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Mercosul: os desafios constitucionais do processo de integração regional

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16/09/2007 às 00:00
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3 RELAÇÃO ENTRE DIREITO INTERNACIONAL, DIREITO DE INTEGRAÇÃO e DIREITO INTERNO

No presente capítulo são trazidos conceitos do Direito Internacional Público e seus desdobramentos diante do surgimento de novas modalidades de integração. Aqui se analisam ainda as características que diferenciam o Direito Internacional Público clássico do Direito de Integração e este do Direito Interno.

As peculiaridades do modelo adotado no Mercosul, de cunho intergovernamental, e as suas implicações no âmbito do bloco tornam o presente estudo necessário para a compreensão do tratamento conferido pelo ordenamento constitucional de cada Estado membro a temas, como o reconhecimento do Direito de caráter comunitário e a recepção e integração dos tratados internacionais em relação às normas emanadas dos órgãos intergovernamentais.

3.1 Direito Internacional Público e integração

Os diferentes desdobramentos que o Direito Internacional Público passa a comportar a partir do crescente avanço do fenômeno da globalização requerem a necessária reformulação do conceito de soberania do Estado, até então consolidado sem maiores dilemas.

O domínio das grandes potências mundiais, intensificado na era da globalização, desencadeia outro fenômeno, que consiste na formação de blocos regionais.

O agrupamento de Estados, comumente unidos por interesses, de regra, políticos e econômicos, dá ensejo à integração regional, surgindo, assim, uma nova modalidade de Direito, denominada, por alguns, de "Direito Comunitário" e, por outros, de "Direito da Integração".

Os tratados internacionais são intensificados como resultado da consolidação formal das negociações entabuladas entre os Estados e, com a sua multiplicação, a exeqüibilidade passa a requerer a sua prévia incorporação ao Direito Interno dos Estados. Esse fato provoca a necessidade de reformulação da ordem jurídica interna.

O comportamento dos Estados sobre a transferência de parcela de soberania interna aos órgãos supranacionais estabelecidos com a formação de blocos econômicos passa a ocupar importante espaço. Pode-se dizer que a delegação de poder soberano a instituições de caráter supra-estatal corresponde ao reconhecimento de uma ordem jurídica suprema sobre o Direito Interno.

O conceito de Direito Internacional Público pode ser vastamente encontrado nas mais diversas doutrinas nacionais e internacionais. Aqui são vistas apenas noções de Direito Internacional Público, apresentando-se as definições que mais se amoldam a este estudo, sem entrar em detalhes sobre o tema, que não é o propósito deste trabalho.

Nesse sentido, invoca-se previamente Dallari (2003, p. 3), que assim preleciona:

A emergência, no plano internacional, de um contexto de integração política, econômica e social mais acentuado, do qual decorre, necessariamente, o incremento do sistema de Direito Internacional Público, não implica, todavia, a rejeição do primado da soberania do Estado ou mesmo a perspectiva da perda de sua condição de ente basilar na estruturação política do planeta.

Para Jean Touscouz, citado por Ribeiro (2001, p. 24), o Direito Internacional é representado pelo "[...] conjunto de regras e instituições jurídicas que regem a sociedade internacional e que visam a estabelecer a paz e a justiça e a promover o desenvolvimento".

Sintetizando, pode-se dizer que o Direito Internacional é aquele que decorre das relações entre Estados interdependentes e soberanos, subordinando-se a regras desse direito. Essas regram dependem de sua incorporação ao Direito nacional. O Direito nacional, por sua vez, subordina-se às suas fontes, das quais a principal é a Constituição, colocada em patamar superior aos demais ordenamentos legais internos.

A hipótese de formação de blocos alcançada pela terminologia do Direito Comunitário é relacionada à CE, amoldando-se as demais integrações regionais, como é o caso do Mercosul, à terminologia do Direito de Integração.

Grande parte da doutrina não se preocupa com as diferenças entre o Direito de Integração e o Direito Comunitário, tratando-os igualmente, mas, quando os autores procuram conceituá-los, surgem controvérsias.

A pouca preocupação com essas diferenças pode estar relacionada ao fato de a maior parte da doutrina ter sido construída com base no maior exemplo de bloco econômico bem-sucedido em formato de comunidade, como é a hipótese da CE, que se submete ao verdadeiro Direito Comunitário.

Para Liquidato (2006, p. 61), a terminologia "Direito Comunitário" significa:

[...] o ramo do Direito cujo objeto de estudo é, em grossas linhas, o ordenamento jurídico da União Européia, restando a expressão "Direito de Integração", hoje, para abranger as demais experiências integrativas. Dessa forma, pode-se dizer que a espinha dorsal do Direito de Integração foi extraída do Direito Comunitário, possuindo este especificidades da realidade européia e caminhando aquele para o campo de uma teoria abrangente tanto dos blocos de cooperação quanto dos de integração. (grifos da autora).

Para essa autora, "O Direito de Integração é um ramo novo do Direito, um desdobramento do Direito Internacional, regulador das organizações internacionais comunitárias, em princípio com órgãos supranacionais".

Com base nesse entendimento, pode-se afirmar que o surgimento do processo de integração reclama novas modalidades de Direito, haja vista que o Direito Internacional Público clássico nem sempre é apto a abrigar os sujeitos integrantes da comunidade. Por isso os tópicos seguintes cuidamo das particularidades que a nova realidade da integração propõe.

3.1.1 O Direito de Integração e o Direito Interno – uma análise conceitual

Entre os doutrinadores que conseguem chegar, por meio de características do Direito de Integração e do Direito Interno, às diferenças entre estes ramos do Direito é Böhlke (2002, p. 191) que enfoca o tema no Mercosul.

Diz ele que são vários os motivos que diferenciam o Direito de Integração do Direito Interno e, citando Ricardo Xavier Basaldúa, afirma que "O primeiro deles é que o Direito Interno representa a vontade jurídica de apenas um Estado", enquanto o Direito da Integração representa a exteriorização da vontade do bloco de integração, este formado por vários Estados.

E prossegue Böhlke (op. cit., p. 191), verbis:

O segundo motivo é que as normas do Direito Interno são produzidas e aplicadas por órgãos do Estado em questão, em conformidade com disposições constitucionais. O Direito da Integração abrange um conjunto de normas que é produzido apenas por órgãos do Mercosul, e não pelas instituições de um ou outro Estado. A produção normativa no Mercosul ocorre de acordo com disposições do Direito Originário, notadamente do Tratado de Assunção.

Essas características e diferenças justificam-se pelo modelo de concepção do bloco, intergovernamental ou supranacional.

3.1.2 O Direito de Integração e o Direito Internacional Público clássico

O Direito de Integração, para alguns, pode ser visto como um ramo novo do Direito, como desdobramento do Direito Internacional, mas não como sub-ramo do Direito Internacional Público clássico, conforme defende Ballarino, citado pela autora Liquidato (2006, p. 67). Para esta, as razões estariam fundadas no fato de que entre o Direito Internacional Público clássico e o Direito de Integração pode haver uma nova espécie de Direito, que pode ser chamada de Direito Internacional Público Hodierno (Direito Internacional da Idade Contemporânea).

Ainda para a autora (op. cit., p. 69), fundamentada na conjugação dos entendimentos de Dupuy, Huber, Basso e Porto, todos citados em seus textos, o caráter intergovernamental da organização internacional afastaria a possibilidade de se falar em Direito de Integração, mesmo se admitindo que não seria correta a terminologia "Direito Internacional Público clássico" para essa nova realidade que trouxe a modernidade.

Essa idéia, no entanto, conflita com a adotada por Böhlke (2002, p. 192), ao apresentar este autor as similitudes entre o Direito Internacional Público e o Direito de Integração, que, segundo ele, fundamentam-se no fato de que a criação das normas dos órgãos do Mercosul depende do consenso e da presença de todos os representantes dos Estados membros. Além disso, algumas dessas normas precisam passar pelo processo de incorporação ao Direito doméstico, segundo a Constituição de cada Estado membro. O art. 42 e o art. 2º, ambos do Protocolo de Ouro Preto, trazem disposições sobre o assunto.

A transposição para o Direito doméstico das normas do Mercosul, como normas de Direito da Integração que são, procede-se mediante o cumprimento da legislação de cada país.

No caso do Brasil, que não avança no regramento constitucional, a incorporação tem ocorrido segundo as regras do Direito Internacional Público clássico. Essa é a posição firmada pela jurisprudência do STF, haja vista a lacuna no texto constitucional brasileiro acerca de temas como a admissibilidade de um ordenamento supranacional e a recepção e integração dos tratados internacionais ao Direito nacional.

A diferenciação entre o Direito de Integração e o Direito Internacional Público clássico é dissecada por Böhlke com base na conjunção de entendimentos doutrinários. Para esse autor (op. cit., p. 192-193), as diferenças podem ser agrupadas nos seguintes tópicos: finalidade e objeto; hermenêutica; reservas; abrangência; personalidade jurídica internacional; estrutura institucional; e, segundo Midón, citado por Böhlke (op. cit., p. 192), a affectio societatis, entre outros.

Invocando Charles Rousseau, diz Böhlke que a diferença entre Direito Interno e Direito Internacional Público é que o primeiro refere-se ao Direito de subordinação e o segundo ao Direito de coordenação. Assim, o Direito Internacional Público se prestaria a coordenar ações entre determinados Estados.

Adotando-se a definição do Dicionário Aurélio, o Direito da Integração vai além da coordenação, ele envolve a integração dos Estados.

O conceito que melhor parece traduzir a questão é o sintetizado por Midón, citado por Böhlke (op. cit., p. 193), ao afirmar que "O objeto, a finalidade e o método do Direito de Integração tratam da eliminação de obstáculos nas interações entre Estados membros, e mesmo entre pessoas, jurídicas ou físicas, radicadas nesses Estados".

A expressão affectio societatis encerra uma das características da constituição de determinadas sociedades, como pessoa jurídica de direito privado. Um dos propósitos da integração é o espírito associativo que, em geral, não está presente no Direito Internacional Público clássico, segundo Böhlke.

Novamente o professor argentino Midón é aqui invocado por Böhlke, ao referir-se ao affectio societatis, que "[...] exterioriza iniciativa integracionista destinada a realizar de modo conjunto e simultâneo determinado modelo".

Quanto à hermenêutica, o Direito de Integração propicia a interpretação teleológica. Pela Convenção de Viena [07], a interpretação dos instrumentos de Direito Internacional Público clássico faz-se com privilégio à interpretação literal, "[...] destinando ao estudo do objeto e da finalidade apenas caráter orientador" (Dromi, Ekmekdjian e Rivera apud BÖHLKE, op. cit., p. 193).

Os instrumentos de Direito Internacional Público, via de regra, permitem reserva de lei, o que não é comum no Direito de Integração, porque normalmente são incompatíveis com o objeto do tratado constitutivo.

Esse é o verdadeiro exemplo do Tratado de Assunção, que estabelece, em seu art. 1º, o compromisso de todos os Estados membros promoverem a harmonização da legislação interna, não admitindo, portanto, qualquer reserva.

Quanto à abrangência, os tratados internacionais submetidos ao Direito Internacional Público clássico geralmente são utilizados para formalizar aspectos específicos entabulados por força de negociação entre os países, enquanto os instrumentos do Direito de Integração regulam aspectos variados decorrentes dos interesses comuns dos Estados membros.

A personalidade jurídica internacional no Direito da Integração é conferida com base nas estruturas institucionais, voltadas para os fins do bloco. O Mercosul, por exemplo, adquiriu personalidade jurídica de Direito Internacional com a entrada em vigor do Protocolo de Ouro Preto, conforme estabelece seu art. 34.

A estrutura institucional no Direito de Integração é aquela criada com fundamento no Direito originário, composta por órgãos com funções preestabelecidas e com capacidade decisória. As decisões dos órgãos são de obrigatório cumprimento pelos Estados membros. "O Direito Internacional Público é Direito essencialmente convencional" (Midón apud BÖHLKE, op. cit., p. 195).

Pode-se afirmar que há diferenças visíveis entre Direito Internacional Público e Direito de Integração, quando se examina a incorporação dos tratados internacionais ao Direito Interno dos Estados membros de determinado bloco econômico.

Na análise dos textos constitucionais de cada Estado integrante do Mercosul, é identificado o mecanismo dispensado aos tratados internacionais firmados com organizações internacionais gerais (normas de Direito Internacional Público clássico) e o sistema de recepção e integração de tratados e normas firmados sob a égide do bloco (normas de Direito de Integração).

O texto constitucional permite concluir se há ou não distinção do mecanismo de recepção dos tratados internacionais gerais e dos tratados firmados sob a égide da integração e, como conseqüência, saber-se-á se o Estado membro aplica o Direito de Integração ou o Direito Internacional Público clássico para tal efeito.

A aplicação do Direito Internacional Público e do Direito de Integração tem estreita relação com o tema da soberania do Estado, pois a delegação de competências para organização internacionais de caráter supranacional está intimamente ligada ao processo de integração.

Quanto maior a limitação da soberania do Estado, isto é, quanto maiores as restrições do texto constitucional quanto ao reconhecimento de ordenamento jurídico supranacional, maiores são as perspectivas de aplicação do Direito Internacional Público clássico e menor é o propósito integrativo do Estado. Justifica-se, assim o estudo do próximo tópico.

3.2 Soberania e supranacionalidade – uma análise histórico-conceitual

3.2.1 Aspectos conceituais e históricos de soberania e o avanço das relações internacionais

A necessidade de estabelecer linhas conceituais gerais sobre soberania encontra fundamento na internacionalização das relações econômicas, políticas, jurídicas e sociais no cenário econômico mundial.

O centro da questão está em identificar o grau de abertura da soberania inserido no ordenamento constitucional de cada Estado para efeito de avaliação quanto ao nível de inserção do Estado no mercado global ou regional.

A história retratada por pensadores (Bodin, Loyseau, Bret) mostra que o conceito de soberania vem sofrendo diferentes conotações conforme o Estado ou governo.

Para Rezek, citado por Kerber (2001, p. 73), a soberania pode ser vista, verbis:

[...] como conceito histórico compõe a qualidade do Estado, vem paulatinamente sofrendo atenuações devido à crescente idéia de integração dos Estados em grupos regionais, que visam a incrementar seus negócios no âmbito interno do próprio grupo e, principalmente, no contexto global.

É a partir do século XVI que surgem os estudos acerca das teorias da soberania segundo novos fundamentos, de modo a torná-la fortalecida na esfera mundial.

O entendimento dos novos aspectos conceituais e de sua evolução histórica torna-se necessário para a compreensão do instituto da supranacionalidade, surgido, notadamente, com a criação de organismos internacionais para operacionalizar a integração comunitária.

O caráter absoluto do conceito de soberania preconizado por Jean Bodin possui raízes na monarquia, dependente da afirmação do poder do Estado na luta pela independência, razão da idéia de o poder soberano estar associada ao monarca.

Kerber (op. cit., p. 3) aduz:

[...] Coulanges, dissertando sobre a cidade antiga (cite antique), anota que a soberania corporifica uma associação pelo menos tão religiosa quanto política. Havia sido fundada como uma religião e constituída como uma igreja. Daí a sua força; daí também a sua onipotência e império absoluto que exercia sobre seus membros.

O autor comenta ainda que somente na Idade Média surgiram condições políticas, sociais, econômicas e psicológicas propícias à consolidação da soberania, nos moldes que se concebe hoje.

No período do absolutismo, que se dá entre 1485 e 1789, o conceito de soberania veio manifestar-se de forma mais intensa no âmbito interno dos Estados, com conseqüências externas, quando se impôs a igualdade jurídica entre os Estados, embora a soberania ainda se confundisse com a idéia do poder do monarca.

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A respeito dos comentários de Kerber (op. cit., p. 75), há na figura do Estado uma vontade superior às vontades individuais ou coletivas, uma autoridade que não se inclina diante do poder que queira prevalecer sobre o seu ou com ele concorra.

O respeito à soberania estatal caracteriza-se por um dos inúmeros princípios jurídicos internacionais, geralmente reconhecidos e teoricamente vinculativos a todos os Estados, sem estar na dependência de situações circunstanciais de abrigar povos mais cultos ou menos cultos ou até mesmo que se encontram em patamar de desigualdades sociais, econômicas e políticas.

Por outro lado, o conceito clássico de soberania vem sofrendo mutações no tempo em face da interação das nações soberanas com seus próprios cidadãos, fruto do crescente fenômeno da globalização e dos efeitos dele decorrentes.

O paradigma da soberania externa clássica ganha novos horizontes a partir da Guerra dos Trinta Anos, provocada por conflitos mundiais, na metade do século XX, mais precisamente em 1945, quando foi assinada a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) [08], e, posteriormente, em 1948, quando é aprovada a Declaração Universal dos Direitos do Homem pela Assembléia Geral das Nações Unidas [09], cujos documentos normativos transformam a ordem jurídica do mundo, levando-o do estado de natureza ao estado civil.

Segundo Ferrajoli (2002, p. 39), com os dois documentos citados, "A soberania, inclusive externa, do Estado – ao menos em princípio – deixa de ser [...] uma liberdade absoluta e selvagem e se subordina, juridicamente, a duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos".

É a partir desse marco que o conceito de soberania externa torna-se inconsistente e, segundo a doutrina monista de Kelsen, o Direito Internacional e os vários direitos estatais passam a representar um ordenamento único.

A juridicidade do novo ordenamento internacional tem origem com a supressão, no preâmbulo e nos dois primeiros artigos da Carta da ONU, do ius ad belum, constituindo, assim, o principal atributo da soberania externa.

A declaração de 1948 consagra os direitos humanos e, posteriormente, em 1966, os pactos internacionais atribuem a esses direitos, que até então eram apenas constitucionais, característica supra-estatal, transformando-os de limites exclusivamente internos em limites que extrapolavam o poder dos Estados (FERRAJOLI, op.cit., p. 40).

A Carta da ONU passa a ter relevância na esfera internacional, mediante a concepção de um novo Direito Internacional e o fim do velho paradigma – o modelo Vestfália [10] – que se havia firmado três séculos antes com o término de outra guerra européia, a dos Trinta Anos [11].

Assim, essa carta se traduz no ordenamento jurídico supra-estatal, sujeitando-se aos seus termos não apenas os entes estatais, mas também os indivíduos e os povos, de modo que estes passaram a ser sujeitos de direitos contra o próprio Estado perante uma jurisdição internacional.

A transformação conceitual não resta finalizada até o momento atual, pois mesmo a ONU, não obstante sua inspiração e aspiração universalista continua a manter-se condicionada, fática e juridicamente, pelo princípio da soberania dos Estados.

Dessa forma e traduzindo os comentários do professor italiano Ferrajoli, no estado de direito não há espaço "[...] para nenhum soberano, a menos que não se entenda como ‘soberana’, com puro artifício retórico, a própria Constituição, ou melhor, o sistema de limites e de vínculos jurídicos por ela impostos aos poderes públicos já não mais soberanos". (G. Zagrebelsky apud FERRAJOLI, op. cit., p. 44).

No entender de Gussi, citado por Casella (2006, p. 111), "Soberania significa, assim, a superioridade, e é uma qualidade do poder, independente do modo como se manifesta. No absolutismo (como doutrina), é a soberania de um poder considerado absoluto. Já no estado de direito, é a soberania de um poder limitado".

Atualmente, não há mais espaço ao conceito tradicional de soberania, pois o advento do fenômeno da globalização requer a flexibilização do seu conceito clássico, faz repensar a idéia absoluta de soberania, que passa a ser tratada com certa relatividade, justamente em decorrência da necessidade de sua adaptação à realidade mundial, que a faz evoluir, realçando seu novo conceito com a formação de blocos econômicos como forma de integração regional.

Assevera Fonseca (2006, p.118) que a noção de soberania clássica que domina as relações internacionais durante mais de cem anos vem se perdendo ao longo desse tempo. Justifica esse autor que, verbis,

Entre os fatores determinantes da mudança contam-se a globalização das relações internacionais, sobretudo ao nível econômico; a irrupção de muitos novos Estados por força do movimento da descolonização, carentes de estruturas de produção que lhes permitem assegurar o seu desenvolvimento sustentado, os quais chamaram a atenção para o fenômeno da necessidade de estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional (NOEI).

Se a idéia de que a soberania fundamenta-se no poder e se exercita no plano interno ou externo dos Estados, a premissa de poder supranacional pode ser causa de eventual insegurança nos governantes dos Estados que integram o bloco, à medida que estes estiverem submetidos à ordem suprema da soberania.

Segundo Kerber (2001, p. 79), "No caso do Mercosul, para a sua efetivação, há etapas essenciais que devem ser suplantadas, as quais exigirão transferência de parcelas de soberanias dos seus Estados integrantes".

É pela abordagem de Gussi e diante das considerações conceituais e históricas sobre a soberania do Estado que se depara com a necessidade de refletir sobre o sistema que rege a organização e o funcionamento dos Estados membros do Mercosul, sob a ótica do alcance desse sistema diante do processo de integração, para reformulá-lo com base nas noções atuais do conceito de soberania.

Considerando esse propósito, o tema do tópico seguinte aborda esse novo conceito de soberania diante do processo de integração.

3.2.2 Soberania – um novo conceito no contexto de integração regional

A superveniência do fenômeno de integração gera não apenas desdobramentos econômicos, mas também políticos, jurídicos e socioculturais, indissociavelmente ligados pela crescente implantação de blocos econômicos regionais.

A transferência de parcelas de soberania a instituições supranacionais constitui ponto fundamental à integração e resulta de um processo político inevitável nas relações internacionais do mundo atual, exercendo pressão nos Estados para a cooperação mútua.

Com a formação de comunidades, caso típico da CE, o conceito clássico de soberania, que pode ser traduzido pelo poder indivisível, passou a mostrar-se inoperante para descrever os recentes avanços de integração, uma vez que ele é incapaz de interpretar característica peculiar ligada à integração em etapas avançadas: a divisibilidade da soberania, denominação esta adotada por Pescatore, invocado por Böhlke (2002, p.70).

A divisibilidade da soberania diferencia o fenômeno da coordenação daquele da mera cooperação entre os Estados, esta em que a soberania dos Estados se mantém intacta.

No contexto de integração regional, de que faz parte o Mercosul, é indispensável a necessária convivência da soberania interna dos Estados membros com a soberania externa retratada pela ordem jurídica conferida aos órgãos que integram a estrutura do Mercosul, estrutura contemplada no Tratado de Assunção e confirmada no Protocolo de Ouro Preto.

Os tratados constitutivos dos blocos regionais submetem-se ao mecanismo de incorporação nos Estados membros do Mercosul para efeito de integração no ordenamento jurídico doméstico.

No entanto, é certo que o conteúdo a ser inserido nos tratados constitutivos não conflita com os ordenamentos nacionais dos Estados, porquanto a competência dos órgãos que compõem a estrutura do bloco não se pode chocar com a competência interna dos Estados membros, conferida como resultado da soberania estatal.

Por essa razão, para a criação de blocos econômicos, é indispensável que os Estados que o integram estejam dispostos a ceder parte de sua soberania interna a organismos supranacionais.

A criação de sistema jurídico de caráter comunitário subordina as relações dos Estados membros ao Direito Comunitário. No entanto, isso não significa que os Estados membros deixem de exercer suas competências internas, ao revés passam a ser exercidas segundo a repartição definida na construção do ente supranacional.

Enquanto as instituições supranacionais, a exemplo de um Tribunal de Justiça comunitário, em regra não cuida do Direito Interno dos Estados membros, estes, por sua vez, submetem-se às regras do entre supra-estatal. Conclui-se, assim, que as competências internas dos Estados podem sofrer ampliação em face do novo ordenamento jurídico comunitário.

Partindo dessa idéia, o tópico seguinte cuida do tema da supranacionalidade, como característica das decisões de cunho comunitário, de seu conceito e dos efeitos diante do processo de integração.

3.3 Da supranacionalidade – conceito e efeitos em relação à integração

O instituto da supranacionalidade está intimamente ligado ao mecanismo de integração e manifesta-se com base no surgimento de comunidades formadas pelo agrupamento de Estados que se unem com um fim econômico, político ou social comum.

Os órgãos criados para integrar a estrutura institucional do bloco manifestam-se mediante atos (deliberações, diretivas, orientações, etc.), segundo a competência atribuída na construção do sistema e com base no modelo eleito - intergovernamental ou supranacional.

Historicamente, a expressão supranacionalidade é moderna. Foi inserida no contexto internacional a partir da metade do século passado, quando surgem os primeiros blocos econômicos. Esse termo, segundo consta, "[...] foi empregado pela primeira vez na versão francesa do Tratado de Paris (1951) para descrever as funções dos membros da alta autoridade. Apesar de ser freqüentemente associado ao processo de integração europeu, o termo jamais foi utilizado com relação às comunidades". (Quadros apud BÖHLKE, 2003, p. 71).

Segundo a doutrina de Pescatore, adotada por Böhlke (2002, p. 71-72), a definição da terminologia supranacionalidade sofre críticas iniciais, eis que não se tem a exata compreensão sobre o seu real significado.

Para Quadros, também lembrado por Böhlke, nem os próprios legisladores e negociadores possuem a exata noção do conteúdo da palavra supranacionalidade, não obstante ter sido empregada de forma consensual pelo Tratado de Paris [12] como forma de substituir o termo "federal".

A delimitação do alcance conceitual da expressão estaria, por vezes, submetida à análise sob o aspecto puramente político e, em outras, o enfoque seria unicamente jurídico. Já Quadros considera que a supranacionalidade corresponde à conjunção da análise de ambas as áreas (política e jurídica).

Diz, ainda, Böhlke (op. cit., p. 72) que, pela teoria clássica de Pescatore, pode-se distinguir o essencial do acessório quanto à supranacionalidade. A teoria firma-se com base em três elementos característicos que ele considera essenciais à supranacionalidade, quais sejam:

(i) ‘o reconhecimento por um grupo de Estados, de um conjunto de interesses comuns’ ou, ainda, ‘de um conjunto de valores comuns’; (ii) ‘a criação de um poder efetivo, colocado a serviço desses interesses ou valores’; e (iii) ‘a autonomia desse poder’.

Comenta Böhlke que o primeiro dos elementos característicos da supranacionalidade é a existência de interesses ou valores comuns que estejam acima dos interesses ou valores nacionais de cada Estado membro, devendo estes últimos estar subordinados àqueles.

Em relação ao segundo elemento, esse autor explica que os interesses ou valores comuns não têm grande eficácia se não houver poderes efetivos para exigir a sua observância em prol do objetivo comum. Esses poderes incluem o de [...] adotar decisões que comprometem os Estados, estabelecer regras de Direito que devam ser respeitadas pelos Estados e pronunciar decisões judiciais que ditem o Direito (Pescatore apud BÖHLKE, op. cit., p. 72).

O terceiro elemento acessório da supranacionalidade corresponde ao poder de coerção, que não se justifica como essencial.

Pescatore acrescenta três elementos caracterizadores que considera acessórios à supranacionalidade, que são traduzidos pela 1) institucionalização; 2) exercício direto do poder; e 3) coerção.

Em seguida, Böhlke (op. cit., p. 73) comenta, verbis:

Com relação a este primeiro elemento acessório, Pierre Pescatore acredita que um simples procedimento de decisão por maioria em órgão intergovernamental, com a eliminação de veto unilateral, poderia garantir certa autonomia. O autor não nega, no entanto, que a institucionalização representa um progresso decisivo em direção à supranacionalidade.

O segundo elemento acessório da supranacionalidade não chega a ser essencial, porque as medidas internas a serem adotadas pelos Estados membros para a execução da decisão de caráter comum não impedem a constatação da existência de vontade autônoma.

O terceiro elemento acessório da supranacionalidade é o poder de coerção. Esta coerção, como elemento essencial em processo de integração, é desnecessária e, inclusive faria que todos "fechassem os olhos para as etapas iniciais e mais fracas da evolução supranacional" (Pescatore apud BÖHLKE, op. cit, p. 73).

Para definir o termo supranacional, Kerber (2001, p. 80) sintetiza que o seu significado "[...] expressa um poder de mando que supera os poderes dos Estados, resultando na transferência de parcelas de soberania pelas unidades estatais em benefício da organização comunitária".

No Direito de Integração, o surgimento de entendimentos de que todos os processos jurídicos e políticos existentes nos blocos de integração supranacional são determinados unicamente por fatores e índole econômicos é criticado por Gussi (2006, p. 119), ao dizer que tal entendimento parece estar equivocado, "[...] uma vez que cada uma dessas realidades – economia, política e direito – possuem, além de autonomia ontológica, como observamos, necessidades institucionais específicas".

A supranacionalidade é exercida e implementada de acordo com o grau de soberania transferida pelos integrantes do bloco econômico aos órgãos institucionais de caráter supra-estatal quando da construção do sistema e por força da repartição das competências.

O alcance dos objetivos da integração tem estreita relação com o procedimento de incorporação das normas e dos tratados internacionais, aquelas emanadas das organizações do bloco e estes firmados interbloco, mas ambos (tratado e norma) submetidos ao Direito de Integração ou Comunitário. São normas e tratados internacionais a serem incorporados ao ordenamento jurídico dos Estados membros.

Para tanto, se as Constituições dos países não atribuírem, aos tratados internacionais, hierarquia constitucional ou supranacional, o Direito Internacional Público e, como ramo deste, o Direito de Integração passam a ser mitigados diante do Direito Interno, possibilitando que uma lei posterior interna negue vigência interna a um tratado celebrado, realidade esta que ocorre no Direito brasileiro.

Todavia, essa problemática da recepção e integração dos tratados internacionais poderia ser superada com o reconhecimento constitucional do ordenamento jurídico supranacional. Assim, não se haveria de cuidar da questão que envolve a dinâmica da incorporação da norma ou tratado internacional no ordenamento jurídico doméstico.

Isso não obstante, há teorias que pretendem explicar a incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico nacional, constituídas essencialmente pela dicotomia dualismo e monismo.

3.4 Das teorias monista e dualista

A pretensão aqui é explicar as diferentes teorias sobre o tema da recepção e integração dos tratados internacionais no Direito Interno dos Estados.

Essa questão mostra-se minimizada para o Direito Comunitário regido no âmbito da CE, haja vista que os ordenamentos constitucionais dos Estados membros dessa comunidade amoldam-se ao sistema jurídico supranacional. As normas e os tratados internacionais de cunho comunitário incorporam-se direta e imediatamente ao ordenamento jurídico doméstico, dispensando qualquer procedimento de internalização.

Essa realidade, no entanto, não se mostra presente nos Estados que integram blocos regionais que não adotam o modelo supranacional, como é o caso do Mercosul, cujos órgãos integrantes da estrutura do bloco proferem decisões de caráter intergovernamental.

3.4.1 Do monismo e dualismo – aspectos gerais

A problemática enfrentada no relacionamento do Direito Internacional com o Direito Interno, mais especificamente a recepção dos tratados internacionais pelo sistema de normas do Direito Interno do Estado, mediante a tentativa de sua superação jurídica nos diferentes tratamentos conferidos ao assunto, desencadeia entre os doutrinadores as distinções entre as concepções monista e dualista.

Não obstante as distinções entre essas duas concepções, "O antigo debate entre dualistas e monistas tem sido inútil por muitos autores desde meados o século XX" (Lardy apud BÖHLKE, 2002, p. 222) e, segundo Brownlie, citado por Böhlke (op. cit., p. 222), nenhuma das teorias corresponde à realidade em qualquer sistema jurídico, surgindo, então, uma terceira corrente composta das teorias da coordenação.

Isso acontece porque nenhuma das duas teorias representa perfeitamente a realidade em qualquer sistema jurídico. Em resposta às disparidades entre a realidade e as teorias monistas e dualistas, surgiram as "teorias da coordenação", que têm se revelado as preferidas pelos autores contemporâneos.

Mesmo assim, apesar de se considerar extinta, Mota de Campos, também citado por Böhlke (op. cit., p. 222), complementa que a disputa revela "[...] tendência para renascer das próprias cinzas".

Para o Direito Comunitário regido no âmbito da CE, o interesse em discutir a problemática que envolve a incorporação do Direito Internacional ao Direito Interno resta minimizado, na medida em que os seus Estados membros realizaram a adaptação de suas Constituições, permitindo a aplicabilidade direta das normas comunitárias emanadas das instituições supranacionais da Comunidade, conforme se deduz da doutrina de Böhlke.

Assim, a celeuma permanece nos Estados que integram blocos regionais e não realizam a adaptação de seus ordenamentos jurídicos domésticos, para permitir a criação de organismos supranacionais e tratar a incorporação das normas internacionais, de modo a aplicá-las direta e imediatamente no Direito Interno, razão da exploração do tema no presente trabalho, focado no comportamento constitucional dos Estados membros do Mercosul.

É por isso que, no Mercosul, o resgate das teorias motiva-se principalmente porque o Direito da Integração é tratado de forma similar ao Direito Internacional clássico no âmbito doméstico dos Estados membros que formam o bloco e, para tal demonstração, serão delineados, em tópicos específicos, os ordenamentos constitucionais vigentes no interior de cada Estado membro.

Como segunda motivação para o resgate de tais teorias, consta que:

[...] é a necessidade de compreender o mecanismo de atribuição de validade, vigência e eficácia das normas de integração em face do ordenamento jurídico interno dos Estados-Partes. Não seria adequado empregar uma dessas teorias incondicionalmente. Mas é indispensável saber em que âmbito se dão as relações entre Direito da Integração e Direito Interno para que, com base nesse conhecimento, seja possível aperfeiçoar a sistemática do Direito do Mercosul de maneira a torná-lo mais eficaz. (BÖHLKE, op. cit., p. 222-223).

Sobre a clássica distinção entre monismo e dualismo, Charles Rousseau, citado por Dallari (2003, p. 8), afirma que as "actitudes fundamentales de la doctrina contemporânea com referencia al problema de las relaciones existentes entre el derecho internacional y el derecho interno" e explica que:

[...] dos soluciones – y solo dos, son concebibles: o bien los dos ordenes jurídicos son independientes, distintos, separados e impenetrabeles (dualismo) o bien derivan el uno del outro, lo que implica uma concepción unitária del derecho (monismo).

Consoante Dallari (2003, p. 8), para Hans Kelsen, que se preocupa em dar sistematicidade ao tratamento da matéria, a concepção dualista

[...] pressupõe a total separação entre as instituições e fontes jurídicas do Direito Internacional Público e do direito interno. Assim, a validade de uma norma aplicável no âmbito interno resulta exclusivamente de atos próprios da atividade legislativa do Estado, sendo irrelevante, para tal validação, a verificação da adequação da norma aos compromissos formais e políticos assumidos por esse Estado para com a ordem jurídica estatuída internacionalmente.

Pode-se justificar esse fundamento pelo princípio da repartição dos poderes [13] de cada Estado, em que são conferidas constitucionalmente atribuições e competências para cada esfera de poder. Ao poder legislativo cabe a atribuição de legislar, representando a vontade popular no sentido de promover o encaminhamento das propostas de leis, cujo conteúdo reflete a vontade da nação, que, no caso, refere-se ao relacionamento internacional.

A integração do Direito Interno ao Direito Internacional é a essência da concepção monista, que se caracteriza pela unidade de ambas as ordens jurídicas, segundo o próprio termo indica.

O internacionalista Hildebrando Accioly, citado por Dallari (2003, p. 9-10) explicita e defende tal concepção em poucas e precisas palavras: "Em princípio, o direito é um só, quer se apresente nas relações de um Estado, quer nas relações internacionais".

Para Accioly, essa ordem jurídica unitária não significa que os sistemas jurídicos são distintos, mas há duas esferas de ação, uma interna e outra externa. A interna é regulada em cada Estado pelo seu respectivo Direito Interno e a externa é regida pelo Direito Internacional.

Comenta Böhlke (2002, p. 225) que as teorias monista e dualista não se coadunariam por completo com as práticas internas e externas dos Estados, o que teria motivado alguns doutrinadores a abandonar as teorias que justificariam as relações entre Direito Interno e Direito Internacional Público.

Outros doutrinadores, porém, promoveram adaptações de modo a reconstruir a teoria e a ajustá-la às práticas nacionais e internacionais, o que ensejou um terceiro gênero de teoria, assim denominado de teoria de coordenação.

Como expoente da teoria de coordenação, Gerald Fitzmaurice discorda que o Direito Interno e o Direito Internacional Público têm idêntico campo de operações e afirma:

[...] os dois sistemas não entram em conflito como sistemas, pois operam em esferas diferentes. Cada um é supremo na sua própria esfera. Pode, entretanto, haver conflitos de obrigações quando um Estado não cumpre, na esfera interna, sua obrigação internacional. Nesse caso, a lei interna não é necessariamente atingida, mas o Estado incorre em responsabilidade internacional (BÖHLKE, 2002, p. 226).

Fundamenta Böhlke que a teoria de Charles Rousseau se assemelha à de Gerald Fitzmaurice pela qual "[...] o Direito Internacional Público é Direito de coordenação que não dispõe de mecanismos próprios para ab-rogar normas internas contrárias às obrigações internacionais. Os sistemas, portanto, não entram em conflito, apenas as obrigações derivadas desses sistemas podem ser opostas".

Feitas as exposições sobre as teorias que tentam explicar os diferentes posicionamentos acerca da recepção do Direito Internacional Público no Direito nacional, poder-se-á, adiante, identificar a teoria que explica qual é a norma aplicável no momento de sua recepção ao ordenamento jurídico dos Estados membros do Mercosul, em surgindo conflito entre a norma de Direito Internacional e a norma de Direito Interno, se aquela de âmbito interno, se aquela de âmbito internacional.

3.4.2 Monismo e dualismo - uma análise segundo o Direito brasileiro

A multiplicação dos tratados internacionais sobre os mais variados ramos do Direito faz com que se avulte o tema entre o Direito Internacional Público e o Direito Interno dos Estados. Estando o Brasil inserido nessa multiplicação da produção dos tratados internacionais, ele se vê na necessidade de identificar a forma que esses tratados podem ser recepcionados no seu ordenamento jurídico interno. Sobre o assunto, há divergência entre os doutrinadores quanto à doutrina que melhor justificaria a problemática – se monista, se dualista.

O conflito evoca duas grandes correntes doutrinárias, quais sejam:

[...] o dualismo, pregado no âmbito internacional por Triepel e Anzilotti, e seguido no Brasil por Amílcar de Castro; e o monismo, concepção desenvolvida por Hans Kelsen, e seguido no Brasil pela maior parte da doutrina, inclusive Valladão, Tenório, Celso Albuquerque Mello e Marotta Rangel.

[...] para os dualistas, inexiste conflito possível entre a ordem internacional e a ordem interna simplesmente porque não há qualquer interseção entre ambas. São esferas distintas, que não se tocam. Assim, as normas de direito internacional disciplinam as relações entre Estados, e entre estes e os demais protagonistas da sociedade internacional. De sua parte, o direito interno rege as relações intra-estatais, sem qualquer conexão com elementos externos. Nesta ordem de idéias, um ato internacional qualquer, como um tratado normativo, somente operará efeitos no âmbito interno de um Estado se uma lei vier a incorporá-lo ao ordenamento jurídico positivo. Os autores se referem a esta lei como "ordem de execução" (Barroso apud DALLARI, 2003, p. 11).

A corrente a que se filia Barroso inclina-se em favor do monismo jurídico, pelo qual o Direito constitui uma unidade, um sistema. "Por assim ser, torna-se imperativa a existência de normas que coordenem esses dois domínios e que estabeleçam qual deles deve prevalecer em caso de conflito" (Barroso apud DALLARI, op. cit., p. 11).

Para Böhlke, a teoria dualista é a que melhor explica a sistemática de funcionamento entre o Direito da Integração e o Direito Interno. Não satisfeito com a mera defesa da teoria dualista, ao questionar acerca das razões que levariam o ordenamento jurídico brasileiro a se aproximar da construção teórica dualista, esse autor responde:

Basicamente porque só se confere validade aos instrumentos internacionais no âmbito jurídico interno quando estes tenham cumprido todo o rito de incorporação, que culmina com a promulgação de um decreto presidencial. A aprovação pelo Poder Legislativo e a ratificação não são suficientes para obrigar internamente o Estado brasileiro. Não existente, portanto, norma interna até que o tratado passe pelas etapas de incorporação e seja promulgado decreto do presidente da República (BÖHLKE, 2002, p. 227).

Alguns autores afirmam que a teoria dualista pode também ser denominada de teoria pluralista, ocupando o Direito Internacional Público e o Direito Interno espaços totalmente separados por áreas paralelas que não se encontram. Cada um desses ramos do Direito possui fontes distintas, ou seja, aquele se manifesta em razão da vontade coletiva do Estado e este, da vontade individual do cidadão.

O Direito Internacional Público tem estrutura de coordenação, ou seja, o Estado quando se relaciona internacionalmente admite a possibilidade de se equiparar com outros Estados, mas não permite que estes estejam em grau de superioridade a ele. Em outras palavras, isso levaria à convergência de interesses entre os Estados – princípio da igualdade –, assim manifestados nos tratados internacionais [14].

Tendo o Direito Internacional Público e o Direito Interno fontes distintas e campos autônomos, surge a questão que faz refletir na possibilidade de os tratados internacionais poderem ser operacionalizados no Direito Interno e, caso positivo, se esse procedimento se daria mediante o fenômeno da incorporação. Se tal ocorreria por meio de uma fonte de Direito Interno ou de uma lei. Esse tratado, no plano do Direito Internacional, teria eficácia de tratado internacional e, no plano do Direito Interno, teria eficácia como lei?

O fato é que há uma pluralidade de direitos internos, uma vez que cada país tem o seu Direito Interno, mantendo a independência de cada qual [15].

Essa é a posição que o Brasil vem ocupando segundo Medeiros (2006), porque o tratado internacional firmado pelo Brasil é submetido à ratificação do presidente da República, ato mediante o qual se confirma a sua eficácia diante dos países que o integram. O presidente da República, observada a aprovação pelo Congresso Nacional, promulga o tratado por decreto, que deve ser publicado para assim ser incorporado ao ordenamento jurídico nacional, com comando para o respectivo cumprimento no Brasil.

O momento da incorporação ao Direito Interno é o da promulgação, por decreto, do tratado internacional e mediante a sua imediata publicação. Já o momento da incorporação ao Direito Internacional do tratado internacional é o da sua ratificação pelo presidente da República, salvo quando outra forma for contemplada nesse instrumento, situação que ocorre comumente com tratados firmados por vários países, cuja validade e eficácia internacional poderão estar condicionadas à ratificação de todos eles.

Assim, a ratificação pelo presidente da República de tratado internacional obriga o Brasil no plano internacional.

O problema que pode surgir é que, embora válido no plano externo, poderá faltar ao tratado internacional a validade no Direito Interno, por não terem sido ainda cumpridas todas as etapas no âmbito interno até a final promulgação do tratado por decreto presidencial. Isso poderia implicar a responsabilidade do Brasil por eventual descumprimento dos termos do tratado internacional. Esse também é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF), na ADIN 1.480, relator Celso de Mello, cujo julgamento se deu em 1997.

Tal situação somente poderia ser equacionada pela adequação do ordenamento jurídico brasileiro. No projeto de lei complementar, há um dispositivo que resolveria esse problema: os tratados internacionais não teriam os seus efeitos suspensos por lei interna. As disposições dos tratados somente poderão ser derrogadas ou suspensas nos termos previstos no próprio tratado ou pelas regras do Direito Internacional Público [16].

A adequação da legislação seria uma maneira de se avançar nesse tema entre a equivalência hierárquica entre tratado e lei no âmbito interno.

Entretanto, enquanto tal adequação do texto constitucional brasileiro não ocorrer, a solução do impasse quanto à incorporação dos tratados internacionais no Direito nacional é embasada na jurisprudência do STF, cuja regulação foi consolidada mediante o julgamento do RE 80.004, de 1977, em que ficou estabelecido que os tratados internacionais e as leis internas possuem a mesma hierarquia no Direito brasileiro. Aplica-se o princípio da cronologia, ou seja, lei posterior revoga lei anterior [17].

O STF, no julgado de que se cuida sustenta não se tratar de revogação, já que lei não poderia revogar tratado, o que caracteriza erro de tecnicidade.

A ausência de solução constitucional para conferir aos tratados internacionais posição superior às leis internas eternizará a problemática existente sobre tratados internacionais de que o Brasil é parte.

Nesse sentido, exemplifica Medeiros (2006, p.71) com a aprovação, em 2005, do Projeto de Lei nº 102 pela Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, que proíbe

[...] a comercialização, a estocagem e o trânsito de arroz, trigo, feijão, cebola, cevada e aveia e seus derivados importados de outros países, para consumo e comercialização no Estado do Rio Grande do Sul, que não tenham sido submetidos à análise de resíduos químicos de agrotóxicos ou de princípios ativos usados, também, na industrialização dos referidos produtos.

O autor justifica que esse projeto de lei, na forma aprovada pela Assembléia Legislativa, incorre em transgressão de diversas normas jurídicas contidas em tratados internacionais celebrados pelo Brasil.

A sanção [18] da lei pelo governador do estado implicaria o descumprimento das obrigações assumidas pelo país, sem olvidar o desgaste político e a sujeição a reclamações pelos países partes do tratado internacional por descumprimento dos compromissos assumidos, além da possibilidade de ser acionado pelo sistema de solução de controvérsias, com as conseqüências decorrentes.

A aprovação do projeto conduziria a enfrentamentos nas relações com os parceiros do Mercosul, que busca negociações para "[...] o aprimoramento da união aduaneira, cujo bom termo é essencial para a estabilidade e aprofundamento do Mercosul, somado ao fato de que a infração das normas internacionais, a imposição unilateral de barreiras a exportações de grande interesse desses países, introduziria grave perturbação ao processo integracionista em curso" (MEDEIROS, 2006, p. 72).

Para o afastamento da infração normativa estadual ao tratado internacional, outra solução não teria a União, senão buscar a declaração da inconstitucionalidade da lei estadual no Poder Judiciário, suportando a incerteza do resultado da decisão, incerteza motivada pela competência concorrente da União e dos estados para legislar sobre a proteção ao meio ambiente.

Em conclusão pode-se afirmar que o Direito Internacional Público clássico, o Direito de Integração (Direito Comunitário) e o Direito Interno encontram-se em constante análise para fins de identificação acerca de qual é o ramo do Direito que abriga determinada relação jurídica internacional no âmbito do Mercosul.

Como já afirmado em linhas pretéritas, o caráter intergovernamental das decisões, dos tratados e das convenções firmados sob a égide do Mercosul implica que os atos internacionais mencionados sejam submetidos ao Direito Internacional clássico, eis que dependentes do regramento legislativo interno de cada Estado quanto a sua respectiva recepção.

Os aspectos evolutivos do conceito de soberania e o surgimento dos órgãos supranacionais no decorrer da história global que fazem surgir avanços nas relações internacionais mostram que cada Estado precisa rever os conceitos traduzidos na ordem constitucional interna.

O regime intergovernamental vigente no âmbito do Mercosul e pelo qual as decisões dos órgãos deliberativos do bloco são tomadas por consenso dos Estados membros já não mais atende aos anseios da nova era de integração e reclama um sistema mais eficaz que reconheça um sistema supranacional a ser construído com base em princípios sólidos de lealdade, solidariedade, igualdade, entre outros.

A incorporação das normas, dos tratados, das convenções internacionais e as teorias que pretendem justificar a recepção desses atos internacionais continuarão presentes no debate doutrinário e jurisprudencial, enquanto não surgirem mecanismos que possam pôr fim à questão, que já restou minimizada em comunidades que admitem um sistema jurídico supra-estatal.

Assim, a transposição dos atos internacionais (normas, tratados, convenções) ocorre segundo o ordenamento legal interno de cada Estado membro do Mercosul.

No próximo capítulo, o tema da recepção e integração dos atos internacionais é analisado com base na Constituição de cada Estado membro do Mercosul. Essa análise objetiva identificar o mecanismo de recepção e integração dos atos internacionais vigente em cada texto constitucional e os seus entraves ao fortalecimento do processo de integração.

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Sobre a autora
Beatriz Engelmann

advogada, consultora jurídica de empresa pública federal em Brasília (DF), pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, pós-graduanda em Integração Econômica e Direito Internacional Fiscal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ENGELMANN, Beatriz. Mercosul: os desafios constitucionais do processo de integração regional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1537, 16 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10398. Acesso em: 25 abr. 2024.

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