3. LIBERDADES CONSTITUCIONAIS
Como dito anteriormente, sabemos que a luta pelo reconhecimento dos direitos fundamentais foi um processo longo e árduo, que se confunde até com a história da humanidade. Assim, como já sabemos, a luta pela conquista desses direitos se resume na luta pela liberdade, que nada mais é que o poder da busca pela realização pessoal, ou seja, a busca pela felicidade. Neste sentido leciona José Afonso da Silva:
O conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de atuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua felicidade. É boa, sob esse aspecto, a definição de Rivero: "a liberdade é um poder de autodeterminação, em virtude do qual o homem escolhe por si mesmo seu comportamento pessoal". Vamos um pouco além, e propomos o conceito seguinte: liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios complementares à realização da felicidade pessoal. Nessa noção, encontramos todos os elementos objetivos e subjetivos incluídos à ideia de liberdade; é poder de atuação sem deixar de ser resistência à opressão; não se dirige contra, mas em busca, em perseguição de alguma coisa, que é a felicidade pessoal, que é circunstancial, pondo a liberdade, pelo seu fim, em harmonia com a consciência de cada um, com o interesse do agente. Tudo que impossibilita a coordenação dos meios é contrário à liberdade. E aqui, aquele sentido histórico da liberdade se insere na sua acepção jurídico-política. Assim, por exemplo, deixar o povo na ignorância, na falta de escola, é negar-lhe a possibilidade de coordenação consciente daqueles meios; oprimir o homem, o povo, é retirar-lhe aquela possibilidade etc. Desse modo, também, na medida em que se desenvolve o conhecimento, se fornecem informações ao povo, mais se amplia a sua liberdade com abrir maiores possibilidades de coordenação de meios separados à expansão da personalidade de cada um. (SILVA, 2020, p. 235).
Conforme a definição acima apresentada, observa-se o porquê desta luta histórica e consequentemente o seu reconhecimento, pelas nações democráticas de todo o mundo, tornando os direitos à liberdade em direitos fundamentais de cada povo, os positivando em suas Constituições, os tornando princípios basilares de todo o ordenamento jurídico.
Desta maneira, sabemos, também, que os direitos fundamentais são aqueles direitos humanos reconhecidos por uma nação, no caso brasileiro, são os direitos e garantias fundamentais elencadas em nossa Constituição Federal de 1988. Sobre este processo leciona o Ministro Luís Roberto Barroso:
A história da humanidade é a história da afirmação do indivíduo em face do poder, em suas múltiplas manifestações: político, social e econômico. Um enredo que narra o esforço milenar de superação do arbítrio, do preconceito e da exploração. A construção dos direitos fundamentais se dá pela agregação de conquistas civilizatórias paulatinas, que vão se sedimentando em direitos de natureza e conteúdo diversos. Surgem, assim, sucessivamente, os direitos individuais, os direitos políticos e os direitos sociais. Mais recentemente, passaram a ser reconhecidos, igualmente, direitos identificados como coletivos ou difusos. (BARROSO, 2019, p. 493).
Neste contexto histórico, os direitos fundamentais surgem como direitos individuais, voltados para a proteção do indivíduo frente ao poder do Estado. Neste plano os direitos individuais são classificados pela doutrina majoritária como direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão. Nesta primeira classificação, que contém os primeiros direitos reconhecidos historicamente, incluem-se o os direitos de liberdade em geral, sendo estas liberdades basilares para a constituição do princípio central do nosso ordenamento jurídico o da dignidade da pessoa humana. No contexto nacional Luís Roberto Barroso nos demonstra o reconhecimento dessas liberdades em nosso processo de constitucionalização:
Na experiência constitucional brasileira, os direitos individuais vêm enunciados desde a primeira Constituição, a Carta Imperial de 1824, outorgada por D. Pedro I. Voltaram figurar na primeira Constituição republicana, a de 1891, bem como na Constituição de 1934 e até mesmo na Carta ditatorial de 1937, que institucionalizou o Estado Novo. Com a redemocratização, ingressaram com destaque na Constituição de 1946 e não foram excluídos sequer da Constituição do regime militar, de 1967 e 1969, Boa parte do período republicano brasileiro foi marcado pela encenação de liberdades inexistentes, com substancial falta de efetividade dos direitos individuais. A Constituição de 1988 enfrentou tanto o passado ditatorial quanto a tradição de falta de efetividade dos direitos individuais. Em movimento simbólico, trouxe o Titulo "Dos direitos e garantias fundamentais" para o início da Constituição, logo após o Título I, intitulado "Dos princípios fundamentais". E, em outros dispositivos, procurou instituir meios para garantir a sua concretização. O elenco dos direitos individuais está concentrado - embora não seja totalmente exaustivo - nos 78 incisos do art. 5º da Constituição, que inclui: (i) o direito à igualdade (inc. I e art. 39, IV); (ii) o direito geral de liberdade (inc. II); (iii) a liberdade de expressão, em suas diferentes manifestações (incs. IV e IX); (iv) a liberdade religiosa (incs. VI e VIII); (v) o direito de privacidade (inc. X); (vi) os direitos de reunião e associação (incs. XVI e XVII); (vii) o direito de propriedade, inclusive intelectual (incs. XXII e XXVIII e XXIX); (viii) o direito de ir ao Judiciário (inc. XXV); (ix) o direito de não ser preso arbitrariamente (LXI); (x) devido ao processo legal (LIV). (BARROSO, 2019, p. 494). (grifei).
Veja que, diante dos ensinamentos do Ministro da Suprema Corte, os direitos fundamentais voltados às liberdades individuais são reconhecidos pelo nosso ordenamento desde o período imperial. Contudo, sabemos que, historicamente, nem sempre esses direitos foram garantidos materialmente, estando apenas formalmente reconhecidos durante os períodos ditatoriais. Neste contexto, este autor se aproveita para reafirmar que, mesmo positivados no texto constitucional, a luta pela a efetividade das liberdades individuais, neste caso o da liberdade de expressão e pensamento, deve ser constante, pois, ao permitirmos o cerceamento de qualquer desses direitos sob qualquer pretexto, admitindo que o exercício destes configure ato ilícito ou até mesmo um crime, como pretende alguns projetos legislativos para o combate das fake news, poderemos, deste modo, admitir que outros direitos sejam violados. Assim, não estaríamos vivendo, materialmente, em um Estado Democrático de Direito.
Na defesa desta tese as palavras de Paulo Gustavo Gonet Branco e do Ministro do STF Gilmar Mendes são esclarecedoras:
O catálogo dos direitos fundamentais na Constituição consagra liberdades variadas e procura garanti-las por meio de diversas normas. Liberdade e igualdade formam dois elementos essenciais do conceito de dignidade da pessoa humana, que o constituinte erigiu à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito e vértice do sistema dos direitos fundamentais. As liberdades são proclamadas partindo-se da perspectiva da pessoa humana como ser em busca da autorrealização, responsável pela escolha dos meios aptos para realizar as suas potencialidades. O Estado democrático se justifica como meio para que essas liberdades sejam guarnecidas e estimuladas – inclusive por meio de medidas que assegurem maior igualdade entre todos, prevenindo que as liberdades se tornem meramente formais. O Estado democrático se justifica, também, como instância de solução de conflitos entre pretensões colidentes resultantes dessas liberdades. A efetividade dessas liberdades, de seu turno, presta serviço ao regime democrático, na medida em que viabiliza a participação mais intensa de todos os interessados nas decisões políticas fundamentais. (MENDES, 2019, p. 267).
Isto posto, pode-se afirmar que as liberdades individuais reconhecidas em nossa Constituição são direitos e princípios basilares da dignidade da pessoa humana e do Estado Democrático de Direito. Neste sentido são os ensinamentos de José Afonso da Silva:
Já vimos que o regime democrático é uma garantia geral da realização dos direitos humanos fundamentais. Vale dizer, portanto, que é na democracia que a liberdade encontra campo de expansão. É nela que o homem dispõe da mais ampla possibilidade de coordenar os meios de comunicação a realização de sua felicidade pessoal. Quanto mais o processo de democratização avança, mais o homem se vai libertar dos pedidos que o constrangem, mais liberdade conquista. (SILVA, 2020, p. 235).
Com isso, mostra-se, neste estudo, que a liberdade de expressão e pensamento possui status fundamental de uma sociedade livre e democrática.
Pois bem, diante do exposto resta claro e evidente a importância desse reconhecimento como direito fundamental, isto se justifica pelo princípio constitucional de liberdade, que nada mais é que o princípio basilar da legalidade, como explica Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2020, p. 245) “O princípio de legalidade é o princípio de liberdade. Com efeito, ele significa que o ser humano pode assumir a conduta que quiser, bem como não estar obrigado a nada, salvo determinação legítima do poder político, expressa pelo instrumento que é a lei.” Isso demonstra, no presente estudo, que o ser humano tem o direito de se expressar, ou seja, possui a liberdade de demonstrar suas opiniões desde que não sobreponha outro direito constitucional ou fira outro princípio expresso na Constituição Federal. No mesmo sentido Alexandre de Moraes leciona que:
A manifestação do pensamento é livre e garantida em nível constitucional, não aludindo a censura prévia em diversões e espetáculos públicos. Os abusos porventura ocorridos no exercício indevido da manifestação do pensamento são passíveis de exame e apreciação pelo Poder Judiciário com as consequentes responsabilidades civil e penal de seus autores, decorrentes inclusive de publicações injuriosas na imprensa, que deve exercer vigilância e controle da matéria que divulga. (MORAES, 2020, p. 46).
Como observado, a Constituição Federal de 1988 garante a liberdade do ser humano, tutelando esse direito em face do poder arbitrário de quem quer que seja, assim, sendo o princípio da legalidade se trata de uma tutela constitucional garantidora da liberdade humana, sendo competente para o reconhecimento de possíveis abusos o Poder Judiciário, assim, não se admite qualquer tipo de censura prévia ao direito de liberdade de expressão do pensamento.
Deste modo, somente em virtude de lei se admite a limitação prévia, respeitando deste modo os princípios existentes em nosso ordenamento jurídico, neste sentido complementa Alexandre de Moraes, lecionando sobre as liberdades constitucionais:
O art. 5º, II, da Constituição Federal, preceitua que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado. Só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral. Com o primado soberano da lei, cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei. Conforme salientam Celso Bastos e Ives Gandra Martins, no fundo, portanto, o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura ao particular a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a da lei, pois como já afirmava Aristóteles, ‘a paixão perverte os Magistrados e os melhores homens: a inteligência sem paixão – eis a lei’. (MORAES, 2020, p. 42).
Como observado, as liberdades constitucionais são garantias fundamentais reconhecidas ao indivíduo, tutelando, pelo princípio da legalidade, o direito de fazer ou deixar de fazer apenas aquilo que expressamente previsto em lei. Garantindo assim, que ninguém será compelido a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da expressão da vontade geral, que nada mais é que a lei, ou seja, só haverá restrições ao cidadão quando tal restrição for aprovada pelo povo, através de seus representantes, respeitando o devido processo legislativo, cujo conteúdo normativo deve estar em conformidade com a Constituição. Com isso, conclui-se que para a limitação de qualquer liberdade, inclusive a de expressão do pensamento, há de haver ato legislativo legitimo e constitucionalmente reconhecido para tal, admitindo apenas a limitação das liberdades para a garantia de outro direito fundamental, assim, maiores limitações que as já existentes, convenhamos, em nosso ordenamento atual, dificilmente será reconhecida. Assim leciona o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, demostrando as limitações essenciais já existentes às liberdades de pensamento e informação:
A Constituição Federal não protege as informações levianamente não verificadas ou astuciosas e propositadamente errôneas, transmitidas com total desrespeito à verdade, pois as liberdades públicas não podem prestar-se à tutela de condutas ilícitas. A proteção constitucional à informação é relativa, havendo a necessidade de distinguir as informações de fatos de interesse público, da vulneração de condutas íntimas e pessoais, protegidas pela inviolabilidade à vida privada, e que não podem ser devassadas de forma vexatória ou humilhante. [...] Jean François Revel faz importante distinção entre a livre manifestação de pensamento e o direito de informar, apontando que a primeira deve ser reconhecida inclusive aos mentirosos e loucos, enquanto o segundo, diferentemente, deve ser objetivo, proporcionando informação exata e séria. (MORAES, 2020, p. 923).
Isto posto, observamos que a própria Constituição já possui mecanismos para restrições e limitações das liberdades constitucionais existentes, assim, no entendimento deste autor, não há espaço para maiores limitações ou restrições, pois diante da unicidade do ordenamento, este próprio, busca tutelar as liberdades nele prevista de modo a não suprimir o que se busca garantir.
Assim leciona Geisa Rodrigues, contemplando um dos mais importantes mecanismos de garantia das liberdades constitucionais, os remédios constitucionais:
A gênese dos remédios constitucionais foi um imperativo categórico para a afirmação do moderno Estado de Direito. Como já enfatizado, não se poderia conceber a declaração de direitos fundamentais sem que houvesse mecanismos de defesa destes. É óbvio, por exemplo, que a vedação da prisão injusta só se torna uma realidade quando existe um instrumento como o habeas corpus, ou outro que lhes faça as vezes, para evitar ou reprimir a indevida privação da liberdade. O Professor Miranda (1993, p. 244) afirma com propriedade que “a inerência da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais ao Estado de Direito e a sua subjetivação explicam a plena sujeição ao regime reforçado dos direitos, liberdades e garantias”. (RODRIGUES, 2014, p. 3).
Diante do esclarecido, vamos agora nos dedicar ao direito fundamental objetivado na presente pesquisa, a liberdade de expressão e pensamento.
3.1. LIBERDADE DE EXPRESSÃO DO PENSAMENTO
Diante do exposto nos capítulos anteriores, em que apresentamos todo contexto histórico e conceitual dos direitos e liberdades fundamentais de forma genérica, vamos agora nos aprofundar, no objeto desta pesquisa, de forma específica, no instituto da liberdade de expressão e pensamento. Assim, para iniciarmos, é importante buscarmos as concepções filosóficas existentes referente ao tema, para não cometermos equívocos e nos basearmos apenas superficialmente sobre o assunto. Desta forma, este autor se usa das palavras de Luiz Fernando Marrey Moncau para introduzir o tema:
Conhecer as diversas concepções existentes (ou as orientações deste direito) não é relevante apenas por seu valor histórico, mas principalmente porque, um depender da fundamentação filosófica empregada, os resultados de um trabalho de ponderação desse princípio com outros mandamentos constitucionais podem ser radicalmente distintos. Mais do que isso, para compreender de que modo o princípio da liberdade de expressão pode sofrer um processo de ressignificação, é imperioso saber, a priori, quais são os significados que lhe são tradicionalmente atribuídos. (MONCAU, 2015, p. 1).
Deste modo, em vez de reproduzir com bases históricas de conquista desse direito, como foi apresentado nos capítulos anteriores, serão apresentadas, neste capítulo, as diferentes raízes que servem de sustentação ao princípio da liberdade de expressão, bem como quais objetivos, valores e finalidades buscam alcançar, abrindo assim espaço para as discussões que se pretende fazer nos capítulos seguintes do presente estudo.
Pois bem, como indicamos anteriormente, os direitos e garantias fundamentais são pilares essenciais para a constituição do Estado Democrático de Direito, assim, foram reconhecidos e positivados em oposição a todo e qualquer tipo de tirania e opressão, consequentemente, ao tratarmos, especificamente, do direito à liberdade de expressão e pensamento, observamos que não foi diferente o motivo de seu reconhecimento e desenvolvimento. Ao analisarmos o contexto histórico observamos que no período medieval a sustentação política à época era pura e simplesmente religiosa. Quando o absolutismo monarca imperava sem limites, pela justificação da Igreja cuja única e absoluta verdade era a justificativa de que o rei e o Papa eram os únicos representantes de Deus na Terra. Neste contexto, o surgimento da liberdade de expressão surgiu, conjuntamente, com outro princípio fundamental, o da liberdade religiosa, quando Martinho Lutero pregou as 95 teses contrárias a Igreja Católica, exercendo, então, mesmo que, na época, suprimidos, a liberdade de expressão e pensamento e a crença religiosa. Desta forma então, nas palavras de Luiz Fernando Marrey Moncau, surgia os primeiros sinais das liberdades religiosa, de expressão e pensamento:
A sustentação do regime político em vigor, portanto, passava pela tenção da dogmática religiosa. Qualquer contestação das verdades religiosas da época (heresia), por sua vez, colocava em xeque as estruturas do poder sendo muitas vezes considerada como punível pela ordem vigente. É por essa razão que se afirma que andam juntas como liberdades de expressão e de crença religiosa (ou ainda, a laicidade do Estado), pois somente a partir da adoção pelo Estado de princípios de tolerância religiosa que se torna possível debater a fundamentação do poder político, abrindo espaço para uma fundamentação racional do Estado Moderno. É nesse sentido que se destaca a importância de John Locke para a liberdade de pensamento, especialmente em função de sua obra Carta sobre a Tolerância, datada de 1689. A origem da ideia de liberdade de expressão, portanto, só teve lugar após um profundo questionamento da ordem religiosa vigente na Europa, o que ocorreu a partir da ascensão do protestantismo e de alguns de seus grupos mais radicais, como setores do puritanismo inglês. As primeiras argumentações em torno da liberdade de opinião, a expressão e imprensa buscavam de certa forma desmistificar a ideia de verdade absoluta sustentada em nível metafísico. Encontra-se, assim, na raiz dessas argumentações uma das primeiras finalidades atribuídas ao direito de livre expressão: a busca da verdade. (MONCAU, 2015, p. 2).
Diante do exposto, veja que a sustentação do poder despótico da época era o total cerceamento da liberdade de expressão e pensamento, como também da crença religiosa, neste sentido, observa-se que para o autoritarismo atuar é necessário a supressão de liberdades. Foi assim em toda história, seja no período medieval seja na idade moderna e até mesmo na idade contemporânea. Vimos nestes períodos, as mais autoritárias e despóticas imposições de verdades e a mais clara supressão da liberdade de expressão na defesa dos interesses da elite dominante a cada época. Por tanto, este autor reforça, não podemos permitir que tempos sombrios como estes voltem, assim, nos tempos atuais, a busca pela verdade deve continuar livre, todas as diferentes visões e pensamentos sobre quaisquer assuntos não podem ser suprimidas ou impostas, seja qual for o pretexto. Vindo à tona, então, no contexto atual, as chamadas fake news não podem ser e muito menos virarem motivo para o regresso e supressão dos direitos de liberdade de expressão e pensamento.
Pois bem, retomando o raciocínio filosófico do princípio da liberdade de expressão, Luiz Fernando Marrey Moncau nos apresenta as visões de John Milton e John Stuart Mill quanto aos principais malefícios da supressão da liberdade de expressão e pensamento:
As ideias de Milton estão refletidas também na teoria de outro importante filósofo inglês, John Stuart Mill, cuja obra On Liberty apresenta algumas relevantes considerações que merecem análise detalhada. Mill, um dos expoentes do utilitarismo, apresenta um fundamento em defesa da liberdade de pensamento e discussão que segue esta linha teórica. O autor, baseando-se em grande parte nas ideias de Milton, sustenta seu raciocínio em torno da busca da verdade, levantando três hipóteses em relação aos malefícios que podem ocorrer da supressão de uma opinião. Estas hipóteses analisam a possibilidade de a opinião ser a totalidade da verdade, parcialmente verdadeira ou errada. Para Mill, se uma opinião for correta e o Estado suprimi-la, o maior lesionado não será aquele que teve censurado o seu direito de se expressar, mas justamente aqueles que discordam da opinião, que ficarão privados da possibilidade de trocar o erro pela verdade. Especialmente interessante é uma argumentação utilitarista de Mill acerca das opiniões que veiculam um erro. O autor afirma que, casos, aqueles que discordam da opinião seriam quase tão prejudicados quanto no caso anterior, pois ficariam privados de auferir uma percepção mais clara da verdade a partir da sua colisão com o erro. (MONCAU, 2015, p. 6).
Diante do apresentado, conclui-se que não há nada além de malefícios quando existe o cerceamento da liberdade de expressão, a não ser para aquele que impõe a sua única verdade para a manutenção de seu próprio interesse.
Pois bem, justificado então a importância inescusável deste direito fundamental, iremos agora nos aprofundar nos conceitos apresentados pela melhor doutrina em face da Constituição Federal de 1988 e consequentemente contextualizá-lo contemporaneamente. Assim, José Afonso da Silva leciona:
A liberdade de comunicação consiste num conjunto de direitos, formas, processos e veículos, que possibilitam a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da informação. É o que se extrai dos incisos IV, V, IX, XII e XIV do art. 5. ° combinados com as arts. 220. a 224 da Constituição. Compreende ela as forma de criação, expressão e manifestação do pensamento e de informação, e a organização dos meios de comunicação, esta instituição estabelece um regime jurídico especial [...]. As formas de comunicação regem-se pelos princípios básicos:
(a) observado o disposto na Constituição, não sofrerão qualquer restrição qualquer que seja o processo ou veículo por que se exprimam; (b) nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística; (c) é vedada toda e qualquer forma de censura de natureza política, ideológica e artística; (d) a publicação de veículo impresso de comunicação independente de licença de autoridade; (e) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens dependem de autorização, concessão ou permissão do Poder Executivo federal, sob o controle sucessivo do Congresso Nacional, a que cabe apreciar o ato, no prazo do art. 64, §§ 2 ° e 4 ° (45 dias, que não correm durante o recesso parlamentar); (f) os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio. (SILVA, 2020, p. 245-246).
No mesmo sentido é o ensinado por Alexandre de Moraes, Ministro da Suprema Corte:
A garantia constitucional de liberdade de comunicação social, prevista no art. 220, é verdadeiro corolário da norma prevista no art. 5º, IX, que consagra a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. O que se pretende proteger nesse novo capítulo é o meio pelo qual o direito individual constitucionalmente garantido será difundido, por intermédio dos meios de comunicação de massa. Essas normas, apesar de não se confundirem, completam-se, pois, a liberdade de comunicação social refere- se aos meios específicos de comunicação. Pode-se entender meio de comunicação como toda e qualquer forma de desenvolvimento de uma informação, seja através de sons, imagens, impressos, gestos. A Constituição Federal, porém, regulamenta o sentido mais estrito da noção de comunicação: jornal, revistas, rádio e televisão. O texto constitucional consagra a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens, de maneira privativa, aos brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou às pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras que tenham sede no país. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão restrição, observado o disposto na Constituição, que proíbe: a edição de lei que contenha dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV; toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística; a exigência de licença de autoridade para publicação de veículo impresso de comunicação; permite-se, porém, a sujeição da propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias a restrições legais, bem como, se necessário, a advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. (MORAES, 2020, p. 925).
Consequentemente, colaciono, na opinião deste autor, a melhor definição doutrinária do direito fundamental de liberdade de expressão e pensamento inserido na Constituição de 88, pois na definição a seguir se resume toda a justificativa da presente pesquisa e assim por este motivo sua inserção integral. Nas palavras de Paulo Gustavo Gonet Branco e de Gilmar Ferreira Mendes, Ministro da Suprema Corte:
A liberdade de expressão é um dos mais relevantes e preciosos direitos fundamentais, correspondendo a uma das mais antigas reivindicações dos homens de todos os tempos. A Constituição cogita da liberdade de expressão de modo direto no art. 5º, IV, ao dizer “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, bem como no inciso XIV do mesmo artigo, em que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”, e também no art. 220, quando dispõe que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. Acrescenta, nos §§ 1º e 2º do mesmo artigo, que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”, e que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Incluem-se na liberdade de expressão faculdades diversas, como a de comunicação de pensamentos, de ideias, de informações, de críticas, que podem assumir modalidade não verbal (comportamental, musical, por imagem etc.). O grau de proteção que cada uma dessas formas de se exprimir recebe costuma variar, não obstante todas terem amparo na Lei Maior. Compreender os fundamentos que se designam como justificativa para a proteção da liberdade de expressão é útil, quando se enfrentam problemas relacionados com o âmbito normativo desse direito básico. É frequente que se diga que “a busca da verdade ganha maior fecundidade se levada a cabo por meio de um debate livre e desinibido”. A plenitude da formação da personalidade depende de que se disponha de meios para conhecer a realidade e as suas interpretações, e isso como pressuposto mesmo para que se possa participar de debates e para que se tomem decisões relevantes. O argumento humanista, assim, acentua a liberdade de expressão como corolário da dignidade humana. O argumento democrático acentua que “o autogoverno postula um discurso político protegido das interferências do poder”. A liberdade de expressão é, então, enaltecida como instrumento para o funcionamento e preservação do sistema democrático (o pluralismo de opiniões é vital para a formação de vontade livre). Um outro argumento, que já foi rotulado como cético, formula-se dizendo que “a liberdade de criticar os governantes é um meio indispensável de controle de uma atividade [a política] que é tão interesseira e egoísta como a de qualquer outro agente social”. O ser humano se forma no contato com o seu semelhante, mostrando-se a liberdade de se comunicar como condição relevante para a própria higidez psicossocial da pessoa. O direito de se comunicar livremente conecta-se com a característica da sociabilidade, essencial ao ser humano. (MENDES, 2019, p. 267-268).
Diante das perfeitas definições doutrinarias, concluímos, como exaustivamente dito até aqui, que a liberdade de expressão do pensamento, em suas mais diversas formas, é um dos direitos mais reivindicados e buscados na história e por este motivo considerado uma das conquistas mais preciosas do ser humano. Exatamente por esse árduo processo de reconhecimento da liberdade de expressão, princípio basilar da dignidade da pessoa humana, instituto amplamente tutelado e reconhecido na Constituição Federal de 1988, que o constituinte originário se preocupou em detalhar expressamente as mais diversas formas de garantia e proteção da liberdade de expressão e pensamento.
Assim, em resposta as ofensas históricas aos direitos humanos, ao direito fundamental de liberdade de expressão do pensamento e do livre exercício da imprensa na busca pela verdade real, o legislador constituinte originário, observando o período ditatorial que acabara de ser superado, buscou reprimir antecipadamente qualquer tipo de supressão desse direito ao expressamente estabelecer que “ Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.” (art. 220, §1º, CF/88), como também “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.” ( art. 220, §2º, CF/88)2.
Com objetivo de inibir possíveis abusos e declarações de má fé vedou o anonimato no exercício desse direito. Sendo assim, observamos a mais ampla proteção das liberdades de expressão do pensamento, por tanto, não há justificativas para qualquer modo de supressão deste direito, pois, como expressado anteriormente, a ser humano se realiza e se desenvolve através da comunicação com seu semelhante, buscando sabedoria, nós nos dedicamos a buscar informações, através do exercício do direito de ser informado e consequentemente disseminamos o que aprendemos através da manifestação do pensamento, deste modo, a sociedade se desenvolve na medida que todos são livres para buscarem o conhecimento e a verdade. Sendo assim, a partir do momento em que haja embaraços para a disseminação de qualquer tipo de conhecimento, podemos correr o risco do “afunilamento de conteúdo”, ou seja, a partir do momento em que se escolhe o que pode ou não ser publicado, aquele que possui esse poder pode facilmente direcionar o que deve ser disseminado e o que não pode, deste modo, suprimindo opções e direcionando comportamentos. Nesta linha Gilmar Ferreira Mendes leciona sobre a censura:
Convém compreender que censura, no texto constitucional, significa ação inibitória realizada pelos Poderes Públicos, centrada sobre o conteúdo de uma mensagem. Proibir a censura significa impedir que as ideias e fatos que o indivíduo pretende divulgar tenham de passar, antes, pela aprovação de um agente estatal. O STF decidiu que tampouco o indivíduo pode cercear a liberdade de expressão de outrem, por meio de exigência da sua concordância prévia para que terceiro exerça a liberdade de informar e de ser informado. Daí, analisando dispositivos de Código Civil, haver declarado a inconstitucionalidade sem redução do texto da necessidade de autorização prévia do retratado em biografias para a publicação do texto. Para a Corte, “a autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular”, tida como inaceitável. Acrescentou que “o recolhimento de obras é censura judicial, a substituir a administrativa”, sendo não menos inadmissível. A proibição de censura não obsta, porém, a que o indivíduo assuma as consequências, não só cíveis, como igualmente penais, do que expressou. A liberdade em estudo congloba não apenas o direito de se exprimir, de informar e de ser informado, como também o de não se expressar, de se calar e de não se informar. Desse direito fundamental, não obstante a sua importância para o funcionamento do sistema democrático, não se extrai uma obrigação para o seu titular de buscar e de expressar opiniões. (MENDES, 2019, p. 269).
Estando mais do que justificado a história e os motivos da importância do direito fundamental da liberdade de expressão do pensamento reconhecido constitucionalmente, vamos agora, nos próximos capítulos, contextualizar este importante princípio para o atual problema das fake news, apresentando a evolução tecnológica e digital que possibilitou a disseminação de conteúdo.