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Individualismo e coletivismo:

aplicações práticas de um debate jurídico-filosófico

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19/05/2023 às 14:58
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Vem de longa data o debate filosófico entre noções que privilegiam ou as liberdades individuais ou o interesse coletivo.

Resumo: O presente estudo busca, inicialmente, analisar os conceitos de individualismo e coletivismo. Faz-se referência às reflexões de pensadores como Comte, Marx e von Mises, a fim de conceituar e discutir os referidos institutos. Após, a fim de demonstrar e debater a aplicabilidade prática de ambos, trata-se, inicialmente, dos reflexos econômicos. Após, a fim de discutir os reflexos judiciais, discute-se o precedente Jacob & Youngs, Inc. v. Kent, uma vez que, no julgamento realizado pela New York Court of Appeals, observa-se uma discussão concreta acerca do conflito entre individualismo e coletivismo na interpretação dos contratos. Ao final, destaca-se como o debate entre individualismo e coletivismo, além da importante contribuição teórica, possui aplicação prática em diversas áreas, sendo, portanto, de fundamental relevo.

Palavras-chave: Individualismo. Coletivismo. Economia. Filosofia.

Sumário: 1. Introdução. 2. Individualismo e coletivismo. 2.1. A aplicação prática. 2.2 A questão econômica. 2.3 A questão jurídica. 2.3.1 Premissas teóricas. 2.3.2. Análise jurisprudencial – o precedente Jacob & Youngs, Inc. v. Kent. 3. Considerações finais. 4. Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO

O presente estudo busca, inicialmente, tratar dos conceitos de individualismo e coletivismo, refletindo acerca de suas definições e da sua utilização por conceituados filósofos, juristas e economistas. Pretende-se tratar do debate historicamente realizado entre estas duas visões distintas de sociedade, por meio de ideias de pensadores como Ludwig von Mises, Karl Marx, August Comte e outros.

Posteriormente, passa-se a discutir as críticas que foram apresentadas a ambos, inclusive como parte do supracitado debate que perdura até os dias atuais.

Na sequência, porém, busca-se demonstrar como o debate entre individualismo e coletivismo possui aplicação prática até os dias de hoje. A fim de demonstrar tal condição, dispor-se-á inicialmente acerca dos reflexos econômicos desta controvérsia. Serão trazidas análises acerca dos diferentes e, muitas vezes, opostos modelos econômicos decorrentes da adoção de ideias ora coletivistas, ora individualistas.

Posteriormente, pretende-se demonstrar a influência do debate ora analisado sobre o mundo jurídico. Serão abordados os reflexos jurisprudenciais e, para este fim, tomar-se-á por base a análise do paradigmático precedente Jacob & Youngs, Inc. v. Kent, no qual é possível observar de forma direta a influência das visões coletivista e individualista do Direito (contratual, em especial) nos votos proferidos pelos magistrados.

O que este estudo busca, portanto, é conceituar individualismo e coletivismo, fazendo breve apanhado do debate histórico entre ambos. Após, pretende-se demonstrar a aplicabilidade prática de tal discussão, analisando-se os reflexos econômicos e jurídicos.

INDIVIDUALISMO E COLETIVISMO

Como referido, entende-se fundamental iniciar o presente estudo definindo os fundamentais conceitos de individualismo e coletivismo. Tais definições serão aplicadas à análise que seguirá, tanto nas críticas doutrinárias que serão apresentadas como na análise da aplicação jurisprudencial.

Individualismo e coletivismo são conceitos, em muitos casos, opostos. Quando se aplica uma perspectiva coletivista, busca-se destacar a visão do todo, da coletividade, muitas vezes sendo destacado o aspecto social desta. Na perspectiva individualista, porém, tem-se uma visão que destaca o indivíduo, seus direitos pessoais de liberdade e autonomia, em especial em face do Estado.

Todavia, trata-se de conceitos complexos cuja definição vai muito além desta visão até certo ponto genérica.

Dresch1 destaca que a visão moderna coletivista tem origem em uma corrente de pensamento que buscou se opor ao individualismo liberal que dominou os primeiros séculos da era moderna. Destaca o referido autor que a filosofia e a sociologia tiveram papel de destaque para o surgimento deste novo viés coletivista, tendo significativo impacto os pensamentos de Hegel, Marx, Comte e Bentham.

Pondera o referido autor que o Direito que surge das análises coletivistas não é centrado na garantia de igual liberdade nos moldes de um sistema jurídico liberal (como aqueles dos Séculos XVIII e XIX), mas sim na busca pelo progresso e pelo bem-estar coletivo.2

Como exemplos, cita a doutrina de Hegel, a quem classifica como “o mais destacado dos filósofos coletivistas modernos”. Destaca que, na obra do referido autor, há uma busca pela retomada de uma preocupação com o todo. Ademais, neste todo, o Estado, ente coletivo, surge de um momento inicial em que os homens são vistos de forma isolada e abstrata. Por meio de um processo dialético, então, surgiria o coletivo, deixando o indivíduo de ser a substância principal.3

Comte, por sua vez, também teria significativo viés coletivista, sequer admitindo abordar direitos subjetivos. O indivíduo teria somente deveres, direcionados à Humanidade. Superar-se-ia a subjetividade individual em pról do todo, da coletividade.4

Gorodnichenko e Roland destacam que o individualismo, regra geral, dá ênfase às liberdades e às conquistas pessoais, como grandes descobertas, inovações e empreendimentos. Por outro lado, a visão coletivista enfatiza a perspectiva do grupo, acarretando, segundo os autores, maior nível de conformismo e desestimulando o destaque individual:

How does one define individualism and collectivism? Broadly defined, individualism emphasizes personal freedom and achievement. Individualist culture therefore awards social status to personal accomplishments such as important discoveries, innovations, great artistic or humanitarian achievements and all actions that make an individual stand out. Collectivism, in contrast emphasizes embeddedness of individuals in a larger group. It encourages conformity and discourages individuals from dissenting and standing out.5

Von Mises, por sua vez, traz uma definição bastante crítica do coletivismo. Afirma o autor:

Segundo as doutrinas do universalismo, do realismo conceitual, do holismo e do coletivismo, a sociedade é uma entidade que vive sua própria vida, independente e separada das vidas dos diversos indivíduos, agindo por sua própria conta e visando a seus próprios fins, que são diferentes dos pretendidos pelos indivíduos.

Assim sendo, é evidente que pode surgir um antagonismo entre os objetivos da sociedade e os objetivos individuais.

(...)

Todas as variantes de credos coletivistas estão unidas em sua implacável hostilidade às instituições políticas fundamentais do sistema liberal: tolerância para com as opiniões divergentes, liberdade de pensamento, de expressão e de imprensa, igualdade de todos perante a lei

(...)

A aplicação das ideias coletivistas só pode resultar na desintegração social e na luta armada permanente.6

Já a visão individualista, segundo o autor, estaria alinhada a uma visão política liberal, a qual garantiria a liberdade dos indivíduos para empreender e buscar atingir seus objetivos pessoais. Afirma, ainda, que o liberalismo buscaria “estabelecer um arranjo político que assegure o funcionamento pacífico da cooperação social”, levando a uma “intensificação progressiva das relações sociais mútuas”.7

Evidentemente, tais conceitos teóricos possuem significativa aplicação prática. Não apenas influenciaram e foram influenciados por alguns dos mais relevantes pensadores modernos, como Hegel, Marx e Comte, mas tiveram direta aplicação a questões fundamentais como organização política, econômica e social de diversos países.

Como consequência lógica de seus significativos impactos, ambos os conceitos foram alvo de uma série de críticas, as quais, em muitos casos, foram fundamentais para uma evolução teórica e, também, prática.

Assim, buscar-se-á demonstrar, na sequência, exemplos práticos da aplicação desses conceitos, em especial nas esferas econômica e jurídica, com decisões judiciais que demonstram, em seu conteúdo, o reflexo da controvérsia entre individualismo e coletivismo.

A aplicação prática

Mais do que conceitos filosóficos e/ou sociológicos, individualismo e coletivismo possuíram e ainda possuem significativos reflexos em questões sociais, políticas, jurídicas e econômicas.

Muitas vezes, a escolha entre adotar linhas mais tendentes a um ou a outro destes conceitos implica consideráveis divergências, tanto de pressupostos como de resultados. Isto demonstra, de forma concreta, a importância do debate realizado durante séculos (e ainda muito pertinente), o qual permitiu o amadurecimento e aprofundamento destas ideias.

O que se buscará demonstrar, neste momento, é a aplicabilidade prática da discussão entre individualismo e coletivismo. Inicialmente, serão discutidas reflexões acerca dos reflexos econômicos de uma e de outra linha. Posteriormente, serão também abordados os possíveis reflexos jurídicos e sociais.

A questão econômica

Pode-se observar uma influência direta do debate entre individualismo e coletivismo na economia. Diversas áreas, como trabalho, indústria e políticas econômicas governamentais, foram e são diretamente influenciados pela posição de seguir uma ou outra das linhas acima referidas (ou, evidentemente, posições intermediárias).

Gorodnichenko e Roland trazem análise deveras pertinente sobre o tema. Inicialmente, porém, os próprios autores ressalvam que “Individualist and collectivist cultures are likely to have various economic effects which have only started to be explored”.8

Porém, diversas questões já podem ser, ao menos até certo ponto, compreendidas.

Inicialmente, pode-se destacar que uma visão coletivista tende a defender, evidentemente, a prevalência do interesse coletivo sobre o individual. Em certa medida, tal posição acarreta uma preferência à satisfação dos interesses básicos do coletivo, garantindo que todos tenham acesso a um mínimo existencial9, relegando ao segundo plano a busca por excedentes.

Tem-se, assim, o direcionamento de valores e de atenção para medidas que tragam maior benefício para a maior quantidade de pessoas. Produção voltada para a subsistência básica, por exemplo, apresenta-se como fundamental.

Numa sociedade individualista, por outro lado, pode-se observar uma maior liberdade para que os indivíduos persigam o desenvolvimento como lhes parecer mais atraente. Uma maior liberdade, acarretando, também, uma menor preocupação (ao menos em tese) com a satisfação do interesse coletivo.

Porém, dando-se maior liberdade de atuação individual aos cidadãos, permite-se que estes desenvolvam seu potencial criativo para a inovação, por exemplo, levando a um maior desenvolvimento tecnológico, possivelmente aplicável também à subsistência básica.

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Neste sentido, é bastante pertinente a análise de Gorodnichenko e Roland, os quais afirmam:

In this simple theoretical setting, we find ceteris paribus that while collectivism’s increased coordination capacities leads to higher efficiency in the economy, individualism results in higher innovation because of the social status rewards to innovation. As a result, the higher innovation rate eventually leads to higher levels of productivity and output in the long run compared to a collectivist culture. In other words, while the advantages of collectivism affect static efficiency in the economy, the advantages of individualist culture affect dynamic efficiency and thus long run growth10.

Von Mises, por sua vez, apresenta visão que demonstra sua predileção pelo individualismo e, por decorrência, pelo liberalismo. Afirma o autor que o liberalismo é, em verdade, uma “defesa do individualismo”, sendo que, quando devidamente respeitado, leva à “divisão do trabalho, à cooperação social e à intensificação dos vínculos sociais”.11

Cabe destacar, também, uma visão oposta à de von Mises. Dresch refere que Marx, em sua crítica ao Direito como instrumento de perpetuação do poder da classe dominante, também se insere no debate aqui analisado. No entendimento do autor alemão, a classe burguesa utilizaria do Direito como meio para impor sua dominação político-econômica. O capitalismo, então, permitiria a tomada de decisões que, por um viés individualista, favoreceriam a burguesia.12

O autor, portanto, enquanto socialista, defenderia a primazia do interesse do grupo sobre o interesse privado (visão essa compartilhada com as demais correntes socialistas). O progresso da sociedade deveria estar direcionado à busca por condições igualitárias e pelo bem-estar social, guiando-se por uma perspectiva coletivista.

O que se vê, assim, é que o debate entre individualismo e coletivismo implica visões distintas acerca da organização econômica de uma sociedade.

A visão individualista, estimulando os indivíduos a se destacarem e se diferenciarem da maioria, implica maior progresso tecnológico, inovações, bem como inúmeros cases de sucesso individual. Evidentemente, este progresso tecnológico poderá ser utilizado a fim de promover o bem-comum, porém, respeitando-se a autonomia daqueles detentores das condições econômicas e do poder de gestão para decidirem quanto à aplicação de suas “posses”. Como decorrência, também, estimula-se a competitividade entre os cidadãos.

Com uma visão coletivista, por outro lado, busca-se pautar os investimentos em medidas que acarretarão maior benefício social. Desestimulando-se a competição, pretende-se que os cidadãos, conscientes de seu papel na sociedade, contribuam para o desenvolvimento e para a satisfação dos interesses básicos de todos. Um dos exemplos clássicos de organização econômica sob o viés coletivista é o do socialismo, muito embora haja outros que, com características distintas, privilegiem o interesse social ao individual.

A questão jurídica

O debate entre individualismo e coletivismo não restringe seus efeitos à esfera econômica ou à filosófica. Pode-se ver, em verdade, reflexos nas mais diversas áreas. Uma delas, porém, merecerá especial atenção, não apenas pelo significativo impacto, mas também pela pertinência temática. Trata-se da esfera jurídica.

Em um primeiro momento, buscar-se-á demonstrar as diferentes premissas teóricas que advêm da aplicação de um viés individualista ou coletivista ao Direito. Noções como justiça social, autonomia privada, liberdade contratual e intervencionismo judicial serão debatidas, uma vez que decorrem de forma direta do debate aqui sintetizado.

Após, pretende-se apresentar o impacto à jurisprudência, a partir do estudo do paradigmático precedente Jacob & Youngs, Inc. v Kent, julgado pela New York Court of Appeals.13

Por fim, serão discutidos os impactos legislativos, tomando-se por ponto de partida a discussão acerca do salário mínimo, bem como quanto à recente Medida Privosória nº 881, popularmente conhecida como “MP da Liberdade Econômica”.

Premissas teóricas

Como analisado em tópico anterior, a adoção de uma visão mais tendente ao individualismo ou ao coletivismo impacta de forma direta a organização econômica de uma sociedade. Porém, na esfera jurídica, a escolha por um desses caminhos também traz significativas consequências.

Em um ordenamento jurídico mais tendente ao individualismo, espera-se encontrar maior espaço para a autonomia privada, conceituada por Miragem nos seguintes termos:

Autonomia privada entende-se como a capacidade ou esfera de atuação individual reconhecida pelo Direito para que as pessoas autorregulem parcela de seus interesses de acordo com sua vontade, em espaço de liberdade delimitado pelo ordenamento jurídico. (...) A autonomia privada só se justifica dentro do Direito, ou pressupondo a existência do direito como modo de disciplina da vida social, uma vez que é por ele reconhecida e delimitada quanto a sua existência e extensão”.14

Luigi Ferri, por sua vez, destaca que a autonomia privada não é uma mera licitude ou faculdade, mas sim uma verdadeira manifestação do poder de criar normas jurídicas dentro dos limites impostos pela legislação. Destaca, ainda, que tal poder não é originário, mas sim tem as normas legais como fonte de validade e de limites.15

Por meio da autonomia privada, os cidadãos possuem autonomia para autorregulamentar suas vidas e seus negócios, dentro dos limites determinados pelo ordenamento jurídico. Porém, com a liberdade que lhes é conferida, poderão agir conforme seus interesses individuais, como o lucro, por exemplo, relegando a segundo plano o interesse coletivo (desde que respeitadas as balizas impostas, como a dignidade da pessoa humana e a função social dos contratos16, por exemplo).

Da mesma forma, como consequência natural do maior respeito à autonomia privada, uma visão individualista do Direito acarreta uma maior valorização da liberdade contratual. Porém, como destaca Ching17, consequência natural de tal postulado é uma desvalorização da ideia de justiça nos contratos, a qual se encontra presente de forma mais significativa em um viés coletivista.

Por outro lado, adotando-se uma visão mais tendente ao coletivismo, a autonomia privada não deverá ter tamanho destaque. Tal se dá pois, para tal perspectiva, mais importante do que o direito individual dos cidadãos de se autorregulamentarem é o interesse social, o coletivo.

O que se busca, portanto, é a justiça social, definida como Ramón18 como a busca por harmonia e proporcionalidade entre todos.

Desse modo, em uma visão coletivista, a autonomia privada e a liberdade contratual, muito embora valorizadas, serão amplamente limitadas pela noção de justiça social, sendo permitida e, muitas vezes, estimulada a revisão judicial dos contratos, quando deles resultarem condições injustas.

Trata-se, portanto, de diferentes perspectivas acerca da liberdade conferida aos indivíduos para dispor acerca de seus interesses. Porém, mais do que meros referenciais teóricos, é possível identificar aplicações práticas tanto na jurisprudência quanto no processo legislativo.

Análise jurisprudencial – o precedente Jacob & Youngs, Inc. v. Kent

Para analisar o impacto jurisprudencial do debate entre individualismo e coletivismo, será tomado como base o estudo de uma decisão que, em seus fundamentos, reflete boa parte dos argumentos ora debatidos. Trata-se do precedente Jacob & Youngs, Inc. v. Kent, julgado pela New York Court of Appeals.19

O caso tratava da seguinte questão: a autora, construtora Jacob & Youngs, Inc., foi contratada pelo réu, advogado George Kent, para construir uma casa. No contrato, estavam descritas diversas características que deveriam constar do imóvel, sendo uma delas a utilização de encanamento da marca “Reading Iron Company”.

Todavia, com a obra já bastante avançada, Kent compareceu ao local para acompanhar os trabalhos e constatou que o encanamento utilizado não era o da marca explicitamente contratada, mas sim de “Cohoes Rolling Mill Company”. Assim, requereu à construtora que promovesse a substituição do produto por aquele que fora acordado, tendo por base a noção de que não poderia ser obrigado a receber prestação diversa daquela que fora contratada, ainda que mais favorável.20

Por sua vez, a construtora informou que o encanamento utilizado era de qualidade igual ou até mesmo superior à contratada, não havendo qualquer prejuízo ao resultado da obra. Ademais, alegou que a construção já estava muito avançada e que, portanto, a troca do encanamento implicaria custo muito elevado, sendo indevida.21

Por conta do alegado inadimplemento contratual, Kent reteve o pagamento do saldo devido à construtora, a qual recorreu ao Judiciário. Destaca-se ainda que não houve, no caso, alegações de fraude, coação ou assemelhados. A questão se resumia a: podia Kent reter o valor de US$ 3.483,46 porque Jacob & Youngs, Inc. não utilizou a marca de encanamento devida?

Apreciando o caso, a New York Appeals Court entendeu que se tratava, em verdade, de um complexo debate acerca da opção por um viés individualista ou coletivista na análise dos contratos em geral.

Conforme refere Ching22, o Juiz Benjamin Cardozo, adotando visão mais tendente ao coletivismo, proferiu voto no sentido de que não seria justo um resultado no qual Jacob & Youngs, Inc. não fizesse jus ao pagamento do saldo por conta de um descumprimento contratual meramente trivial.

Valorizando a noção de justiça por trás dos contratos, Cardozo entendeu que não houve qualquer prejuízo efetivo ao réu por conta do uso de encanamento diverso. Assim, tendo a autora adimplido substancialmente sua prestação contratual, deveria o réu cumprir com a sua e pagar o saldo devido.

Todavia, entendimento diverso foi adotado pelo Juiz Chester McLaughlin. Partindo de uma premissa individualista, referido julgador defendeu a ideia de que cabia apenas às partes definir se os termos contratados eram justos.

Em seu voto, o julgador referiu que, tendo sido livremente contratado que o encanamento a ser utilizado seria “Reading”, o réu tinha direito de exigir o adimplemento de tal cláusula, não cabendo ao Judiciário analisar os motivos que levaram à preferência por uma ou por outra marca. Referiu, ainda, que a escolha do réu pode ter se dado por “mero capricho”, porém, tendo tal preferência sido livremente contratada entre as partes, haveria uma obrigação de segui-la, não podendo sequer ser substituída por outra de qualidade boa ou, até mesmo, melhor.23

Refletindo sobre as posições acima, Ching24 refere que a perspectiva individualista adota a noção de que um contrato não deve estar submetido (ou, ao menos, não significativamente) aos padrões sociais de justiça e equidade. Cabe aos indivíduos que livremente negociaram decidir se as cláusulas lá inseridas são justas. Assim, se desejam tornar a escolha de uma marca de encanamento como questão fundamental, são livres para tanto, não cabendo alegar violação à justiça social por conta da retenção do pagamento por “detalhes” como este.

Tem-se, portanto, uma valorização da autonomia privada, conferindo-se aos cidadãos o direito de dispor acerca de seus interesses, não cabendo à sociedade ou ao Judiciário intervir naquilo que fora livremente contratado entre iguais.

Por outro lado, tratando-se de uma perspectiva coletivista, os valores sociais deverão incidir inclusive nas questões tratadas entre particulares. Não seria do interesse social estimular condutas que levem a prejuízos de uma parte por conta de “caprichos” de outra. Ademais, a justa distribuição dos bens é um interesse de todos, o que implica respeitar os direitos de todas as partes envolvidas em um contrato.

Pelo coletivismo, como dito, reforçam-se os limites impostos à autonomia privada e à liberdade contratual, como a função social do contrato e a dignidade da pessoa humana. Noção esta condizente com o voto proferido pelo Juiz Cardozo.25

Ao final, a tese que prevaleceu por maioria foi a do Juiz Benjamin Cardozo. A Corte entendeu que Kent não teria direito a reter o saldo de US$ 3.483,46 por conta de questão trivial como a marca do encanamento, devendo, portanto, efetuar o pagamento.

Prevaleceu, desse modo, a perspectiva coletivista, muito embora em uma sociedade norte-americana profundamente marcada pelo individualismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise efetuada permite concluir que, muito embora tenha origem em séculos passados, o debate entre individualismo e coletivismo se mantém muito relevante e atual.

Como se buscou demonstrar, vem de longa data o debate filosófico entre noções que privilegiam ou as liberdades individuais ou o interesse coletivo. Filósofos e pensadores de significativo destaque, como Marx e Comte, participaram deste debate com profundas contribuições.

Todavia, não apenas se trata de debate de ideias. O que se pode ver, em verdade, é que há consequências absolutamente diretas do conflito entre individualismo e coletivismo no modo de organização e de regulamentação das sociedades.

Se, por um lado, adota-se um viés coletivista, tem-se uma sociedade que privilegia o interesse coletivo, a união social entre grupos e a satisfação do mínimo essencial para todos (ao menos em tese, claro). Um dos instrumentos para alcançar tais objetivos é a possibilidade de revisão judicial dos contratos. Por outro lado, adotando-se visão individualista, as liberdades individuais devem prevalecer, com respeito à autonomia privada, à liberdade de contratar e com estímulo à competição.

Evidentemente, é possível que uma sociedade e um ordenamento jurídico apresentem, ao mesmo tempo, características individualistas e coletivistas. Não se pretendeu aqui apresentar juízo de valor quanto a um ou outro dos conceitos debatidos. O que se buscou, sim, foi defini-los e, mais importante, demonstrar a aplicabilidade prática de ambos, especialmente a fim de demonstrar a fundamental relevância do debate filosófico há muito realizado e ainda tão pertinente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.

CHING, Kenneth. Justice and Harsh Results: beyond individualism and collectivism in contracts. 45 University of Memphis Law Review 59, 2014

DRESCH, Rafael de Freitas Valle. Fundamentos do Direito Privado: uma teoria da justiça e da dignidade humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Processo, 2018

FERRI, Luigi. La Autonomía Privada. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1969

GORODNICHENKO Yuryi., ROLAND, Gérarde. Understanding the Individualism-Collectivism Cleavage and Its Effects: Lessons from Cultural Psychology. In: AOKI, Masahiko, KURAN, Timu., ROLAND, Gérarde, Institutions and Comparative Economic Development. Londres: Palgrave Macmillan, 2012

MIRAGEM, Bruno. Direito das Obrigações. 2. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018

NEW YORK COURT OF APPEALS. Jacob & Youngs, Inc. v. Kent, 230 N.Y. 239 (1921)

RAMÓN, Roberto Muñoz. Derecho del Trabajo. Tomo 1 – Teoría Fundamental. Cidade do México: Porrúa, 1976

SARLET, Ingo. Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado. Salvador, n. 15, set./out./nov., 2008.

VON MISES, Ludwig. O coletivismo depende de líderes messiânicos. Disponível em https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2349, acessado em 29 ago. 2019.

Sobre o autor
Rafael Saltz Gensas

Mestre em Direito pela UFRGS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GENSAS, Rafael Saltz. Individualismo e coletivismo:: aplicações práticas de um debate jurídico-filosófico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7261, 19 mai. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103957. Acesso em: 24 nov. 2024.

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