4. DIREITO E AS NOVAS TECNOLOGIAS DE COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO.
Diante do apresentado nos capítulos anteriores, vamos agora encaminhar a presente pesquisa para a atualidade, para isso, iremos neste capítulo, apresentar, cronologicamente, a evolução da sociedade e a transformação do Direito, acompanhando o surgimento e transformações das mais diversas tecnologias utilizadas e desenvolvidas pela humanidade como sociedade. Assim, mister se faz introduzir ao estudo uma breve diferenciação do mundo natural e o mundo da cultura, sabemos então que o mundo natural é aquele que, pertence exclusivamente à natureza e é formado de “produtos” livres de intervenção humana, já o mundo cultural é formado por produtos “resultantes” da ação humana. Dentre exemplos a machadinha, barraco e até a linguagem, são estes produtos culturais. Na definição de Miguel Reale:
Cultura é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e espiritual, o homem constrói sobre uma base da natureza, quer para modificá-la, quer para modificar-se a si mesmo. É, desse modo, o conjunto dos elementos e instrumentos, das obras e serviços, assim como das atitudes espirituais e formas de compor- amento que o homem veio formando e aperfeiçoando, através da história, como cabedal ou patrimônio da espécie humana. (REALE, 2002. P. 25-26).
Pois bem, ao considerarmos que pertencem ao mundo da cultura todo produto resultante da ação do homem, observamos que a própria tecnologia se encaixa perfeitamente ao mundo cultural. Assim, conceituando, as palavras técnica e tecnologia têm origem comum na palavra grega techné que consiste em se alterar o mundo de forma prática (KNELLER, 1978). Desta definição, observa-se que tecnologia nada mais é do que alterar e ou modificar algo, ou seja, usando o exemplo, a machadinha, citada anteriormente, ao longo da história, o homem a transformou tecnologicamente, fazendo surgir os mais diferentes tipos de equipamentos utilizados para cortes, como por exemplo a foice a enxada e até mesmo a serra elétrica. Veja que a modificação da machadinha não alterou sua essência, apenas a transformou em formas diferentes de utilização, o mesmo ocorreu e ocorre com a linguagem e a comunicação, muda- se apenas o modo e preserva-se a essência, ou seja, com o surgimento de novas tecnologias, o ato de comunicar não se extingue, a essência é a mesma seja a comunicação feita por meio de cartas, telefone ou pela internet. Elucidando o apresentado, as palavras de João Vitor Rozatti Longhi são esclarecedoras:
Especificamente, é certo que a popularização da internet trouxe consigo alterações em vários segmentos da vida social. Por uma simples comparação entre antes e depois é possível perceber como a massificação do uso da “rede” modificou significativamente o quotidiano daqueles que possuem acesso frequente a ela. Entretanto, sabe-se que é com acuidade que devem ser encaradas todas as grandes mudanças aparentes, principalmente pela ciência jurídica. Afinal, sob outro prisma, é possível notar que muitas das transformações alteram apenas a forma embora a essência permaneça a mesma. Ou seja, a metáfora do impacto é inadequada. As técnicas novas não vêm de outro planeta, do mundo das máquinas, frio, sem emoções, estranho a toda significação e qualquer valor humano. (LONGHI, 2020, p. 1-2). (grifei).
Isto posto, equivale dizer que apesar das grandes mudanças na forma de comunicação da sociedade, advinda da massificação do uso da internet, a essência do ato de compartilhar ideias e informações, ou seja de se expressar, não se alterou, isto é, a intensão prévia, a vontade humana e as motivações são as mesmas desde sempre, assim, na hipótese intencional do cometimento do ilícito, como por exemplo, a divulgação de notícias falsas com claro intuito prejudicial a outrem, a intenção do ato infracional não muda conforme a forma em que é feito, por este motivo, este autor entende, que não cabe ao legislador criar novas formas de regulação e punição para o que já está regulamentado. No entanto, é prudente ressaltar que a extensão do dano causado pode ser diferente a depender do volume da divulgação, mas para isso, o ordenamento jurídico já prevê e incentiva os métodos de integração que podem e devem ser utilizados pelo juiz a depender do caso concreto. Isto tudo demonstra e reafirma que o ente competente para decidir e julgar o que são as Fake News é o próprio Poder Judiciário, em respeito à separação dos poderes, deste modo, não podendo o legislador outorgar poderes aos provedores de conteúdo de decidir o que deve ou não ser divulgado, pré-julgando, exercendo jurisdição, decidindo o que é ou não notícia falsa.
Coadunando à ideia apresentada João Victor Rozatti Longhi leciona sobre o ato de comunicar-se através da internet:
Ao revés, são concebidas, fabricadas e reinterpretadas durante seu uso pelos homens, como também é o próprio uso intensivo das ferramentas que proporcionam a humanidade enquanto tal. Em outras palavras, a tecnologia não é um ator autônomo, separado da sociedade e da cultura e como novas técnicas que seguem o funcionamento da Rede são apenas parte dos fenômenos humanos que, ainda que pré-programadas, não agem por vontade própria. As atividades humanas abrangem, invariavelmente: pessoas vivas e pensantes, entidades materiais naturais e artificiais, ideias e representações. E como um fruto desse complexo mosaico deve ser compreendido na Internet. Por seu turno, se a Internet corresponde a apenas mais um aspecto da cultura humana, passa-se a perquirir qual o atual papel do direito e como esta outra inseparável faceta de nossa civilização adquire vida no universo imaterial da Rede das redes. Em outros termos, o direito, desde o advento e popularização da Internet, deparou-se com seus próprios limites próprios, cabendo ao jurista aferir quais as influências que as últimas décadas trouxeram à milenar ciência jurídica. (LONGHI, 2020, p. 2).
Pois bem, diante do exposto conclui-se que a comunicação e a linguagem é produto da ação humana, assim como a tecnologia, pertencem ao mundo cultural. Historicamente, o ato de comunicar-se é intrínseco à cultura, pois há relatos que as sociedades primitivas se comunicavam por sinais e símbolos até evoluírem para a forma escrita. Deste modo, o ser humano, em toda história, de alguma forma transformou suas ferramentas através de novas técnicas modificou a maneira de produção de alimentos, de transporte, de construção e não foi diferente com a comunicação, a partir dos desenhos de símbolos, veio a forma escrita, posteriormente os livros, jornais, rádio, televisão e atualmente a internet. Sendo assim, como exposto introdutoriamente neste estudo, o ato de noticiar falsamente, ou resumidamente mentir, essencialmente não é novo, este acompanha a cultura humana desde que se tem conhecimento.
Assim como o Direito acompanha a sociedade, daí o brocardo em latim ubi societas, ibi jus e ubi jus, ibi societas, ou seja, onde está a sociedade o direito invariavelmente haverá de estar, o mesmo acontece com a comunicação, ou seja, o ato de se comunicar se expressar e de informar acompanha o homem em sociedade desde sempre. Por tanto, assim como a sociedade se transforma acompanhando o modo em que se comporta com as novas tecnologias o Direito deve acompanhar de forma eficaz este processo, de tal modo, que não perca sua essencialidade e não retroaja a tempos obscuros suprimindo direitos tão arduamente conquistados.
4.1. ORIGEM E CONCEITO DO FENÔMENO FAKE NEWS
O termo Fake News ficou popularmente conhecido nas eleições presidenciais americanas em 2016, quando, diante do debate político, houve variadas acusações de disseminação de notícias falsas, seja para a promoção ou desqualificação dos candidatos concorrentes àquela eleição. Contudo, o fenômeno da disseminação de falsas informações não é recente, conceitualmente, o ato de disseminar deliberadamente notícias falsas para obtenção de algum benefício, está presente na sociedade desde a antiguidade ou talvez muito antes disso. Por este motivo, afirmar quando e onde surgiu este fenômeno é adentrar em uma discussão obscura e enganadora, pois a origem das Fake News se confunde com o surgimento da sociedade e da capacidade humana de se comunicar. Neste sentido leciona Irene Patrícia Nohara:
[...] pode-se reputar arbitrária toda a tentativa de dizer que o primeiro registro de que se tem notícia de disseminação de mentiras seja, em realidade, a primeira manifestação de notícias falsas ocorridas entre as pessoas. Ademais, fica a indagação: por que seria na Grécia Antiga, e não na África, por exemplo, uma primeira manifestação de notícias falsas, dado que foi neste último continente que originou a humanidade? Parece haver um eurocentrismo exacerbado na visão que fixa uma notícia falsa como um fenômeno da Grécia antiga. (NOHARA, 2018, p. 76).
Pois bem, do exposto extrai-se que, conforme aludido no capítulo anterior, a origem do fenômeno das Fake News, o ato de disseminar falsas notícias, se confunde com o surgimento da capacidade de comunicação do ser humano, como também com o surgimento da sociedade e até mesmo com o surgimento do Direito. Pois o comportamento oportunista deliberado de noticiar falsamente para obter alguma vantagem ou para se defender, está presente até mesmo no reino animal, como visto na introdução do presente estudo, assim, sendo o homem um animal de maior sofisticação de comunicação, este fenômeno o acompanha desde o momento em que passou a conviver em grupo, ou seja, praticamente desde sempre, tendo em vista a natureza social do ser humano.
Ocorre que, como aludido anteriormente, o fenômeno das Fake News ganhou notoriedade com a popularização do uso da internet, quando foi possível processar variadas informações em uma velocidade nunca vista antes. No entanto, devemos ressaltar que o que ocorreu nos Estados Unidos em 2016, sempre ocorreu, e os impactos da disseminação da desinformação foram semelhantes, a diferença, que deu grande notoriedade, está justamente acompanhada de outro fenômeno denominado de pós-verdade e da velocidade em que essas notícias são espalhadas, deste modo, potencializado pela velocidade de processamento de informações, em um mundo onde mais da metade da população está conectada à “rede”, justifica o aparente terror diante de algo que aparenta ser desconhecido. Deste modo, colaciono aa estatísticas apresentadas por Irene Patrícia Nohara:
No começo da internet, no ano de 1994, 1% do mundo se conectou, já em 2014,35% do mundo estava conectado. Segundo o relatório Situação da conectividade de 2015, realizada pelo Facebook: havia 3,2 bilhões de pessoas on-line, mas ainda 4,1 bilhões de pessoas não eram usuárias da internet em 2015 (logo, 43% do mundo). Em 2018, em que o mundo conta com 7,6 bilhões de pessoas, há 4.021 bilhões de pessoas on- line, ou que representa 53% das pessoas do planeta. Já como redes sociais contaminadas com 3,2 bilhões de pessoas, isto é, 42% de todo o mundo integrado em redes. (NOHARA, 2018, p. 78).
Do exposto, observa-se o poder da internet na comunicação em massa, justificando o impacto percebido pela sociedade no processamento de informações. O impacto se justifica quando as notícias processadas em grande volume criam verdadeiras “bolhas”, segregando o público pelo viés cultural de cada pessoa, ou seja, as notícias enviesadas podem ser usadas para justificar a “verdade” que determinada pessoa já carrega consigo, deste modo, interpretar determinada informação para convencimento próprio e consequentemente a usar como ferramenta de argumentação e convencimento para com seu próximo, daí expresso o fenômeno da pós-verdade, sendo este fenômeno melhor conceituado e esclarecido nas palavras de Irene Patrícia Nohara:
Primeiro, percebe-se, na atualidade, que as redes sociais nem sempre unem e permitem o diálogo entre pessoas. Muito pelo contrário, elas acabam estabelecendo a conexão "entre bolhas" de pessoas que pensam da mesma forma e que se encontram em rede com o intuito primordial de confirmarem aquilo que já acreditam, não obstante haver informações na internet em sentido contrário. É exageradamente otimista supor que haverá nas redes um diálogo livre de indiferença, irritação e desprezo, ainda mais diante do aumento dos chamados haters (pessoas que destilam, em rede, todo ódio que acumulam em relações a certas pautas de assuntos socialmente includentes) e das pessoas que se utilizam da rede para disseminar discurso de ódio, segregação e opressão de grupos minoritários. É, portanto, um desafio permanente pensar na qualidade do diálogo que se trata em rede e na internet. Aliás, muitas vezes não há uma propensão às pessoas que se comunicam em rede de procurar discutir de forma equilibrada, isto é, ponderada, nem mesmo os assuntos que não dominam, que supostamente seriam aqueles que escolherem estar mais aberta ao diálogo. A propensão a achar que é verdade aquilo que se crê é associada com o fenômeno da pós-verdade. Essa é expressão que despontou a partir do momento. em que, em 2016, o Dicionário Oxford a elegeu como o assunto de destaque do ano. (NOHARA, 2018, p. 78).
Pois bem, diante do narrado observamos que o fenômeno das Fake News é acompanhado de outro fenômeno, denominado pós-verdade, ambos potencializados pelo uso em massa da internet, que oferece condições favoráveis para a percepção exagerada de algo nunca percebido desta forma, devido a grande velocidade em que se pode espalhar quaisquer informações, sejam elas verdadeiras, enviesadas ou maliciosamente falsas.
O impacto, aparentemente novo, deste conjunto, notícias julgadas como falsas, cultura enviesada da população e processamento em alta velocidade por meio da “rede”, na sociedade foi assustador, o que causou grande comoção social, deste modo motivando a realização de diversos estudos sobre o tema e consequentemente a presente pesquisa, esta que objetiva demonstrar argumentos e subsídios, visando proteger o direito fundamental de liberdade de expressão e pensamento, para tanto, este autor irá demonstrar que os danos causados por estes fenômenos não são “coisa de outro planeta”, ou seja, não são novos, o que não justifica a novação do legislador para tratar o tema, podendo o novo legislado oferecer ameaças às liberdades constitucionais.
Assim, para justificar o exposto exponha-se o exemplo de Lenon Oliveira Horbach:
No ano de 1994, a jornalista Junia de Sá, publicou artigo que tinha como título "você pode confiar nos jornais?", na oportunidade, a autora relatava que por mais que a imprensa seja séria, o leitor precisa ficar atento às publicações, pois os editores não são totalmente independentes e apartidários, logo, quando se lê alguma notícia, o receptor deve observar o noticiário "enviesado", principalmente quando se trata de épocas de campanha eleitoral. A autora citou o caso protagonizado por Mirian Cordeiro, Lula, e Fernando Collor, no ano de 1989. Poucos dias antes do segundo turno das eleições democráticas de 1989, pós Golpe Militar, Mirian Cordeiro, colocando-se na oportunidade como ex-namorada do candidato à presidência da República, Lula, proferiu discurso aberto, dentro do programa eleitoral de Fernando Collor, acusando que seu ex-marido a pressionou a fim de induzir aborto da 111 filha em comum, Lurian. O candidato obteve direito à resposta na época, concedido pelo TSE, entretanto, o resultado final foi de derrota de Lula. Anos mais tarde, novamente Mirian Cordeio pronunciou-se sobre os fatos, em reportagem ao Jornal do Brasil, sob o título "a vida confortável de Miriam", noticiando que foi remunerada por Fernando Collor para que mentisse quanto à conduta do ex-companheiro no segundo turno das novas presidenciais, uma vez que o mesmo nunca a pressionou para realização de aborto. O presente caso, bem como os escritos da jornalista, em 1994 demonstram que as mentiras, as distorções de fatos, seja no meio político, social, ou econômico, sempre existiram, todavia, em velocidade diferente da que se vê hoje. O caso envolvendo Lula e Mirian Cordeiro é uma prova de escândalo, baseado em uma mentira, que surtiu efeitos negativos, influenciando a opinião pública. (HORBACH, 2019, p. 44).
Veja que o fato do exemplo apresentado ocorreu em 1989, quando a imensa esmagadora maioria da população mundial nem imaginava que a internet poderia existir do modo em que opera na atualidade. Tal fato justifica que o fenômeno não é novo e acompanha a sociedade, assim como a comunicação e o direito a acompanha. Deste modo, conclui-se que da mesma forma que a sociedade se transforma, a comunicação e o Direito também se transformam e vice- versa, no entanto o núcleo de cada instituto, a essência em si, se preserva. Não havendo nada de novo sob este sol.
Conforme demonstrado nos primeiros capítulos deste estudo, sabemos que do mesmo modo em que a sociedade se transforma o Direito também se transforma, assim, verifica-se a necessidade de adequação do Direito à sociedade a qual pertence. Mas também durante a história a esmagadora maioria das modificações do Direito foram para o reconhecimento de direitos ao cidadão, não admitindo, deste modo, retrocessos ou perdas desses direitos. Assim, observa-se que onde o retrocesso foi imposto e ocorreu os resultados foram dor e sofrimento aos subjugados desse “novo direito”.
O não retrocesso do Direito é princípio basilar do Estado Democrático de Direito e por tanto, não podemos admitir que ele ocorra, sob o risco de voltar acontecer o que ocorreu no período das grandes guerras, quando o totalitarismo imperava em grande parte do mundo.
Por este motivo, vamos agora, no próximo capítulo demonstra os desafios do Direito diante dessa nova sociedade no enfrentamento deste fenômeno que cresce na mesma proporção em que a sociedade se transforma.
4.2. DESAFIOS DO DIREITO NO COMBATE ÀS FAKE NEWS
O ponto de partida deste capítulo terá foco na relação entre Direito e transformação social, especialmente na relação entre a normatividade do Direito e o surgimento de novos comportamentos e valorações sociais. Deste modo, como já foi exposto todo contexto histórico que levou a nossa sociedade a reconhecer e proteger diversos direitos, neste momento vamos nos recorrer aos ensinamentos de Miguel Reale, pois, seus estudos sobre ser e dever ser, sobre Direito e Moral e consequentemente sua teoria Tridimensional do Direito, nos demonstram o motivo pelo qual Direito e sociedade se confundem na existência, como também, apresenta o modo de como o Direito sempre se moldou às mais diversas mudanças sociais, sejam elas comportamentais e ou tecnológicas.
Nesta esteira, Miguel Reale leciona que a obrigatoriedade do Direito vem sempre acompanhada de exigências axiológicas, ou seja, no ato de edição e aprovação de uma lei, apesar da existência de uma margem para uma decisão livre e às vezes arbitrária, há neste contexto um complexo de opções que se processam no meio social que levam o legislador a adotar, através do juízo de valor social, obrigatoriedade a determinadas condutas. Disto, entende-se que ao depender do contexto social, que varia de tempo e local, tal sociedade pode ter ou não juízo de valor a determinada conduta ou objeto, assim, exemplificando podemos utilizar a conduta do adultério, sabemos que tal conduta era prevista como crime pelo art. 240. do Código Penal Brasileiro e a partir de 2005 tal conduto deixou de ser considerada crime, isto quer dizer que na sociedade atual brasileira ter relações amorosas extraconjugais, apesar de muitos ainda considerarem imoral, não é mais valorada pelo direito, ao contrário do que acontecia na sociedade de 1940 ou até mesmo em outa sociedades, como por exemplos os países árabes. Deste modo cabe colacionar de que modo o juízo de valor estrutura as normas em geral, nas palavras de Miguel Reale:
A norma ética estrutura-se, pois, como um juízo de dever ser, mas isto significa que ela estabelece, não apenas uma direção a ser seguida, mas também a medida da conduta considerada lícita ou ilícita. Se há, com efeito, algo que deve ser, seria absurdo que a norma não explicitasse o que deve ser feito e como se deve agir. Temos dito e repetido que as palavras guardam o segredo do seu significado. Assim acontece com o termo “regra”, que vem do latim regula. Da palavra latina originária regula derivaram dois vocábulos para o português: “régua” e “regra”. Que é régua? É uma direção no plano físico. Que é regra? É a diretriz no plano cultural, no plano espiritual. Por outro lado, a palavra norma, que nos lembra incontinenti aquilo que é normal, traduz a previsão de um comportamento que, à luz da escala de valores dominantes numa sociedade, deve ser normalmente esperado ou querido como comportamento normal de seus membros. A norma é, em geral, configurada ou estruturada em função dos comportamentos normalmente previsíveis do homem comum, de um tipo de homem dotado de tais ou quais qualidades que o tornam o destinatário razoável de um preceito de caráter genérico, o que não impede haja normas complementares que prevejam situações específicas ou particulares, que agravem ou atenuem as consequências contidas na norma principal. A regra representa, assim, um módulo ou medida da conduta. Cada regra nos diz até que ponto podemos ir, dentro de que limites podemos situar a nossa pessoa e a nossa atividade. Qualquer regra, que examinarem, apresentará esta característica de ser uma delimitação do agir; regra costumeira, de trato social, de ordem moral ou jurídica, ou religiosa, é sempre medida daquilo que podemos ou não podemos praticar, do que se deve ou não se deve fazer. (REALE, 2002, p. 36-37).
Pois bem, diante do exposto, afere-se que a norma extrai sua essência da sociedade em que se insere, neste sentido, dos estudos de Miguel Reale, podemos dizer que do juízo de valor de determinado povo ou sociedade confere-se as formas da atividade ética, assim, apara explicarmos e contextualizar a tese de Reale, é importante colacionar o seu entendimento:
A discriminação dessas espécies de normas poderá́ ser feita em função das diferentes finalidades que os homens se propõem. O filósofo alemão contemporâneo Max Scheler contrapôs à Ética formal de Kant, ou seja, à Ética do dever pelo dever, uma Ética material de valores, mostrando-nos que toda e qualquer atividade humana, enquanto intencionalmente dirigida à realização de um valor, deve ser considerada conduta ética. Pode mesmo ocorrer que o desmedido apego a um valor, em detrimento de outros, determine aberrações éticas, como é o caso dos homens que tudo sacrificam no altar do poder, da beleza, da economia etc. Aceito o prisma scheleriano do conteúdo axiológico das atividades éticas, poderemos discriminar as espécies fundamentais de normas, em função de alguns valores cardinais, que, através dos tempos, têm sido considerados o bem visado pela ação. (REALE, 2002, p. 37).
Ainda em sua obra, Miguel Reale apresenta exemplos de valores, dos quais o homem, como sociedade, pode priorizar em detrimento de outro a depender do objetivo que se busca, deste modo, motiva-se a transferência de suas palavras, na integra, ao presente estudo:
BELO — As atividades relativas à realização do que é belo, que têm como consequência o aparecimento dos juízos estéticos, das normas estéticas. Há homens que se preocupam, na vida, única e exclusivamente com o problema da beleza e a transformam no centro do seu interesse. É o caso dos artistas, dos poetas, dos homens para os quais a vida tem uma nota dominante, que é a nota estética. Embora haja homens que se preocupam exclusivamente com esse problema, ele é, de certa maneira, geral. O crescendo da cultura e da civilização tem como consequência tornar participe do problema da beleza um número cada vez maior de homens.
ÚTIL — Todos nós buscamos a realização de bens econômicos para satisfação de nossas necessidades vitais. O valor daquilo que é “útil-vital” implica um complexo de atividades humanas no comércio, na indústria, na agricultura. Assim como ao belo corresponde uma ciência chamada Estética e uma atividade, que são as artes, também com relação ao útil, existem a Ciência Econômica e uma série de atividades empenhadas na produção, circulação e distribuição das riquezas. Quando a Ética se subordina ao primado das exigências econômicas, ela se converte em mera superestrutura ideológica, tal como acontece no materialismo histórico de Marx e Lenin.
SANTO — É o valor ao qual correspondem as religiões e os cultos. Também neste campo existem homens que só vivem do valor do “santo”, do “sacro”, embora todos os homens, mais ou menos, sintam a necessidade dessa complementação transcendente da vida. É o valor do divino norteando o homem na sociedade, exigindo determinado comportamento por parte dos indivíduos e dos grupos.
Outro valor, que poderíamos lembrar, seria o que se designa a Filosofia, com a palavra “amor”.
AMOR — Nas suas diferentes espécies e modalidades, desde a simpatia até́ à paixão, passando por todas as relações capazes de estabelecer um nexo emocional entre dois seres. Também este é, um campo vastíssimo, traduzindo um fim a ser atingido, um valor a ser realizado, intersubjetivamente. Não faltam tentativas de fundar-se uma Ética do Amor, ou Erótica, de Eros, o deus do amor.
PODER — É o valor determinante da Política, que é a ciência da organização do poder e a arte de realizar o bem social com o mínimo de sujeição. Há uma Ética da política ou Ética do poder, assim como homens há para os quais a “razão de Estado” deve prevalecer sobre todos os valores. A Política acima de tudo, da religião, da arte, da ciência etc., todas postas a seu serviço, como nos Estados totalitários.
BEM INDIVIDUAL E BEM COMUM — Todos os homens procuram alcançar o que lhes parecer ser o “bem” ou a felicidade. O fim que se indica com a palavra “bem” corresponde a várias formas de conduta que compõem, em conjunto, o domínio da Ética. (REALE, 2002, p. 37-39).
Isto posto, podemos agora, com uma visão ampla, perceber que os valores éticos possuem o poder de guiar o caminho do homem. Dos exemplos acima citados, podemos observar que os desafios enfrentados pelo Direito são bem maiores que o problema atual, podemos usar como exemplo o valo PODER, usado no exemplo de Miguel Reale, em um passado não muito distante, vimos que as gerações passadas sofreram ao sobrepor este valor sobre os demais, as duas guerras mundiais ocorridas no século passado, são exemplos de aberrações éticas em que no contexto daquela época, este valor serviu de diretriz para o Direito dos países totalitários e de seus governos tirânicos justificarem as atrocidades cometidas a época.
Pois bem, o colacionado na primeira parte deste capítulo servirá de base para entendermos os perigos eminentes em nossa sociedade ao optarmos por valores que sobrepunham os arduamente conquistados ao longo da história. Contudo, este será tema do capítulo seguinte. Após introduzirmos a forma em que o Direito se comporta para acompanhar as transformações sociais, vamos agora nos dedicar a contextualizar o tema frente ao fenômeno das Fake News.
Assim, para contextualizar Miguel Reale se dedica a uma aula exclusiva sobre Direito e Moral, em sua obra nos apresenta a teoria do mínimo ético, que consiste, em síntese, dizer que o Direito declara obrigatório aquilo que, dentro do campo da Moral, escolheu ser obrigatório para buscar e preservar a paz social. Em suas palavras:
Em primeiro lugar, recordemos a teoria do “mínimo ético”, já exposta de certa maneira pelo filósofo inglês Jeremias Bentham e depois desenvolvida por vários autores, entre os quais um grande jurista e politicólogo alemão do fim do século XIX e do princípio do seguinte, Georg Jelinek. A teoria do “mínimo ético” consiste em dizer que o Direito representa apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver. Como nem todos podem ou querem realizar de maneira espontânea as obrigações morais, é indispensável armar de força certos preceitos éticos, para que a sociedade não soçobre. A Moral, em regra, dizem os adeptos dessa doutrina, é cumprida de maneira espontânea, mas como as violações são inevitáveis, é indispensável que se impeça, com mais vigor e rigor, a transgressão dos dispositivos que a comunidade considerar indispensável à paz social. Assim sendo, o Direito não é algo de diverso da Moral, mas é uma parte desta, armada de garantias específicas. A teoria do “mínimo ético” pode ser reproduzida através da imagem de dois círculos concêntricos, sendo o círculo maior o da Moral, e o círculo menor o do Direito. Haveria, portanto, um campo de ação comum a ambos, sendo o Direito envolvido pela Moral. Poderíamos dizer, de acordo com essa imagem, que “tudo o que é jurídico é moral, mas nem tudo o que é moral é jurídico”. (REALE, 2002, p. 42).
Da teoria do “mínimo ético”, Miguel Reale insere suas ressalvas, nas quais este autor concorda, da máxima “tudo o que é jurídico é moral”, o ilustre professor nos demonstra que no Direito existem as normas amorais e imorais, sendo àquelas as normas estritamente técnicas como as que facilitam e solucionam problemas na prestação jurisdicional, como por exemplo as normas processuais que estabelecem prazos para recursos, e estas Miguel Reale leciona que existem atos juridicamente lícitos que não são do ponto de vista moral, usando como exemplo a divisão igual de lucro entre uma sociedade, da qual apenas um se dedica e garante a sobrevivência da sociedade enquanto os demais se aproveitam do esforço alheio, trabalhando o mínimo necessário para fazer jus ao seu quinhão. No entanto, o que nos interessa, para este estudo, dos ensinamentos de Miguel Reale é que se refere no modo em que o Direito garante o cumprimento das condutas declaradas obrigatórias.
Para isto Miguel Reale nos demonstra a diferença existente entre Direito e Moral, e dessa diferença, observamos como o Direito garante que tais condutas sejam praticadas ou não. Assim colaciona-se o lecionado pelo Civilista sobre Direito e Coação:
O cumprimento obrigatório da sentença satisfaz ao mundo jurídico, mas continua alheio ao campo propriamente moral. Isto nos demonstra que existe, entre o Direito e a Moral, uma diferença básica, que podemos indicar com esta expressão: a Moral é incoercível e o Direito é coercível. O que distingue o Direito da Moral, portanto, é a coercibilidade. Coercibilidade é uma expressão técnica que serve para mostrar a plena compatibilidade que existe entre o Direito e a força. [...] Em campo diametralmente oposto, temos a teoria que vê no Direito uma efetiva expressão da força. Para Jhering, um dos maiores jurisconsultos do passado milênio, o Direito se reduz a “norma + coação”, no que era seguido, com entusiasmo, por Tobias Barreto, ao defini-lo como “a organização da força”. Ficou famoso o seu temerário confronto do direito à “bucha do canhão”, o que se deve atribuir aos ímpetos polêmicos que arrebatavam aquele grande espírito. Segundo essa concepção, poderíamos definir o Direito como sendo a ordenação coercitiva da conduta humana. Esta é definição incisiva do Direito dada pelo grande mestre contemporâneo, Hans Kelsen, que, com mais de noventa anos, sempre se manteve fiel aos seus princípios de normativismo estrito. (REALE, 2002, p. 46-47).
Pois bem, ao definirmos o Direito como sendo a ordenação coercitiva da conduta humana, concluímos que as condutas humanas escolhidas pelo Direito só são cumpridas pois delas existem o poder de coerção, assim, a obrigação de fazer ou deixar de fazer determinada conduta só é cumprida pois existe a potencialidade coercitiva da força sobre o homem em realizar determinada conduta. Daí é que surge a principal problemática da regulação do fenômeno do presente estudo. O desafio do Direito consiste na aplicabilidade da ação coercitiva do Direito no mundo digital. Desta problemática pergunta-se, como o Direito irá identificar e punir condutas reprováveis existentes na internet? Como irá identificar os autores de tal conduta? Deste modo, quanto ao fenômeno do presente estudo, observando a rela utilização de perfis falsos, como o Estado irá agir para identificar os verdadeiros propagadores das Fake News?
Deste modo, observamos que não é uma tarefa fácil encontrar a solução adequada ao presente problema, pois, ao buscarmos soluções desenfreadas podemos correr o risco equivocado de sacrificar liberdades e conferir poderes a entes não competentes, assim, podendo o Direito tutelar valores que sobreponham as liberdades fundamentais do ser humano.
Para tornar a tese mais palpável, colaciono a seguir uma das propostas de solução aos problemas digitais criadas por Lawrence Lessing apresentadas por Georges Abboud e Ricardo Campos:
Contemporaneamente, uma das maiores dificuldades no que diz respeito à regulamentação e controle das notícias falsas se refere ao fato de elas se propagarem principalmente por meio do mundo digital. Daí que a dificuldade de regulamentação delas passa pelos mesmos percalços do direito e do Estado de efetuarem o controle de qualquer tema referente à Internet ou mundo digital. Lawrence Lessing foi um dos pioneiros a teorizar em relação do Estado e do direito com o mundo digital, designado por ele de Ciberespaço, locus com natureza própria. A natureza do mundo virtual é o seu código de constituição, ou seja, hardwares e softwares. De acordo com Lawrence Lessing, há duas maneiras de se regular na Internet, consoante com os seus respectivos efeitos. A primeira consiste em lhe alterar a arquitetura, o código. Modificá-lo implica reconfigurar a "realidade física" ou a "natureza" da Internet, tornando possível o que antes era impossível e vice-versa, sem passar por qualquer outra etapa intermediária. A segunda delas é aprovar leis que, para serem implementadas de maneira eficaz, levam, por consequência, a alterações no código. Nesse contexto, formas de conter a arbitrariedade ou restrições fáticas da liberdade dentro do mundo digital não passariam necessariamente por intermediação de regras jurídicas, mas por "ativismos”, os quais influenciariam o próprio código. Nesse ponto, Lessing enxergava no open-source-movement um exemplo prático de uma eficaz medida na contenção da arbitrariedade no mundo digital, ao atuar diretamente no código de funcionamento da Internet. O foco no código e não mais, como tradicionalmente, na regulação de condutas humanas, é a grande inovação de Lessing. Todo controle social e regulamentação governamental do mundo digital passa pela necessidade de assimilação do código. No mundo real são as regras legais e os costumes sociais que impõem e reprovam determinados padrões de conduta criando um emaranhado de expectativas, sobre as quais são projetadas como ações cotidianas. Já no Ciberespaço, é o código que cria recursos que, por sua vez, são selecionados por escritores / desenvolvedores de Código para restringir algum comportamento (por exemplo, espionagem eletrônica) ou para tornar outra conduta corriqueira (por exemplo, uso da criptografia). O código incorpora certos valores e impossibilita a realização de outros valores atuando como um modelador de expectativas cotidianas, ou seja, da própria ação do indivíduo. (ABBOUD; CAMPOS, 2018, p. 21-22).
Observa-se, do exposto, o quão tênue é a fronteira entre a tipificação e regulação, das Fake News, e a supressão de liberdades no mundo digital. Ao interpretar as opções propostas por Lawrence Lessing identificamos que uma delas se refere a uma “revolução” as Internet, a proposta sugere uma regulação prévia, ao que se entende ao invés de regulamentar as condutas humanas dos usuários da Internet, o que se propõe é uma mudança no código da rede para identificar possíveis condutas reprováveis e inibi-las antes que venham a ocorrer. Com as devidas ressalvas e respeito à tese do autor, tal medida pode desencadear efeitos colaterais muito mais caros à democracia do que aquele que enfrentamos atualmente. Neste caso, o que pode vir a ocorrer é o que se pretende combater no presente estudo, o cerceamento da liberdade de expressão, pois levanta-se questionamentos de como essa “filtragem prévia” poderia ocorrer, quem e de que modo teria poderes para tal operação? Tal proposta se assemelha muito ao que foi apresentado na introdução e discutido no capítulo 5 desta pesquisa, do mesmo modo em que se outorgaria competência do judiciário aos provedores de plataformas de divulgação de conteúdo, poderia ocorrer o mesmo com àqueles que receberem o poder/dever de “censurar” previamente um conteúdo ou outro.
A segunda opção de solução apresentada é que estar por ocorrer, ou seja, a edição de novas leis para regulamentar a propagação de notícias consideradas falsas. Sobre as propostas legislativas, este tema será mais bem explorado em capítulo específico, deste modo, é importante agora apresentarmos o que de fato pode ocorrer, caso alguns dos projetos apresentados venham a ser aprovados.
4.3. IMPOSIÇÃO DA VERDADE NA DEFESA DE INTERESSES
Joseph Goebbels, ministro da propaganda para o esclarecimento do Povo do Terceiro Reich do Império Alemão, comandado por Adolph Hitler, em 1933 fez escola para as futuras ditaduras e para as agremiações políticas que pretendem o domínio da notícia e o controle da comunicação social. Sua estratégia de propaganda regional se expandiu a nível nacional, o que o tornou um dos maiores estrategistas de manipulação de massas. A ele é atribuída a famosa frase: “Uma mentira contada mil vezes se torna verdade”3.
Do fatídico exposto, poderíamos nos dispensar a discorrer o restante deste capítulo, contudo, por amor a pesquisa vamos demonstrar agora, no contexto histórico, os meios utilizados pelos governos autoritários, ou não, para imporem as suas verdades, deste modo impedir a expressão de pensamento daqueles contrários a seus ideais e desta forma manipularem a opinião pública para a manutenção de suas ditaduras.
Neste contexto, importante se faz apresentarmos os estudos da Escola de Frankfurt sobre a Industria Cultural. Alysson Mascaro (2016, p. 508) leciona que a Escola de Frankfurt foi um grupo de pensadores que se reuniu, na década de 1930, em torno do Instituto para a Pesquisa Social, ligado à Universidade de Frankfurt, dado o destaque de suas ideias, interpretações e investigações filosóficas e sociais, e dado o fato de um horizonte de pensamento e de pesquisa em comum, leva o nome de Escola de Frankfurt. Muitos intelectuais pertenceram a esse grupo ou em algum momento estiveram próximos a ele. Já em sua origem, Max Horkheimer (1895- 1973) e Theodor Adorno (1903-1969) destacaram-se. Walter Benjamin (1892-1940), Herbert Marcuse (1898-1979), Wilhelm Reich (1896-1957) e Erich Fromm (1900-1980), além de estudiosos de áreas específicas – como Otto Kirchheimer (1905-1965) e Franz Neumann (1900- 1954), no campo jurídico –, estiveram, de algum modo, no entorno desse grupo.
A Indústria Cultural pode ser definida como o conjunto de meios de comunicação como, o cinema, o rádio, a televisão, os jornais e as revistas, que formam um sistema poderoso para gerar lucros e por serem mais acessíveis às massas, exercem um tipo de manipulação e controle social, ou seja, ela não só edifica a mercantilização da cultura, como também é legitimada pela demanda desses produtos. A tecnologia da montagem e do efeito e o realismo exagerado faz com que o cinema ande muito rápido para permitir reflexão do seu espectador, fazendo com que o indivíduo passe a se integrar à multidão, por outro lado, o rádio enquanto comando aberto e de longo alcance passou a ser o instrumento que coloca o discurso como verdadeiro e absoluto às massas (COSTA et al., 2016).
Observa-se neste contexto que a Escola de Frankfurt foi contemporânea à revolução das comunicações em massa, ou seja, no início do século XX, além dos impressos, o rádio surgia como um novo meio de comunicação em grande escala. Nessa época, e mais tarde com a televisão, tudo que se tinha era os meios de comunicações centralizados, seja pelo poder governamental ou, no caso Norte Americano, nas mãos de grandes capitalistas, cujo um dos principais objetivos era a materialização da cultura.
Os estudos dos pensadores de Frankfurt sobre a Indústria Cultural e Cultura das Massas, nos revela, para o presente estudo, o poder de manipulação que possuíam os detentores dos meios de comunicação, seja para impulsionar a disseminação de uma cultura, propagando entretenimento produzindo e potencializando a psique social para o consumo desenfreado impondo o ideal capitalista como único capaz de proporcionar a felicidade do ser humano, seja para manipulação popular para a manutenção de regimes totalitários, como foi o caso do Nazismo, Fascismo e até mesmo como ocorreu no Estado Novo aqui no Brasil.
Aplicando o exposto ao presente estudo, podemos observar que existe uma característica em comum nos exemplos acima expostos, seja no ideário libertário Norte Americano, onde até então sempre se tem por verdade o absoluto Estado Democrático de Direito, seja no regimes ditatoriais, sempre houve uma centralização dos meios de comunicação o que dava poder de imposição da verdade ao detentor destes meios, deste modo, com esse poder, o governante, o ditador ou até mesmo o detentor, poderia facilmente manipular a massa e impor sua verdade e defender seus próprios interesses. Deste modo, o que se busca combater neste estudo é exatamente essa centralização, ou seja, pois como vimos, o poder de decidir o que deve ou não ser distribuído às massa é extremamente perigoso, é o mesmo que permitir que aconteça novamente tudo que ocorreu nos períodos de recessão, deste modo, hoje com a popularização da internet qualquer cidadão que possua meios de acessá-la pode expor, questionar e opinar sobre quaisquer questões que sejam, assim, exercendo a plenitude do seu direito de liberdade de expressão.
Muitos dizem que a imprensa pode ser denominada como o quarto poder em uma democracia, se equiparando aos Três Poderes da República, Legislativo, Executivo e Judiciário, tal expressão, se torna verdade ao evidenciar o poder que a comunicação em larga escala tem na manipulação da opinião pública. Pois, como já exposto no presente estudo, o que se propaga nos meios de comunicação em massa pode facilmente eleger e destituir governos. Deste modo, é indiscutível a existência de interesse em controlar os meios de comunicação para a imposição da verdade.
Pois bem, do contrário se vê quando existe uma descentralização dos meios de comunicação em larga escala, é que ocorreu com a popularização da internet, neste contexto pode-se perceber a veiculação de diferentes visões sobre diferentes assuntos, não mais existindo um único ponto de vista, que até então era o apresentado pelas emissoras de rádio e televisão, sem a prévia filtragem o cidadão pode alcançar o público independentemente de permissão prévia, cabendo somente ao receptor em escolher ou não consumir aquele conteúdo. Neste sentido é o lecionado por Irene Patrícia Nohara apresentando a visão de Pierre Lévy:
Há novas ágoras no encontro em rede, que permite superar um empecilho que era físico, o fenômeno da desterritorialização própria da ciberdemocracia. Desterritorialização não é apenas a oportunidade de um encontro em um espaço que não é físico, mas, sobretudo, na abordagem de Lévy, que não é adstrito a um Estado nacional. Segundo a visão otimista de Pierre Lévy, onde não há censura formal do governo, a internet é vista como fator que provoca a queda das ditaduras. A internet potencializa o debate do chamado egov, sendo tal realidade acrescida de amplo potencial quando há portais de transparência, os critérios de permissão ao cidadão visualizar e discutir como medidas do governo. (NOHARA, 2018, p. 78-79).
Desta visão, entendemos que com a popularização da palavra, ou seja, do poder de alcance da liberdade de se expressar, assim como ocorria nas democracias diretas da antiguidade, hoje, ao vencer o empecilho físico, alcançamos a possibilidade de opinar, questionar e discutir políticas governamentais. Atingindo, deste modo, a plena liberdade da palavra. Sobre esta democratização continua Irene Patrícia Nohara:
Segundo expõe Lévy, a libertação da palavra é provocada pela internet. Antes da internet e das redes sociais, a opinião pública era mais fácil controlado por meio das mídias fechadas. Assim, para falar algo oficial e que possui grande permeabilidade era necessário que um editor intermediasse tal fala, delimitando pautas e conduzindo, portanto, os discursos. Atualmente, qualquer um pode ser um canal de divulgação de informações. Lévy é otimista, pois entende que a libertação da palavra, com o oferecimento gratuito e espontâneo de informações, possibilitará a construção de uma suposta inteligência coletiva, dada a cooperação competitiva das comunidades virtuais. Tal movimento provocaria, a seu ver, o emergir de um diálogo livre de indiferenças, irritação e desprezo, em que as pessoas seriam cada vez mais apreciadoras da diversidade, segundo a visão de Lévy. (NOHARA, 2018, p. 79).
Este autor compartilha da visão de Pierre Lévy, apresentada por Irene Patrícia Nohara, pois a liberdade plena do ser humano se dá quando este alcança o pleno conhecimento e tem o poder de decidir a qual caminho trilhar, deste modo, com a centralização dos meios de comunicação existe, maliciosa ou não, manipulação da opinião pública de modo que ao cidadão é apenas apresentado aquilo que se quer apresentar, impedindo de certa forma que o público conheça diferentes visões e opiniões sobre determinado assunto, assim, consequentemente, existe o cerceamento total ou parcial de direitos fundamentais como o direito de informar e ser informado.
A partir deste conceito, podemos dizer que com a potencialização das liberdades de informar e ser informado é que o cidadão obterá o verdadeiro poder de decidir e formar valores de sua personalidade, assim, consequentemente a sociedade em qual se insere formará sua cultura e a partir dela poderá estabelecer os verdadeiros valores que se formaram no meio social, estabelecendo, conforme os ensinamentos de Miguel Reale apresentados no capítulo anterior, desta forma, o Ético, o Moral e o seu Direito a partir desses valores. Sem o risco dessas escolhas se formarem a partir da manipulação ou da imposição da verdade na defesa de interesses particulares em detrimento da população.
Contudo, dessa liberdade plena surgem novos problemas. As chamadas bolhas digitais, pós-verdade e Fake News se popularizam em meio a liberdade no meio digital, assim são apresentados por Irene Patrícia Nohara:
Primeiro, percebe-se, na atualidade, que as redes sociais nem sempre unem o diálogo entre as pessoas. Muito pelo contrário, elas acabam estabelecendo a conexão "entre bolhas" de pessoas que pensam da mesma forma e que se encontram em rede com o intuito primordial de confirmarem aquilo que já acreditam, não obstante haver informações na internet em sentido contrário [...]. É, portanto, um desafio permanente pensar na qualidade do diálogo que se trata em rede e na internet. Aliás, muitas vezes não há uma propensão às pessoas que se comunicam em rede de procurar de forma equilibrada, isto é ponderada, nem mesmo os assuntos que não dominam, que supostamente aqueles que buscam estar mais abertos ao diálogo. A propensão a achar que é aquilo que se crê é associado com o fenômeno da pós-verdade. Essa é a expressão que despontou a partir do momento em que, em 2016, o Dicionário Oxford a elegeu como o assunto de destaque do ano. Na pós-verdade, as pessoas creem obstinadamente em suas visões de mundo e apenas procuram aceitar aquelas informações que confirmam suas crenças, que não são postas em questionamento. Assim, perde a força de persuasão o contraste de argumentos, e as pessoas sucumbem aos boatos, sem propensão a analisar os fatos. Esse é um caldo de cultura propícia à disseminação de notícias falsas. Segundo Diogo Rais e Gustavo Hennemann, as pesquisas indicam que a motivação da disseminação de notícias falsas é, sobretudo, econômica, pois geralmente autores de notícias inverídicas apostam na mentira e no sensacionalismo como forma de gerar cliques. Como se sabe atualmente, a agregação de anúncios em sites se dá também em virtude do número de cliques que ele provoca, daí essa dinâmica perversa, provocada por comportamento oportunistas movidos por questões econômicas. As notícias falsas envolvem, portanto, conteúdos que despertam emoções e crenças, dado que, tendo em vista a pós-verdade, a tendência das pessoas é serem menos cautelosas com notícias que vão ao encontro de suas visões de mundo e, portanto, que confirmam suas crenças. (NOHARA, 2018, p. 79-80).
Esses problemas são os que se pretendem combater com os novos projetos legislativos, deste modo, este será o assunto estudado no capítulo que se segue.
4.4. PROJETOS LEGISLATIVOS E OS PERIGOS À LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Antes de adentrarmos especificamente nos projetos de lei que versam sobre o fenômeno das Fake News, que até a realização da pesquisa já conta com um total de 50 propostas na Câmara dos Deputados4, vamos relembrar que nosso ordenamento jurídico já tipificou a conduta de publicar ou divulgar notícias falsas ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados como crime, prevendo uma pena de um a seis meses e multa para o autor desta conduta. A referida se trata da Lei 5.250 de 09/02/1967, conhecida e intitulada como Lei de Imprensa, à época editada para regular a liberdade de manifestação do pensamento e de informação.
Pois bem, como já dito anteriormente sabemos que a Lei de Imprensa foi outorgada durante o período de recessão popularmente conhecido como “Ditadura Militar”. Assim, com o fim do período de recessão e o advento e promulgação da Constituição Cidadã de 1988, foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal a ADPF 130-7/DF e declarada inconstitucional o art. 16. da referida Lei, que criminalizava a conduta de publicar ou divulgar notícias falsas ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados, grosseiramente dizendo este dispositivo criminalizava as, hoje, denominadas Fake News.
Isto posto, está mais do que evidenciado que quaisquer projetos legislativos que tenha redação semelhante ao revogado art. 16. da Lei de Impressa, ou seja, que tenha como objeto a criminalização do que se entende genericamente por Fake News, não está em conformidade com ordenamento jurídico atual e consequentemente deve ser declarado inconstitucional.
Nesta esteira colaciono a seguir o apresentado por Ronaldo Porto Macedo Junior ao se referir aos projetos legislativos contrários às liberdades de expressão do pensamento e informação:
Há no Congresso Nacional muita margem para que se adotem ideias não liberais no combate às notícias falsas. Entre os 23 projetos comandados sobre o assunto até junho de 2018, aquele proposto pelo senador Ciro Nogueira (PP/PI) é representativo da corretiva dominante entre os políticos ligados ao assunto: não liberal e fortemente punitiva. Nogueira propõe uma emenda ao Código Penal para que se criminalizem os seguintes padrões:
Art. 287-A - Divulgar notícia que sabe ser falsa e que possa distorcer, alterar ou corromper verdade sobre informações relacionadas à saúde, à segurança pública, à economia nacional, ao processo eleitoral ou que afetem interesse público relevante.
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa, se o fato não constitui o crime mais grave.
§ 1 ° Se o agente pratica uma conduta prevista no caput valendo-se da Internet ou de outro meio que facilite a divulgação da notícia falsa:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa, se o fato não constitui o crime mais grave.
É curioso notar que a interpretação textual de tal projeto possivelmente criminalizaria muitas recomendações religiosas como "masturbação faz mal à saúde" ou "Deus proíbe comer carne de porco”. Há evidências de aumento de esforços semelhantes de criminalização e adoção de uma abordagem mais estrita e punitiva acerca das notícias falsas na América Latina. As respostas populistas ao fenômeno, aliadas a uma incompreensão da dinâmica de troca de informações da Cosmópolis, à falta de uma cultura de liberdade de expressão, e à ausência de conhecimento sobre alternativas às medidas punitivas representam uma nova ameaça à liberdade de expressão na América Latina. Desse modo, se as Fake News já representam uma doença que ameaça à democracia, é certo que muitos remédios defendidos para o seu combate podem representar perigos ainda maiores em face de sua ameaça à liberdade de expressão. (MACEDO JÚNIOR, 2018, p. 142-143).
Do apresentado acima, considerando que o projeto mencionado representa a maioria dominante dos projetos em tramitação, no que se refere ao seu conteúdo legal, evidencia-se clara inconstitucionalidade, pois, vão contra princípios basilares do Estado Democrático de Direito, ou seja, contra a liberdade de expressão do pensamento e o direito de informar e ser informado.
A seguir, demonstraremos outros projetos legislativos que buscam de certa forma coibir a propagação de notícias falsas. O Projeto de Lei nº 6812/2017, que tem por autor o deputado federal Luiz Carlos Hauly do PSDB/PR. Dispõe sobre a tipificação da divulgação e compartilhamento de notícia falsa ou de notícia incompleta da internet. O projeto apresentado pelo ex-deputado tem a seguinte redação:
Art. 1º Constitui crime divulgar ou compartilhar, por qualquer meio, na rede mundial de computadores, informação falsa ou prejudicialmente incompleta em detrimento de pessoa física ou jurídica.
Penal - detenção de 2 a 8 meses e pagamento de 1.500 (mil e quinhentos) a 4.000 (quatro mil) dias-multa.
Art. 2º Os valores decorrentes da imposição da multa a que se refere o artigo primeiro serão creditados à conta do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos -CFDD
Art. 3º Esta Lei entre em vigor na data de sua publicação.
Na justificativa que compõe o projeto de lei, o deputado afirma que a divulgação de notícias falsas causa “sérios prejuízos”, ainda, segundo o autor, as pessoas físicas ou jurídicas “não têm garantido o direito de defesa sobre os fatos falsamente divulgados.”5
O Projeto de Lei nº 7604/2017 de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly, tem como objetivo a responsabilização dos provedores de conteúdo na internet, como as redes sociais Facebook, Twitter e You Tube, quando seus sites forem usados para divulgas informações falsas, ilegais, ou prejudicialmente incompletas em relação a pessoas físicas ou jurídicas. O projeto ainda prevê uma multa no valor de 50 milhões de reais no caso de o provedor de conteúdo não apagar as referidas informações em um prazo de até 24 horas. E por fim, estabelece como responsabilidade dos provedores de internet a criação de filtros de conteúdo, para que impeçam ou restrinjam a divulgação das informações falsas (LIMA, 2018, p. 36).
Esta última proposta legislativa vem de encontro ao que foi concebido no Direito Alemão, resultante da histórica cultura do Direito comparado em nosso ordenamento. Pois bem, apesentando a Lei aprovada pelo parlamento Alemão colaciono as palavras de Ronaldo Porto Macedo Júnior:
De acordo com a Netzwerkdurchsetzungsgesetz - NetzDG (Lei para melhorar a aplicação do direito nas mídias sociais), a nova legislação aprovada contra os crimes de ódio e notícias falsas nas redes sociais, quando os usuários relatam conteúdo ilegal, caberá às próprias empresas de mídia social verificarem a sua natureza, e rapidamente o eliminarem caso se trate de conteúdo ilegal. Se tais exigências não forem atendidas, as empresas ficam sujeitas a multas de até 50 milhões de euros. Para os legisladores que aprovaram a nova lei, trata-se de um passo importante para combater o crime de ódio e punir legalmente as Fake News nas mídias sociais. Operador de plataforma são agora obrigados a eliminar o conteúdo legalmente punível a partir do momento em que se tem conhecimento sobre isso. Para muitos padrões, essa abordagem que autoriza os operadores de plataforma apagarem conteúdo é inadequada. As maiores críticas dirigidas à lei destacam a existência de: 1-A dificuldade em descrever o significado das notícias falsas, e se isso implica a existência de um dever de sempre dizer a verdade; 2- O risco de se produzir um efeito silenciador ao se transferir para o provedor o ônus e os riscos de decidir o que será considerado Fake News. Isso criaria um incentivo conservador e não liberal para que os provedores passassem a censurar conteúdo para se protegerem dos riscos de serem multados; 3- A natureza não liberal da legislação, que está em consonância com o ânimo político do populismo dominante que busca oferecer respostas punitivas e criminais ao problema, em vez de usar abordagens menos ofensivas à liberdade de expressão; 4- Dificuldade de lidar com os desafios jurisdicionais típicos da Cosmópolis como a disseminação de notícias falsas por provedores adquiridos fora da Alemanha. Finalmente, o Estado entra em um território perigoso quando ele decide direta ou indiretamente o que é falso e o que é verdadeiro. Acredito que há argumentos filosóficos fortes em defesa à livre expressão contra esse poder. Delegar o mesmo poder a agentes privados para decidir o que é falso e o que é verdade coloca a regulação alemã no mesmo caminho perigoso. (MACEDO JÚNIOR, 2018, p. 140).
Diante do contexto apresentado, vamos agora tecer considerações ao Projeto de Lei 2.630/2020, de autoria do Senador Alessandro Vieira e dos Deputados Federais Tabata Amaral e Felipe Rigoni. Este projeto, denominado “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”, ficou popularmente conhecido como Lei das Fake News, é o mais eminente a ser convertido em lei, pois já foi aprovado pelo Plenário, por este motivo vamos nos aprofundar e demonstrar, que assim como os já apresentados neste estudo, deve ser revisto, pois como será apresentado adiante apresenta ofensas aos princípios basilares do Estado Democrático de Direito.
Justificando o PL apresentado, o Senador Alessandro Vieira afirmou que não pode se admitir a permanência de uma máquina de desinformação e disseminação de notícias falsas na internet, ou seja, nas principais plataformas de conteúdo. Sendo o objetivo principal do PL é proibir a atividade de robôs que se passam por pessoas, que na verdade são verdadeiras organizações criminosas. Em suas palavras é dessa maneira que se garante a verdadeira liberdade de expressão6.
Isto posto, antes de apontarmos os pontos equivocados Projeto de Lei em discussão, vamos neste momento apresentar alguns de seus pontos positivos, tendo em vista que desde a apresentação do texto inicial, o Projeto de Lei 2.630/2020, vem sofrendo consideráveis mudanças, que a princípio buscam a consonância com o Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Uma das mudanças consideráveis, é o constante nos arts. 6º e 7º, no qual buscam a proibição de contas inautênticas nas plataformas de conteúdo, para isso exija-se que os provedores de internet busquem alternativas e soluções para inibir a propagação de conteúdo por contas inautênticas. De início o PL apresentava uma redação em que o usuário, ao se cadastrar, era obrigado a apresentar documentação de identificação válida, o que poderia acarretar uma série de problemas como a proteção de dados e isso não evitaria que criminosos se utilizassem de documentos falsos e ou de outras pessoas para o cadastramento de contas cujo objetivo possa ser ilícito. Agora, com o presente texto, a confirmação só se dará mediante denúncias por desrespeito a Lei que, muito provavelmente, se tornará o PL, apesar de, na opinião deste autor, essa exigência só deverá ser feita mediante ordem judicial, a correção do texto busca inibir o anonimato previsto no texto constitucional, art. 5º, IV: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
Outro ponto que, se funcionar de maneira correta, parece ser positivo é o descrito no art. 33. do PL, no qual prescreve “Os valores das multas aplicadas com base nesta Lei serão destinados ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e serão empregados em ações de educação e alfabetização digitais.”, neste ponto o legislador foi bem, pois, a desinformação se combate com informação, neste sentido, em prol da liberdade de expressão do pensamento, a destinação de recursos para o combate das Fake News, pode ser visto pelo lado positivo se for empresgado de maneira a informar a população de maneira correta e honesta, assim, o cidadão será empoderado a buscar e pesquisar sobre determinada informação que se possa suspeitar.
Por outro lado, os críticos ao PL em questão apontam que as medidas adotadas para coibir a disseminação das Fake News poderão atingir usuários e publicações que forem julgadas supostamente falsas, tais medidas trouxeram discussões entre populares e parlamentares. Como já apontado anteriormente, uma das principais críticas a este PL, e aos anteriormente citados, é a transferência do dever/poder outorgada aos provedores de conteúdo de verificarem e julgarem aquilo que pode ou não ser publicado, julgando se aquilo é falso ou verdadeiro, este nível de censura e supressão da liberdade de expressão é comparado à instauração de um “Ministério da Verdade”7, fazendo uma analogia ao livro “1984”, de George Orwell (2019, p. 46). Desta feita, percebe-se que o conteúdo normativo do referido afronta diverso princípios constitucionalmente previstos, sua burocratização ao responsabilizar os provedores a controlar e fiscalizar serviços de mensageria por um período determinado e a prestação de contas desta fiscalização é interpretado por muitos como um verdadeiro intervencionismo econômico, uma vez que pode tornar a operação bem mais cara e dessa forma atingindo àqueles que utilizam deste serviço, resultando numa verdadeira disfunção contra o livre mercado digital.
Retomando o costume brasileiro do Direito Comparado, observamos que o Projeto de Lei 2.630/2020, se assemelha à legislação alemã, netzwerkdurchsetzungsgesetz (Lei de Controle de Mídias Sociais), pois possui o mesmo objetivo da lei em vigor na Alemanha, controlar as mídias sociais, exigindo que as plataformas excluam publicações que sejam julgadas como conteúdo falso, ilícito ou ofensivo. Assim, como acontece no país germânico, o PL em seu art. 128. propõe que as publicações potencialmente suspeitas, serão julgadas por pessoas jurídicas de direito privado, que determinarão se tais publicações são ou não falsas ou improprias, uma verdadeira deturpação de competência jurisdicional e uma afronta ao princípio do juiz natural previsto na CF de 1988 em seu art. 5º incisos XXXVII e LIII.
Outro país que regulamenta a internet de forma semelhante é a China, o regime ditatorial daquele país proíbe o acesso de seus cidadãos às plataformas como Facebook, YouTube e Google, permitindo o uso da internet apenas por um sistema rigorosamente monitorado pelo governo, feito por empresas “privadas” contratadas pelo governo, sendo responsáveis por monitorarem publicações e manifestações que vão contra os interesses do Partido Comunista Chinês. Segundo documentário do site da Brasil Paralelo9, publicações contendo as palavras “imperador”, “censura” e “1984”, são dificilmente encontradas nos sites da China o que demonstra a rigorosa filtragem e supressão da expressão dos cidadãos chineses imposta por aquele governo.
Pois bem, ao analisar o PL 2.630/2020 mais a fundo, observa-se desde logo a quem se dedica o referido texto normativo, prescreve o § 1° do art. 1° que “Esta Lei não se aplica aos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada que ofertem serviços ao público brasileiro com menos de 2.000.000 (dois milhões) de usuários registrados, para os quais as disposições desta Lei servirão de parâmetro para aplicação de programa de boas práticas, com vistas à adoção de medidas adequadas e proporcionais no combate ao comportamento inautêntico e na transparência sobre conteúdos pagos.”10 Do dispositivo percebe-se uma distorção, considerando que o PL busca, em sua essência, inibir a propagação de conteúdo falso por meio de provedores que atinjam grande número de pessoas, por qual motivo os demais meios de comunicação em massa (rádio e televisão) não estão inseridos no texto apresentado? Nota-se que as grandes mídias da imprensa e comunicação, como redes de televisão e rádio, também são sujeitas a disseminarem notícias falsas ou manipuladas em grande escala. Por óbvio, como já citado anteriormente, tal texto afrontaria a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgado da ADPF 130-7/DF, que declarou o art. 16. da Lei de Imprensa inconstitucional. Percebe-se, deste modo, que o presente PL procura restringir a liberdade de pessoas comuns, ou seja, a maioria da população que se utiliza desses provedores.
Isto posto, o projeto discutido se demonstra contrário aos princípios e leis já existentes em nosso ordenamento, pois, se considerarmos que o objetivo do projeto seja regulamentar o universo da Internet, sabemos que já temos a Lei nº 12.965/2014, o Marco Civil da Internet, e a LGPD, Lei nº 13.709/2018, das quais tratam da proteção de dados e aos direitos e deveres dos usuários de internet do Brasil. Assim, ao continuar analisando o texto normativo da proposta, observa-se que o art. 10, e seus parágrafos, estabelece o armazenamento de dados dos serviços de mensagerias privadas e a produção de relatórios trimestrais pelas plataformas, o que é vedado pelo art. 16. da Lei 12.964/2014 (Marco Civil da Internet). Assim, Heloísa Gomes (2020, p.24), informa que mesmo que o projeto estabeleça que o acesso aos registros ocorrerá apenas mediante ordem judicial, o fato de todos estarem suscetíveis ao armazenamento viola o Direito à Privacidade, instituído pelo art. 5º, X, da CF/88, art. 2º, I, da LGPD e art. 3º, II, do Marco Civil da Internet. Além disso, entende-se também pela violação do Princípio da Presunção de Inocência – art. 5º, LIV e LVII, da CF/8815 - e os Princípios de Necessidade e Proporcionalidade regidos pela Lei Geral de Proteção de Dados, a qual defende pelo mínimo armazenamento de dados pessoais.
Do exposto, evidencia-se o grande perigo de vazamento desses dados, que por mais o responsáveis pelo possível vazamento sejam punidos, dificilmente as sanções decorrentes ou a indenização arbitrada serão o suficiente para reparar o dano. Na percepção deste autor, o presente PL se revela uma total afronta à Lei Geral de Proteção de Dados, pois ameaça o principal bem jurídico protegido pela LGPD, os dados pessoais, ou seja, as preferências pessoais de cada usuário da rede estarão ao dispor dos provedores que poderão, ou não, manipular informações de acordo com as “preferências” ou ideologias de cada usuário, tornando mais que possível a repetição do episódio ocorrido nos Estados Unidos envolvendo a Cambridge Analytica, e a divisão ideológica presente em nosso país desde às eleições de 2018. Outra divergência a ser apontada no referido PL se encontra em seu art. 12, ao qual estabelece que os provedores de mensageria tomem medidas para remover publicações que sejam alvo de denúncia pelos próprios usuários, para isso os provedores criaram uma espécie de processo administrativo dando oportunidade de recurso aos autores de tais publicações, o que configura afronta ao art. 19. do Marco Civil da Internet e ao principio do juiz natural, pois transfere a competência de um dos Poderes da República, o Judiciário, a uma pessoa jurídica de direito privado.
Ainda de acordo com a proposta, Gledson Primo Gomes e Kaiana Coralina do Monte Vilar (2020, p. 13) demonstram que contém a possibilidade da criação de um documento normativo (código de conduta) para redes sociais com objetivo infra legal que depende de aprovação do Congresso Nacional (art. 25, II) e Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, cuja sua criação contenha características autônomas de um órgão técnico, e essa atribuição pode acarretar revisões das decisões perante interferência política nas medidas adotadas e sanções aplicadas. Diante o dispositivo para escolha de representantes do Conselho, o texto pode violar regras constitucionais, restringindo apenas aos filiados de partidos políticos (art. 26, §4º). Isso possibilitaria o entrave na liberdade de associação, seja em conflitos com a impossibilidade de nomeação de representantes da Câmara dos Deputados e do Senado ou mesmo com a dificuldade para os procedimentos de nomeação em cargos públicos, evidenciando sua divergência.
Pois bem, desta forma, entende-se que o Projeto de Lei nº 2.630/20 contraria os Princípios da Proporcionalidade e Imparcialidade presentes no Poder Judiciário e dá poderes a entes privados, sejam plataformas ou agências reguladoras, de decidir e julgar acerca da ilicitude de uma publicação ou até mesmo, se esta é falsa, manipulada ou ofensiva, colocando em risco o Devido Processo Legal, a Liberdade de Expressão e de Privacidade. Estes fatos levam os críticos a elucidarem a semelhança do Projeto de Lei das “Fake News” com o chamado Ministério da Verdade, presente na literatura “1984”, de George Orwell. (ORWELL, 2020, p. 46).
Do exposto, conclui-se que, assim como deslumbrado na introdução deste estudo, em consonância com o acima abordado, são diversos os perigos e ameaças às liberdades e garantias constitucionais encontradas nos mais diversos projetos legislativos em tramitação no Poder Legislativo. Nesta esteira, na interpretação deste autor, nenhuma das propostas aqui apresentadas e as semelhantes a estas gozam de prestígio frente à Constituição Cidadã de 1988.