrático de Direito.

O fato concreto de que tais fenômenos são constatáveis em uma terrível expansão do Direito Penal com supressão de garantias na atualidade, não é motivo para o recuo e a conformação daqueles que pretendem formular um Direito Penal cientificamente sustentável e democrático.

Não obstante, a idéia de uma contenção dessas tendências teve seu mérito. Autores como Silva Sánchez e Jakobs colocaram a descoberto, sem sutilezas ou subterfúgios a presença ameaçadora de um "Direito Penal do Inimigo" destruidor de garantias e corroedor impassível do Estado Democrático de Direito. Antes deles poucas vezes se teve a coragem de admitir abertamente tal fenômeno, de maneira que suas iniciativas tiveram a virtude de suscitar uma discussão aberta e franca do problema.

O grande equívoco de ambos os autores está em considerar a hipótese de transigir em relação aos Princípios Democráticos e Humanísticos que devem reger o Direito Penal e o Processo Penal. Mais ainda, seu erro está em acreditar ser possível como um "mal menor" a "contenção estática" de um Direito Penal anti-garantista, olvidando o fato de que se a expansão de um modelo autoritário não tem sido contida pela reação contrária, muito menos o será pelo recuo, cedendo terreno. É ilusão pensar que um Direito Penal Autoritário em expansão vai estagnar, satisfazendo-se com o pouco espaço que se lhe conceda. Isso é desconsiderar o fato de que o Direito jamais é estático e sim dinâmico. [27]

Torna-se imperioso neste ponto transcrever a lição de Zaffaroni:

"O senso comum mais elementar indica que a limitação dos direitos de todos os cidadãos para conter o poder punitivo que se exerce sobre estes mesmos cidadãos não pode ser eficaz. A admissão resignada de um tratamento penal diferenciado para um grupo de autores ou criminosos graves não pode ser eficaz para conter o avanço do atual autoritarismo cool no mundo, entre outras razões porque não será possível reduzir o tratamento diferenciado a um grupo de pessoas sem que se reduzam as garantias de todos os cidadãos diante do poder punitivo, dado que não sabemos ab initio quem são essas pessoas. O poder seletivo está sempre nas mãos de agências que o empregam segundo interesses conjunturais e o usam também com outros objetivos". [28]

Portanto, a limitação da supressão de garantias a certas pessoas é, desde o início, absolutamente ilusória, a partir da constatação de que qualquer um pode a todo tempo ser rotulado como "inimigo" ou envolvido em suspeitas da prática de infrações abrangidas por um "Direito Penal de Terceira Velocidade". Ninguém está imune ao arbítrio dessa catalogação sem defesa possível.

Nesse contexto, conforme prevê Zaffaroni, legitima-se a ofensa aos direitos dos cidadãos (todos eles), concedendo-se "ao poder a faculdade de estabelecer até que ponto será necessário limitar os direitos para exercer um poder que está em suas mãos". E isso eqüivale à abolição do Estado de Direito. [29]

É preciso ter em mente que se é lastimável que um ou alguns indivíduos atuem à margem da lei, da moral e da justiça, incomensuravelmente mais lamentável será toda uma sociedade que abdique dos mais básicos princípios humanistas e democráticos.

Urge reagir à irracionalidade da expansão punitiva e lembrar com Brecht que muitas vezes é justamente aquele que fala do inimigo o verdadeiro inimigo. [30]Na verdade já estamos mais do que atrasados em rever e conter essa expansão indevida. Sabe-se que um dia haverá a profunda percepção dos equívocos cometidos, mas certamente o saldo de prejuízos já será enorme e talvez irreversível. O mesmo Brecht nos fala poeticamente das grandes catástrofes que passam sim, mas deixam seus rastros indeléveis em "Lendo Horácio":

"Mesmo o dilúvio

Não durou eternamente.

Veio o momento em que

As águas negras baixaram.

Sim, mas quão poucos

Sobreviveram!" [31]


6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BRECHT, Bertolt. Poemas. 3ª ed. Trad. Paulo Cesar Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.

FALLACI, Oriana. Carta a un niño que nunca nació. Trad. Atílio Pentimalli. 20ª ed. Barcelona: Noguer, 2005.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer et al. São Paulo: RT, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Volumes I e II. 2ª ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

JAKOBS, Günther, MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas. 2ª ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003.

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LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista. Trad. Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2005.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Volume I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.


NOTAS

01 CAMUS, Albert. O Estrangeiro. 19ª ed. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 126.

02 Para um aprofundamento desse tema: LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós-Moralista. Trad. Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2005, "passim".

03 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Volume I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 57.

04 Ibid., p. 123-125.

05 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002, p. 144-147.

06 Ibid., p. 148-151.

07 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, p. 1.

08 Ibid., p. 13.

09 Ibid., p. 46.

10 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Ibid., p. 151. Também Zaffaroni menciona esse fenômeno expansivo das legislações de emergência, destacando que tal ocorre não somente nos países periféricos da América Latina, mas também tem grande incidência nos países centrais da Europa e América do Norte há bastante tempo: "O certo, porém, é que a invocação de emergências justificadoras de Estados de exceção não é de modo algum recente. Se nos limitarmos à etapa posterior à Segunda Guerra Mundial, constataremos que há mais de três décadas essas leis vêm sendo sancionadas na Europa – tornando-se ordinárias e convertendo-se na exceção perpétua – tendo sido amplamente superadas pela legislação de segurança latino-americana". ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 14.

11 JAKOBS, Günther, MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas. 2ª ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 50.

12 Usa-se a expressão cunhada por Dostoiévski no romance "O Adolescente", ao referir-se justamente à atuação de certos juristas.

13 Ibid., p. 81. No original: "Yo no era optimista porque no era valiente".

14 LUHMANN, Niklas. Ibid., p. 57.

15 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Volumes I e II. 2ª ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, "passim".

16 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 82-90.

17 LUHMANN, Niklas. Ibid., p. 130-131.

18 Ibid., p. 62.

19 Ibid., p. 56.

20 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Volume I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 140-141.

21 Somente o exemplo do Nazismo e do Holocausto basta para demonstrar a verdade da imoralidade ínsita nessa espécie de pensamento.

22 Ibid., p. 158.

23 Ibid., p. 161.

24 Ibid., p. 208.

25 Petição de Princípio é a conhecida "falácia", analisada por Aristóteles, que "consiste em pressupor, na demonstração, um equivalente ou sinônimo do que se quer demonstrar". ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 763.

26 Neste sentido: FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer et al. São Paulo: RT, 2002, "passim".

27 Ver a respeito: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Ibid., p. 155-183.

28 Ibid., p. 191-192.

29 Ibid., p. 192.

30 "No momento de marchar,/Muitos não sabem/ Que seu inimigo marcha à sua frente./A voz que comanda/ É a voz de seu inimigo./Aquele que fala do inimigo/É ele mesmo o inimigo". BRECHT, Bertolt. Poemas. 3ª ed. Trad. Paulo Cesar Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 160.

31 Ibid., p. 316.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Três velocidades, um inimigo, nenhum direito.: Um esboço crítico dos modelos de direito penal propostos por Silva Sánchez e Jakobs. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1518, 28 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10336. Acesso em: 20 abr. 2024.

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