3. O CONTRATO DE LOCAÇÃO E A FIANÇA COMO GARANTIA
Como visto anteriormente, a fiança é um tipo de contrato que está regulado pelo Código Civil Brasileiro. [51] O ordenamento jurídico brasileiro também comporta lei especial apta a regulação das locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes: trata-se da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991. [52]
Tratamento equivalente sobre a matéria contém o direito argentino, havendo regra geral e específica. A norma geral vem disciplinada no Código Civil Argentino a partir do art. 1.986, no qual a fiança é tratada como "figura contractual típica", [53] sendo que o referido diploma legal traz ainda outras formas de garantia locatícias: "a) fianza personal o pecuniaria, b) privilegio sobre los muebles del locatario, c) depósito previo, d) pago de mensualidades por adelantado, y e) en época reciente, el seguro de garantía de alquileres." [54] Ainda no estudo no direito comparado (Argentina), a regra específica para o caso das garantias nos contratos de locação – em especial a fiança – é a "Ley 21.342".
Atualmente o instituto da fiança possui vasto uso principalmente nos contratos de locação de imóveis e as situações na prática têm demonstrado que a fiança convencional tem maior utilização se comparada ao seguro e à caução, [55] podendo-se afirmar inclusive que não cabe falar-se em aluguel sem que se fale em fiador. [56]
Ao contrário da fiança, o contrato de locação é bilateral [57] e pode ser ajustado verbalmente, nesse caso não requerendo forma expressa e dispensada a escrita. Com relação à prova da existência da locação e do ajuste, Caio Mário da Silva Pereira afirma: "se o contrato já teve começo de execução, com a utilização da coisa pelo locatário, constitui ela a prova de sua existência." [58]
A Seção VII da Lei do Inquilinato trata das "garantias locatícias", e enumera-as no art. 37: I - caução; II - fiança; III - seguro de fiança locatícia; e IV - cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento, cabendo referir que o parágrafo único proíbe a contratação de mais de uma dessas modalidades num mesmo contrato de locação, sob pena de nulidade.
Nagib Slaibi Filho, afirma que "a lei do inquilinato possui caráter intervencionista ao restringir a autonomia privada" e assim justifica porque "não podem as partes ajustar outras modalidades de garantias que não sejam aquelas previstas na Lei nº 8.245/91." [59]
No direito argentino, o art. 18 da Ley 21.342 traz as garantias previstas para o contrato de locação [60] e, segundo César Arias:
a través de esta norma, la ley 21.342 faculta ao locador, en un contrato subordinado a su regulación por encontrarse incluido en la prórroga legal, a exigir el otorgamiento de una fianza adecuada a las obligaciones resultantes de la locación, siempre que no se encuentre vigente una garantía anterior. El próprio precepto establece que frente a la intimación del locador el inquilino tiene dos alternativas: la de ofrecer una fianza suficiente o bien contratar el seguro de garantía. [61]
Tem-se, portanto, que a garantia fidejussória nos contratos de locação atém-se ao disposto em duas disposições legais: uma geral, que é o Código Civil, e outra especial, que é a Lei do Inquilinato, tanto no Brasil quanto na Argentina.
A Lei do Inquilinato contém regra geral acerca do prazo de duração das garantias à locação, [62] podendo assim ser interpretada: qualquer garantia que contiver o contrato de locação perdurará até a devolução do imóvel (ou entrega das chaves) obrigando o garante pelo pagamento ajustado contratualmente.
Todavia, o próprio dispositivo contém locução que expressa a exceção: "salvo disposição contratual em contrário", isto é, havendo disposição das partes acerca do prazo de duração, prevalecerá esta. Do contrário, "se o contrato de garantia for omisso a respeito, permanecerá a regra geral." [63]
Slaib Filho afirma que a fiança - além do prazo determinado - segue pelo prazo indeterminado da locação e vai além: "pelo prazo excedente da locação, em decorrência de decisão judicial, até o imóvel ser entregue, salvo se, na estipulação da garantia, houver sido ajustado que haverá determinada limitação temporal." [64]
O autor afirma, ainda, que o fiador pode desonerar-se da garantia através de decisão judicial em ação de exoneração (conforme o art. 1500, do CC), sendo o meio capaz de fazer cessar a extensão temporal da fiança; regra esta que abarcaria "os contratos estabelecidos antes mesmo da vigência da Lei nº 8.245/91". [65]
Destarte, tendo o contrato de locação sido prorrogado indeterminadamente e, ainda que essa prorrogação tenha sido tácita, ou decorrente de cláusula expressamente contida no pacto locatício, o fiador continua responsável até a efetiva devolução do imóvel. Tal interpretação não feriria a Súmula 214 do STJ, pois esta refere que o fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu, e a renovação automática do contrato não poderia ser interpretada como se fosse aditamento contratual.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS, em recente decisão, ratifica a lição:
"A tese de que os recorrentes não respondem pela obrigação principal e encargos condominiais, haja vista a prorrogação do contrato por prazo indeterminado, não prospera. O Contrato de Locação [...] foi automaticamente prorrogado por prazo indeterminado, diante da continuidade da locação. Se os fiadores pretendiam se exonerar da fiança, por certo, tinham de agir de acordo com o artigo 1.500 do Código Civil de 1916, vigente à época, segundo o qual deve haver concordância expressa do locador, ou então buscar a exoneração por meio de sentença judicial, o que não ocorreu na espécie. Saliento que durante a avença locatícia, houve lapso de tempo suficiente para a exoneração de fiança. Não o fizeram. [...] Portanto, no caso concreto, [...] sendo os fiadores também principais pagadores, e diante da não exoneração, são responsáveis pelo pagamento dos aluguéis e encargos até a desocupação do imóvel e efetiva entrega das chaves, não havendo falar em inexistência de responsabilidade. Registre-se, que embora o Egrégio Superior Tribunal de Justiça tenha editado a Súmula 214, segundo a qual o fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu, a renovação automática do contrato não pode ser configurada como um aditamento contratual." [66]
Sílvio de Salvo Venosa, contudo, entende que "não é a sentença que faz extinguir as garantias, mas efetiva devolução do imóvel." [67]
A questão trazida pelos acórdãos comentados aflora a dúvida acerca da duração da garantia prestada pelo fiador, havendo ou não cláusula expressa que determine a prorrogação contratual (fiança por prazo determinado e fiança por prazo indeterminado). Há diferença entre a fiança na qual o garante se obriga por prazo determinado e na obrigação em que o fiador se obriga pela prorrogação do contrato.
No primeiro acórdão o que se afirma é que a fiança tem duração tão somente até a data de extinção do contrato de locação, pouco importando se há ou não cláusula que estenda essa garantia até a entrega das chaves do imóvel, aplicado em sua plenitude a Súmula nº 214 do STJ. A ministra da Quinta Turma do STJ relata:
[...] Vale salientar que, não obstante a existência de alguns julgados proferidos pela Colenda Sexta Turma deste Tribunal em sentido contrário, a atual jurisprudência desta Corte se firmou no sentido de que o contrato de fiança deve ser interpretado de forma restritiva e benéfica, razão pela qual o fiador somente responderá por encargos decorrentes do contrato locatício tão-somente até o momento da sua extinção, sendo irrelevante a existência de cláusula estendendo a obrigação fidejussória até a entrega das chaves. A propósito, confiram-se os recentes julgados proferidos no âmbito desta Corte: [...] (AgRg nos EREsp 440.110/SP, 3ª Seção, Rel. Min. PAULO MEDINA, DJ de 09/03/2005.) [...] (REsp 421.098/DF, 6ª Turma,. Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, DJ de 26/04/2004.) [...] (AgRg no AgRg no AG 577.732/SC, 5ª Turma, Rel. Min. GILSON DIPP, DJ de 08/11/2004.) (grifo nosso) [68]
No segundo acórdão se afirma diametralmente o oposto: havendo cláusula expressa no contrato de aluguel de que a responsabilidade dos fiadores perdurará até a efetiva entrega das chaves do imóvel objeto da locação, não há falar em desobrigação por parte destes em razão do término do prazo originalmente pactuado, estendendo a duração da garantia além da data de extinção do contrato de locação. Tal situação, nas palavras exaradas pelo relator, em seu voto, é de que se trata "de simples cumprimento da avença":
[...] ‘pode-se extrair que a fiança:
a) é um contrato celebrado entre credor e fiador;
b) é uma obrigação acessória à principal;
c) pode ser estipulado em contrato diverso do garantido, como também inserido em uma de suas cláusulas, mas sem perder a sua acessoriedade;
d) não comporta interpretação extensiva, logo o fiador só responderá pelo que estiver expresso no instrumento de fiança, e,
e) extingue-se pela expiração do prazo determinado para sua vigência; ou, sendo por prazo indeterminado, quando assim convier ao fiador (art. 1.500 do CC revogado e 835 do novo CC); ou quando da extinção do contrato principal.
Ao transportar este instituto para a Lei de Locação, imprescindível que os artigos do referido Diploma Legal se adaptem aos princípios norteadores da fiança.
[...] Assim, a cada contrato de fiança firmado, diferentes conseqüências serão produzidas aos encargos do fiador.
Dessa forma, há que se fazer algumas considerações: 1º) se os fiadores concordaram em garantir a locação, tão-somente, até o termo final do contrato locativo (prazo certo), não responderão pelos débitos advindos da sua prorrogação para prazo indeterminado; 2º) se os fiadores concordaram em garantir a locação até o termo final do contrato locativo (prazo certo) e expressamente anuíram em estender a fiança até a entrega do imóvel nos casos de prorrogação do contrato locativo para prazo indeterminado, responderão pelos débitos daí advindos.
Entretanto, na segunda hipótese, ante o caráter gratuito da fiança e a indefinição temporal para a entrega do imóvel, eis que depende exclusivamente da vontade do locatário, a garantia deve ser entendida como sendo por prazo indeterminado, a possibilitar ao fiador a sua exoneração, [...]’ [69]
Do cotejo dos acórdãos, percebe-se que a discussão concentra-se no fato de a fiança estender-se ou não até a entrega do imóvel e, nesse caso, se houve ou não cláusula de prorrogação - do aludido contrato de locação por prazo indeterminado - da qual o garante tenha tido ciência.
Assim, pode a garantia ser prestada a prazo determinado ou a prazo incerto, isto é, pelo prazo de vigência do contrato ou até a efetiva entrega das chaves. [70]
Tratando do instituto da prorrogação, Pontes de Miranda afirmou:
"a regra é que as garantias prestadas pelo locatário continuam; quanto às garantias prestadas por terceiros, o que decide é a convenção com êsses. [...] Se a fiança diz: ‘até a entrega das chaves’, sem aludir ao tempo do contrato, - persiste com a prorrogação. Outrossim, quando está escrito: ‘pode entregar as chaves, ficando fiador pelo aluguer’, ou ‘ficando fiador pelas obrigações contratuais’, ou ‘respondendo pelo que A tiver de lhe prestar’. Não, porém, se está na fiança: ‘respondendo pelos alugueres até 31 de dezembro de 1952’." [71]
Em que pese perfeitamente singela e cabal a lição, o STJ vinha entendendo que a fiança só seria válida se prestada pelo prazo de duração do contrato, editando e aplicando a Súmula 214, independentemente de haver ou não cláusula acerca da prorrogação contratual por prazo indeterminado.
Arnaldo Marmitt leciona que "a fiança prevalece até a entrega das chaves, mesmo no caso de prorrogação automática do contrato, com abrangência de todos os reparos necessários, se o fiador assim se comprometeu no respectivo instrumento." [72]
Quanto à questão da necessidade ou não de notificar o fiador da prorrogação do contrato após o término do período inicial de locação, questão que era amplamente discutida na doutrina e jurisprudência pré-constitucionais, resumiu Lauro Laertes de Oliveira: "Se o fiador responsabilizou-se até a entrega das chaves, desnecessário avisá-lo de que o período inicial da locação findou e ocorreu prorrogação. Cabe a ele diligenciar e pleitear a exoneração, se lhe convier." [73]
No direito argentino a fiança finda com o cumprimento da obrigação do negócio jurídico principal. Sustenta Arias: "terão terminado as obrigações acessórias originadas na autonomia privada no mesmo prazo que as correspondentes ao negócio jurídico principal." [74]
Sica reputa completamente desacertado o posicionamento adotado pelo STJ (nos moldes do acórdão nº 560.438-SC) aduzindo que a prorrogação do contrato de locação não depende da anuência do garante, mas se dá automaticamente por força de lei, assistindo o fiador a possibilidade de se exonerar da fiança prestada nos moldes do Código Civil e, para a aplicação da Súmula 214, refere que deve ser atentado para a relevância da distinção entre o termo "aditamento" e o instituto da "novação":
[...] pois, reconhecida a novação, a fiança se extingue; de outro lado, ausente o animus novandi, a obrigação principal e a fiança se mantêm, mas o fiador responde apenas pelo que foi originalmente pactuado, não se lhe impondo honrar pacto subseqüente de que não tenha participado. [75]
Conforme já exposto nas decisões colacionadas, a prorrogação automática do contrato de locação por prazo indeterminado não configura "aditamento contratual", razão pela qual o STJ vinha emitindo decisões equivocadas, [76] tais como a decisão do primeiro acórdão ora analisado, porque em pleno vigor o art. 39 da Lei do Inquilinato respaldado pelo art. 2036 do CC. [77]
Sendo a fiança convencional um contrato secundário quando inserida num contrato de locação de imóveis certo é que o credor pode renunciar aos benefícios que a lei lhe concede, por se tratar de direito disponível.
Sob este prisma, plenamente justificada a decisão do relator Arnaldo Esteves Lima, no julgamento do segundo acórdão analisado, quando afirma que,
[...] se os fiadores concordaram em garantir a locação até o termo final do contrato locativo (prazo certo) e expressamente anuíram em estender a fiança até a entrega do imóvel nos casos de prorrogação do contrato locativo para prazo indeterminado, responderão pelos débitos daí advindos. Entretanto [...] ante o caráter gratuito da fiança e a indefinição temporal para a entrega do imóvel, eis que depende exclusivamente da vontade do locatário, a garantia deve ser entendida como sendo por prazo indeterminado, a possibilitar ao fiador a sua exoneração, nos termos do artigo 1.500 do Código Civil revogado, se o contrato tiver sido celebrado na sua vigência, ou do artigo 835 do Novo Código Civil, se o contrato foi acordado após a sua entrada em vigor. [78]
Para Costa, "mesmo após a vigência do Código Civil de 2002", a matéria acerca da exoneração do fiador das obrigações decorrentes da garantia "continua sendo regulada pela Lei nº 8.245/91 [...] e isso não implicaria em concessão de efeito extensivo à fiança, porque prevaleceria a lei especial." [79]