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Aspectos relevantes dos direitos sociais de prestação frente ao mínimo existencial e à reserva do possível

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4 – A RESERVA DO POSSÍVEL COMO LIMITADORA DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Para a consecução de toda a atividade centrada no bem-estar social, o Estado define o seu plano de atuação dentro de um instrumento chamado orçamento. De iniciativa do Poder Executivo, "a Lei do Orçamento conterá a discriminação da receita e despesa de forma a evidenciar a política econômica, financeira e o programa de trabalho do Governo, obedecidos os princípios de unidade, universalidade e anualidade" 25, conforme dispõe o artigo 2º, da Lei federal nº 4.320, de 17.03.1964, que, embora aprovada na origem como lei ordinária, foi recepcionada materialmente como lei complementar, em virtude do disposto no artigo 163, da Constituição Federal 26.

O tributarista Kiyoshi Harada, ao comentar o conceito de orçamento, explica 27:

Classicamente, o orçamento é conhecido como uma peça que contém a aprovação prévia da despesa e da receita para um período determinado. (...) No Estado moderno, não mais existe lugar para orçamento público que não leve em conta os interesses da sociedade. Daí porque o orçamento sempre reflete um plano de ação governamental. Daí, também, seu caráter de instrumento representativo da vontade popular, o que justifica a crescente atuação legislativa no campo orçamentário.

Sabendo que o orçamento é o instrumento pelo qual, mediante lei, o Estado define as receitas e fixa as despesas a serem efetuadas em determinado período de tempo, pode-se afirmar, seguramente, que a efetivação dos direitos sociais prestacionais está a ele vinculada, por exigir a disponibilidade de recursos financeiros. A capacidade do Estado como ordenador de despesas encontra limites na escassez de recursos, sendo que as políticas públicas devem ser elaboradas e efetivadas de acordo com as possibilidades materiais do Ente Federativo, ou seja, de acordo com a reserva do possível.

A teoria da reserva do possível tem origem na Corte Constitucional Federal da Alemanha, onde se sustentou que as limitações de ordem econômica podem comprometer a plena efetivação dos direitos sociais, conforme se depreende do célebre julgamento mencionado na BverfGE (coletânea das decisões do Tribunal Constitucional Federal) nº 33, S. 333 28. Segundo este leading case, os indivíduos somente podem exigir do Estado a execução de uma prestação ou o atendimento de um interesse, desde que observados os limites da razoabilidade.

Sobre essa relevante decisão da justiça tedesca, Ingo Wolfgang Sarlet acrescenta 29:

(...) colhe-se o ensejo de referir decisão da Corte Constitucional Federal da Alemanha, que, desde o paradigmático caso numerus clausus , versando sobre o direito de acesso ao ensino superior, firmou jurisprudência no sentido de que a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para seu sustento. O que, contudo, corresponde ao razoável também depende – de acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã – da ponderação por parte do legislador.

Assim, restou difundido o entendimento de que a viabilização dos direitos sociais, através da execução de políticas públicas, está condicionada à existência de recursos materiais disponíveis para tal, sendo que o Estado, apesar de obrigado a cumprir as normas assecuratórias de prestações sociais, poderá se escusar da obrigação em virtude de impossibilidades materiais devidamente comprovadas.

O questionamento a que se chegou a partir da aplicação da teoria da reserva do possível como limitadora da efetivação dos direitos sociais foi justamente em saber até que ponto as prestações estatais poderão ser reduzidas pela escassez de recursos orçamentários. Ou seja, até onde e quando o Estado poderá, calcado no argumento de que não possui reservas suficientes, limitar as políticas de saúde, educação, saneamento básico e outras. Qual seria o critério de "razoabilidade" mencionado pela Corte Constitucional Germânica?

O outro ponto intrigante foi definir os limites de atuação do Poder Judiciário na elaboração e execução de políticas públicas pelo Estado. Os magistrados poderiam, sem causar flagrante ofensa ao princípio da separação dos poderes, intervir nas escolhas orçamentárias?

Essas duas questões foram amplamente debatidas nos mais diversos graus de jurisdição pátrios, sendo que, ainda, não se encontram totalmente pacificadas. Entretanto, em emblemático julgamento sobre o tema, o Ministro Celso de Melo, do Supremo Tribunal Federal, definiu as linhas mestras que nortearam o posicionamento majoritário atual de que o Poder Judiciário pode intervir na formulação das políticas públicas para assegurar a garantia do mínimo existencial, a menor porção necessária para se manter a dignidade humana através das prestações estatais.

Os argumentos da decisão monocrática são bastante lúcidos 30:

(...) É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, ‘Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976’, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema Corte - que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política ‘não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado’ (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à ‘reserva do possível’ (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, ‘ The Cost of Rights ’, 1999, Norton, New York ), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’ - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Daí a correta ponderação de ANA PAULA DE BARCELLOS (‘A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais’, p. 245-246, 2002, Renovar): ‘Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.’ Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da ‘reserva do possível’, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.

Dessa forma, apesar da efetivação dos direitos sociais estar vinculada à reserva do possível, a parcela mínima necessária à garantia da dignidade humana jamais poderá ser esquivada, cabendo ao Judiciário, mediante provocação, corrigir eventuais distorções que atentem contra a razoabilidade e a proporcionalidade. Cabe ressaltar, por outro lado, que "esta prática resguarda as margens de atuação do legislador e do administrador público, tendo em vista que o juiz não dirigirá a política pública a ser desenvolvida, mas apenas indicará a prioridade constitucional que merece atenção", conforme bem salienta Alceu Maurício Júnior 31.


5 – O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O MÍNIMO EXISTENCIAL

A dignidade humana, atualmente definida como um princípio informador do Direito, desempenha um papel de extrema importância na vida econômica e social dos indivíduos. Sabendo que a finalidade do Direito e do Estado é de servir e resguardar o Homem, o princípio da dignidade da pessoa humana se torna um meio de alcançar o bem-estar social e proteger o indivíduo da ação nociva de seus semelhantes, de si mesmo e do próprio Estado.

A dignidade da pessoa humana constitui elemento basilar de qualquer instrumento jurídico democrático, fundindo-se com os próprios conceitos de liberdade e igualdade que embasaram o surgimento dos direitos fundamentais. Sem a garantia e a implementação da dignidade humana, não há que se falar em liberdade e igualdade. Por outro lado, também não existem liberdade e igualdade efetivas quando não se observa o mínimo necessário para a garantia da dignidade humana.

Nelson Rosenvald entende que a dignidade da pessoa humana "é simultaneamente valor e princípio, pois constitui elemento decisivo para a atuação de intérpretes e aplicadores da Constituição no Estado Democrático de Direito" 32. Partindo desse raciocínio, a dignidade humana coloca o Homem no vértice do ordenamento jurídico, centralizando toda a atividade estatal.

A Constituição Federal de 1988, logo em seu artigo 1º, inciso III, estabelece que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil 33. Este dispositivo revela claramente que o Constituinte Originário colocou o Ser Humano como objetivo central de todo o ordenamento constitucional, fundamentando e orientando todo o sistema, de forma que ele esteja totalmente voltado para a sua efetiva proteção.

Ingo Wolfgang Sarlet esclarece que 34:

Num primeiro momento, a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o art. 1º, inc. III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas uma declaração de conteúdo ético e moral (que ela, em última análise, não deixa de ter), mas que constitui norma jurídico-positiva com status constitucional e, como tal, dotada de eficácia, transformando-se de tal sorte, para além da dimensão ética já apontada, em valor fundamental da comunidade. Importa considerar, neste contexto, que, na condição de principio fundamental, a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem constitucional, razão pela qual se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa.

Diante desse seu caráter orientador, pode-se afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana se desdobra em duas dimensões, sendo uma negativa e outra positiva, sobre as quais Nelson Rosenvald tece os seguintes comentários 35:

Aquela significa a imunidade do indivíduo a ofensas e humilhações, mediante ataques à sua autonomia por parte do Estado e da sociedade. Já a dimensão positiva importa em reconhecimento da autodeterminação de cada homem, pela promoção de condições que viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que impeçam uma vida digna.

É justamente inserida nessa dimensão positiva do princípio da dignidade da pessoa humana que se encontra a noção do mínimo existencial a ser resguardado pelos direitos sociais de prestação. A preocupação com o mínimo existencial exige a garantia de meios que satisfaçam as mínimas condições de vivência digna do indivíduo e de sua família. Nesse aspecto, o mínimo existencial vincula as prestações estatais para que sejam cumpridas as aspirações do Estado Democrático de Direito.

No caso específico do ordenamento jurídico-constitucional pátrio, onde a efetivação dos direitos sociais de prestação é condicionada e limitada pela reserva do possível, a garantia do mínimo existencial, como corolário do conceito de dignidade da pessoa humana, acaba por constituir um limite à própria efetivação de outros direitos fundamentais. Ou seja, partindo-se dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, outros direitos de caráter fundamental podem ser restringidos em prol da dignidade humana. Afinal, como aponta Ingo Wolfgang Sarlet, "a nossa Constituição é, acima de tudo, a Constituição da pessoa humana por excelência" 36.

Por outro lado, não se pode perder de vista que o princípio da dignidade da pessoa humana integra toda a lógica dos direitos fundamentais, sendo que cada direito fundamental, em maior ou menor grau, objetiva a proteção da dignidade humana. Cumpre observar, entretanto, que para essa proteção se efetivar devem ser assegurados padrões mínimos de segurança jurídica no campo normativo dos direitos fundamentais, mais especificamente no que tange aos direitos sociais de prestação. Assim, a proteção à dignidade humana revela, também, uma proibição contra normas de caráter retrocessivo nesta seara, ainda que editadas sob o argumento de progressividade.

Dentro desse contexto, para a satisfação plena dos direitos sociais de prestação em favor da dignidade humana, o Estado deve não somente reconhecer o gozo e o exercício desses direitos, mas, também, vedar a edição de medidas legislativas que importem na redução, anulação ou revogação do núcleo essencial já reconhecido aos indivíduos. É o que a doutrina convencionou nominar de "princípio da proibição do retrocesso social" 37.

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Segundo essa idéia de vedação do retrocesso, após a concretização dos direitos sociais prestacionais em nível infraconstitucional, eles assumem o caráter de direitos subjetivos a determinadas prestações estatais, de tal forma que não mais se encontram na esfera de disponibilidade do legislador ordinário, tornando-se direitos adquiridos que não podem mais ser suprimidos ou reduzidos.

Sobre a utilidade desse princípio, Ingo Wolfgang Sarlet exemplifica 38:

Basta lembrar aqui a possibilidade de o legislador, seja por meio de uma emenda constitucional (...), seja por uma reforma na plano legislativo, suprimir determinados conteúdos da Constituição ou revogar normas legais destinadas à regulamentação de dispositivos constitucionais, notadamente em matéria de direitos sociais, ainda que com efeitos meramente prospectivos.

Por sua vez, Luís Roberto Barroso, ao comentar o assunto, aponta aspectos relevantes 39:

A vedação do retrocesso, por fim, é uma derivação da eficácia negativa, particularmente ligada aos princípios que envolvem os direitos fundamentais. Ela pressupõe que esses princípios sejam concretizados através de normas infraconstitucionais (isto é: freqüentemente, os efeitos que pretendem produzir são especificados por meio da legislação ordinária) e que, com base no direito constitucional em vigor, um dos efeitos gerais pretendidos por tais princípios é a progressiva ampliação dos direitos fundamentais. Partindo desses pressupostos, o que a vedação do retrocesso propõe se possa exigir do Judiciário é a invalidade da revogação de normas que, regulamentando o princípio, concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente.

Partindo-se sempre da premissa de que as normas constitucionais devem constituir um conjunto harmônico, pode-se afirmar que o princípio da proibição do retrocesso social vem ao encontro da noção de máxima efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais contida no artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal, e que decorre, principalmente, como afirmado linhas volvidas, da necessidade de se inviabilizar quaisquer tentativas de reduzir os padrões mínimos exigidos para uma existência digna.

Por tudo isso, não é demais reafirmar que a garantia da dignidade humana revela o padrão mínimo da efetivação dos direitos sociais do indivíduo. Sem a proteção da existência humana digna, perdem a razão de ser o Estado, o Direito como ciência, as leis como pacificadoras da ordem social e toda a evolução teórica dos direitos fundamentais. Para Ingo Wolfgang Sarlet, esse padrão mínimo de existência digna estaria ligado à prestação dos recursos materiais necessários para a garantia do salário-mínimo, assistência social, educação, previdência social e saúde 40.

Em recente pronunciamento sobre o direito à saúde assegurado na Constituição Federal, o Ministro Luiz Fux, do Superior Tribunal de Justiça, ao proferir voto no REsp nº 811608/RS, teceu relevantes comentários acerca do tema 41:

O princípio da aplicabilidade imediata e da plena eficácia dos direitos fundamentais está encartado no § 1º, do art. 5º, da CF/88: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata. Muito se polemizou, e ainda se debate, sem que se tenha ocorrida a pacificação de posições acerca do significado e alcance exato da indigitada norma constitucional. Porém, crescente e significativa é a moderna idéia de que os direitos fundamentais, inclusive aqueles prestacionais, têm eficácia tout court , cabendo, apenas delimitar-se em que extensão. Superou-se, assim, entendimento que os enquadrava como regras de conteúdo programático a serem concretizadas mediante a intervenção legislativa ordinária. Desapegou-se, assim, da negativa de obrigação estatal a ser cumprida com espeque nos direitos fundamentais, o que tinha como conseqüência a impossibilidade de caracterizá-los como direitos subjetivos, até mesmo quando em pauta a omissão do Estado no fornecimento do mínimo existencial. Consoante os novos rumos interpretativos, a par de dar-se eficácia imediata aos direitos fundamentais, atribuiu-se ao intérprete a missão de desvendar o grau dessa aplicabilidade, porquanto mesmo que não se pretenda dar máxima elasticidade à premissa, nem sempre se estará infenso à uma interpositio legislatoris , o que não ocorre, vale afirmar, na porção do direito que trata do mínimo existencial.

A maestria dessa linha de raciocínio demonstra que a proteção da dignidade humana, através da garantia do mínimo para uma existência adequada, é o ponto de partida para a efetividade dos direitos sociais de prestação. Sempre que os entraves de competência legislativa e previsão orçamentária esbarrarem em situações capazes de colocar em risco a dignidade humana, estar-se-á diante de um direito subjetivo de se exigir prestações estatais, sob pena de afronta a todos os conceitos e valores que envolvem o Estado Democrático de Direito.

Observa-se, portanto, que a determinação do caráter prestacional dos direitos sociais para a garantia do mínimo existencial exige o respeito de certas obrigações por parte do Estado, principalmente quando ligadas à área da saúde, sendo que os argumentos tradicionais de escassez de recursos e imprecisão normativa não podem ser utilizados como justificativas absolutas para a ineficácia dos mencionados direitos e a ausência de medidas necessárias para lhes dar efetividade.

5.1 – O direito à saúde e a questão do fornecimento de medicamentos pelo Estado

Quando se defende a execução de uma porção mínima de prestações estatais para a garantia da dignidade humana, logo se chega à conclusão de que a saúde é o direito fundamental social que mais exige a efetivação de políticas públicas por parte do Estado, seja na consecução de medidas de saneamento básico ou na prevenção e tratamento de doenças. A garantia do direito à saúde é o exemplo mais próximo da noção de mínimo existencial, pois ela é o ponto de partida para a prestação de outros direitos sociais, tais como educação, moradia e salário mínimo.

Em um país de dimensões constitucionais e intensa desigualdade social como o Brasil, é notório que o acesso da população à saúde seja um problema constante, suscitando um debate mais político do que jurídico, pois envolve questões muito variadas como orçamento, alocação de recursos, fixação de despesas, discricionariedade do Poder Público e dignidade humana.

O direito à saúde possui respaldo constitucional, sendo definido como direito social no artigo 6º e como "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação", no artigo 196, ambos da Constituição Federal 42.

Nota-se, portanto, que a saúde, além de direito, constitui um dever do Estado, que, juntamente com o direito à vida, integra a própria noção de dignidade humana. Sobre esse aspecto de "dever do Estado" conferido à saúde, Ingo Wolfgang Sarlet comenta 43:

(...) importa considerar que sem o reconhecimento de um correspondente dever jurídico por parte do Estado e dos particulares em geral, o direito à saúde restaria fragilizado, especialmente no que diz com a sua efetivação. Evidentemente – ainda que a Constituição não o tenha referido expressamente – também os particulares não poderão ofender a saúde alheia, alegando não serem destinatários do direito à saúde. (...) De outra parte, poderá se sustentar que existe, de certa forma, um dever da própria pessoa (e de cada pessoa) para com a sua própria saúde (vida, integridade física e dignidade pessoal), ensejando até mesmo e dependendo das circunstâncias do caso concreto, uma proteção da pessoa contra si mesma, em homenagem ao caráter (ao menos em parte) irrenunciável da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.

Dessa forma, o direito à saúde pode ser incluído em duas categorias dos direitos fundamentais, sendo uma como direito de defesa (proteção à saúde e incolumidade física dos indivíduos) e outra como direito de prestação (atuação positiva do Estado na efetivação de medidas relativas à otimização do atendimento médico e hospitalar, fornecimento de medicamentos, realização de exames laboratoriais e outros).

Analisados esses aspectos do direito à saúde, surge a controvérsia acerca de sua efetividade enquanto direito a prestações materiais. Em outras palavras, o comando inserto no artigo 196, da Constituição Federal, reconhece o caráter de direito subjetivo à saúde, autorizando o indivíduo acometido de alguma enfermidade a acionar o Estado para obter medicamentos ou o tratamento indicado?

A questão suscita longos embates tanto na doutrina quanto na jurisprudência, existindo pareceres e julgamentos em ambos os sentidos. Entretanto, ganha intenso relevo o entendimento de que o disposto no artigo 196, da Constituição Federal, apesar de se tratar de norma programática, possui normatividade suficiente para caracterizar um dever jurídico do Estado, em consonância com a máxima efetividade dos direitos fundamentais preconizada pelo artigo 5º, § 1º, da Lei Maior.

Esse caráter de direito subjetivo conferido à saúde não decorre simplesmente do fato de se tratar de um direito fundamental, mas sim do próprio mandamento constitucional inserto no artigo 196, da Constituição Federal, que, de forma imperativa, enuncia o dever jurídico de prestação por parte do Estado. Esta obrigação do Estado deve ser cumprida, ainda que sob determinação judicial, para garantir as prestações mínimas necessárias para a proteção da vida e dignidade humanas.

Nesse sentido, entende Ingo Wolfgang Sarlet 44:

O que se pretende realçar, por ora, é que, principalmente no caso do direito à saúde, o reconhecimento de um direito originário a prestações, no sentido de um direito subjetivo individual a prestações materiais (ainda que limitadas ao estritamente necessário para a proteção da vida humana), diretamente deduzido da Constituição, constitui exigência inarredável de qualquer Estado (social ou não) que inclua nos seus valores essenciais a humanidade e a justiça.

Na mesma linha, o Supremo Tribunal Federal também se manifestou recentemente 45:

(...) O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação, no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. (...)

Desse modo, como afirmado linhas volvidas, o Poder Judiciário está autorizado a intervir, quando provocado, na definição das políticas públicas do Estado, de forma a assegurar o mínimo necessário para uma existência digna. Por outro lado, o Poder Público não poderá se eximir do dever constitucional que lhe foi reservado, sob os habituais argumentos de que os recursos materiais são escassos e que o Poder Judiciário não pode se imiscuir no caráter discricionário da destinação da receita, quando está em jogo a preservação da vida humana.

A questão que suscita maior questionamento nesse ponto é saber se o caráter de direito subjetivo atribuído à saúde incumbe ao Estado o dever de fornecer os medicamentos necessários para o tratamento das mais diversas enfermidades. Sem entrar no cerne da discussão acalorada que envolve o tema, dado o caráter restrito do presente estudo, pode-se afirmar que a jurisprudência se encontra em fase de amadurecimento das linhas gerais que serão traçadas para a unificação das diversas posições.

Sabe-se que o Sistema Único de Saúde - SUS possui um cadastro de medicamentos que são adquiridos pelo Poder Público para a distribuição à população, como forma de prevenção e tratamento de doenças. Essa atividade permanente do Estado encontra previsão orçamentária e legislativa, estando incluída no plano de governo de qualquer Gestor Público, de todas as esferas administrativas.

Entretanto, nos últimos anos, vem crescendo a quantidade de demandas judiciais, individuais e coletivas, que, com fundamento no artigo 196, da Constituição Federal, visam a obtenção de ordem judicial que determine ao Poder Público o fornecimento de medicamentos de alto custo, não incluídos no cadastro do Sistema Único de Saúde, principalmente para o tratamento de doenças crônicas como a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS), as mais diversas variações de câncer, doenças renais e outras.

As ações judiciais com pretensões dessa natureza ocupam, atualmente, boa parte do número de processos que tramitam nas Varas da Fazenda Pública e têm gerado grandes discussões tanto na doutrina quanto na jurisprudência em relação aos efeitos das decisões proferidas pelos magistrados espalhados por todo o país. Além de demandas individuais, as associações dos portadores de doenças crônicas e o Ministério Público, na qualidade de substituto processual, também figuram como autores em diversas ações coletivas.

Em pronunciamentos reiterados, o Poder Judiciário, até mesmo os Tribunais Superiores, acabaram encampando o entendimento de que o artigo 196, da Constituição Federal, constitui um mandamento imperativo de caráter amplo que objetiva resguardar a saúde do indivíduo, não se revestindo de discricionariedade no que tange ao fornecimento gratuito de remédios. Ou seja, o Estado é obrigado a fornecer todo e qualquer medicamento comprovadamente necessário para a manutenção da saúde do indivíduo, independentemente de estar incluído na lista dos remédios adquiridos e distribuídos pelo Sistema Único de Saúde.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal se manifestou várias vezes, conforme ilustra a ementa do acórdão lavrado quando do julgamento do AI-AgR nº 486.816/RJ 46:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MEDICAMENTOS: FORNECIMENTO A PACIENTES CARENTES: OBRIGAÇÃO DO ESTADO. I – Paciente carente de recursos indispensáveis à aquisição de medicamentos que necessita: obrigação do Estado em fornecê-los. Precedentes. II – Agravo não provido.

Todavia, em tempos de contenção de despesas e limitação de gastos impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, estão ganhando força as críticas de que as intervenções do Poder Judiciário no que tange ao fornecimento gratuito de medicamentos pelo Estado colocam por água abaixo os esforços organizacionais do Poder Executivo. Autoridades da área de saúde expõem freqüentemente na mídia que uma ordem judicial que determina a entrega de um medicamento para certo postulante acaba por deixar sem assistência outro paciente que já se encontrava devidamente cadastrado no respectivo centro de referência, dada a limitação de recursos financeiros.

Essa linha de raciocínio acabou por motivar a tese, ainda vacilante, de que o direito à saúde previsto no artigo 196, da Constituição Federal, não se confunde com o direito ao fornecimento de medicamentos. Esse entendimento acaba por resguardar a economia pública, trazendo à lume a reserva do possível, em detrimento das situações individuais de enfermidade e risco de vida.

Sobre esse aspecto, a Ministra Ellen Gracie, atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, se manifestou recentemente quando da apreciação da Suspensão de Tutela Antecipada – STA nº 91, onde deferiu, em parte, pedido do Estado de Alagoas para suspender decisão concedida em ação civil pública que determinou ao Estado o fornecimento de medicamentos necessários para o tratamento de pacientes renais crônicos em hemodiálise e pacientes transplantados. Segundo a Ministra, o artigo 196, da Constituição Federal, ao assegurar o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas como um todo, de caráter universal e gratuito, e não em situações individualizadas 47.

Essa decisão vinda da Presidente da mais alta Corte Judiciária do país embasou vários outros pedidos de suspensão de liminares e tutelas antecipadas concedidas contra o Poder Publico em diversos Estados, sendo que alguns departamentos de saúde se recusam, agora, a fornecer determinados medicamentos a pacientes em situações específicas. Da mesma forma, alguns magistrados, agora respaldados por decisão do Supremo Tribunal Federal, reforçaram o seu entendimento contrário ao provimento indiscriminado de pedidos de fornecimento gratuito de medicamentos pelo Poder Público.

Entretanto, o tema é pautado por tamanha controvérsia, impedindo qualquer tipo de generalização, que a própria Ministra Ellen Gracie, apenas três meses após ter proferido decisão na mencionada STA nº 91, indeferiu os pedidos contidos nas Suspensões de Segurança nºs 3158 e 3205, dos Estados do Rio Grande do Norte e Amazonas, respectivamente, mantendo a decisão que determinou aos Estados que fornecessem o medicamento a duas portadoras de doenças graves, que não constavam na lista do Programa de Medicamentos Excepcionais do Ministério da Saúde. Segundo a Ministra, os pedidos de suspensão são examinados caso-a-caso e suas decisões se restringem às situações específicas analisadas, sendo que o direito à saúde previsto no artigo 196, da Constituição Federal, obriga todas as esferas de governo a atuarem de forma solidária 48.

Nota-se, portanto, que a celeuma em torno do fornecimento de medicamentos pelo Estado está longe de ser pacificada, sendo necessário que as decisões judiciais analisem cada situação de forma individualizada, para que a proteção ao direito à saúde não se distancie da noção do mínimo existencial e dignidade da pessoa humana que orientam todo o ordenamento jurídico.

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Sobre o autor
Elmo José Duarte de Almeida Junior

Procurador da Fazenda Nacional,pós-graduado em Direito Constitucional pela Escola Paulista de Direito (EPD)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA JUNIOR, Elmo José Duarte. Aspectos relevantes dos direitos sociais de prestação frente ao mínimo existencial e à reserva do possível. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1522, 1 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10357. Acesso em: 14 nov. 2024.

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