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Mercosul: os desafios constitucionais do processo de integração regional

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16/09/2007 às 00:00
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4 O PODER NORMATIVO DO MERCOSUL E O ALCANCE DOS TEXTOS CONSTITUCIONAIS QUANTO À INTEGRAÇÃO

O conteúdo abordado neste capítulo desdobra-se em dois aspectos: o primeiro cuida do conceito, das espécies e dos efeitos das normas emanadas dos órgãos do Mercosul e o segundo se debruça sobre os textos constitucionais de cada Estado membro para identificar a amplitude das relações internacionais, notadamente quanto ao interesse na integração regional.

Para efeito de identificação do interesse integrativo de cada Estado membro analisa-se qual é a amplitude do conceito de soberania inserido no texto; se o Estado admite a possibilidade de criação de organismos supranacionais; qual o sistema constitucional vigente quanto ao tema da recepção e integração dos tratados internacionais no Direito Interno; e se o texto constitucional confere tratamento distinto aos tratados de integração e às normas do Mercosul.

Com base na análise do texto constitucional brasileiro, são apresentadas propostas embasadas em pressupostos que poderão ser adequados à construção de um novo sistema constitucional favorável ao fortalecimento do processo de integração.

4.1 Das normas dos órgãos do Mercosul – conceito e espécies

As normas resultantes da atividade dos órgãos do Mercosul são classificadas, segundo a maior parte da doutrina, em normas originárias e normas derivadas.

Quanto à recepção e integração das normas no ordenamento jurídico nacional, classificam-se em normas que independem de incorporação e normas que necessitam ser incorporadas ao Direito doméstico dos Estados membros.

4.1.1 Normas originárias do Mercosul

Ao estudar o sistema normativo dos órgãos do Mercosul, Nascimento (2004, p. 48) entende que as normas originárias desse bloco correspondem a três tratados distintos e complementares: o Tratado de Assunção, o Protocolo de Ouro Preto e o Protocolo de Brasília.

A própria expressão "norma originária" enseja entendimento referente à sua origem. Pode-se dizer que essa espécie de normas corresponde a preceitos institucionais que se destinam aos Estados membros e correspondem a tratados fundacionais, que fixam diretrizes, princípios e definem a estrutura do ordenamento jurídico da organização internacional.

As normas originárias do Mercosul necessitam de incorporação ao Direito Interno dos Estados signatários, de forma solene e conforme a legislação de cada Estado membro.

4.1.2 Normas derivadas do Mercosul

A segunda espécie de normas são aquelas que derivam dos órgãos do Mercosul, assim chamadas de normas derivadas. Essas normas provêm dos órgãos decisórios e encontram fundamento de validade nas disposições contidas nos respectivos tratados constitutivos que lhes dão origem.

Nesse sentido, o Protocolo de Ouro Preto reza, em seu art. 37, que as "As decisões dos órgãos do Mercosul serão tomadas por consenso e com a presença de todos os Estados-partes". Portanto, ao disciplinar nesse sentido, o Protocolo (norma originária) confere poderes normativos de caráter derivado aos órgãos decisórios que compõem o Mercosul.

As normas derivadas do Mercosul podem ser definidas como regulamentares, que resultam das deliberações superiores dos seus órgãos institucionais, ou seja, têm a função de dar efetividade aos preceitos abstratos encartados nas normas originárias. Essas normas são denominadas, no âmbito do Mercosul, como as decisões do CMC, as resoluções do GMC e as diretrizes da CCM.

Quanto à natureza que essas normas assumem no âmbito do bloco, na doutrina há divergência, que certamente tem raiz nos seus efeitos em relação aos Estados membros.

As deliberações dos órgãos do Mercosul, segundo Luiz Olavo Baptista, citado por Dallari (2003, p. 43), constituem-se em determinações políticas que vinculam os Estados membros à promoção de adequações nos respectivos ordenamentos jurídicos internos, não se constituindo, por si só, em normas jurídicas em sentido estrito.

Acerca dessa natureza política atribuída às normas emanadas dos órgãos do Mercosul, Nascimento contesta esse entendimento e afirma que as determinações políticas que vinculam os Estados constituem normas jurídicas. E fundamenta, verbis: "Do contrário, o que seriam as normas jurídicas senão prescrições ou determinações políticas que vinculam os destinatários, obrigando-os a fazer ou deixar de fazer alguma coisa?" E finaliza no sentido de que "[...] em regra, as normas derivadas do Mercosul devem ser obrigatoriamente incorporadas nos ordenamentos jurídicos dos Estados-membros, ou seja, representam uma proposição prescritiva aos Estados" (2004, p.51).

Independentemente da natureza (política ou jurídica), é certo que os arts. 38 a 40 do Protocolo de Ouro Preto estipulam que as normas emanadas dos órgãos do Mercosul com capacidade decisória devem ser incorporadas ao ordenamento jurídico de cada Estado membro.

A incorporação das normas de direito derivado segue idêntico procedimento de incorporação ao conferido para os tratados solenes, se o seu conteúdo estiver reservado à lei ou à Constituição.

Os demais atos administrativos dos órgãos do Mercosul são internalizados segundo as especificidades da Constituição de cada Estado membro. Comumente essa incorporação é realizada por meio de atos administrativos internos (portarias, circulares, resoluções).

A incorporação pelos Estados membros das normas derivadas implica, ainda, a obrigatória adoção das demais medidas para se assegurar, em seus respectivos territórios, o cumprimento interno do seu conteúdo normativo.

4.1.3 Normas auto-reguladoras

As regras que independem de incorporação no ordenamento nacional dos Estados membros do Mercosul são denominadas de normas auto-reguladoras.

Essas normas decorrem da regulamentação das atividades internas dos órgãos que as proferem e seus efeitos estão restritos ao interior da organização.

4.2 Mercosul - o intuito integrativo segundo a expressão de cada texto constitucional

Aqui são analisados os textos constitucionais dos Estados membros do Mercosul, com o intuito de identificar a amplitude do processo de integração segundo a expressão contida em dispositivo constitucional de cada um desses Estados.

Por meio dessa análise, é possível avaliar o comportamento de cada Estado no que se refere às relações internacionais, a flexibilidade quanto à aceitação de uma ordem jurídica internacional e comunitária a partir da configuração da soberania do Estado, assim como o sistema vigente para a recepção e integração dos tratados e normas internacionais.

Isso possibilita a identificação de entraves implícitos ou explícitos que possam representar impedimento para avançar no processo de integração, a partir dos quais serão apresentados pressupostos para embasar propostas de emenda constitucional que objetive a alteração do texto constitucional.

Essa análise dá ênfase à Constituição Brasileira, que servirá de base para os pressupostos e as propostas decorrentes.

4.2.1 Do ordenamento constitucional do Brasil

A Constituição Federal, em que se manifesta a ordem constitucional, é o símbolo do pacto federativo e corresponde ao instrumento de manifestação da soberania popular. Por meio dessa ordem suprema é que são norteadas e identificadas as competências nos planos interno e internacional.

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos estados, municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem, entre os fundamentos, a soberania (art. 1º, I), o que, para alguns, representa soberania limitada.

Acerca do sistema federativo, Zimmermann (2005, p. 43) afirma que a Constituição Federal, como instrumento da soberania popular, determina a competência dos entes federativos (União, Estados, Municípios e Distrito Federal):

É a Constituição Federal, símbolo do pacto federativo e instrumento de manifestação de soberania popular, quem determina as competências da União, bem como a dos demais entes federativos. No exercício das competências estabelecidas, a União, pela própria organização e sentido do Estado federal, representa a unidade dos interesses genéricos e exclusivamente nacionais.

No regime de federação, o Estado ocupa uma espécie de dupla face, o que, segundo Zimmermann (op. cit., p. 43), "Apresenta-se internamente como uma pluralidade de entes políticos descentralizados [...] não obstante ele externamente se apresentar como se uno fosse, num sentido de força e coesão perante a comunidade internacional".

No plano internacional, o Estado (União), representado pelo seu presidente, é quem detém competência para estabelecer relações diplomáticas com os Estados estrangeiros, participar de organizações internacionais, declarar a guerra, representando, assim, a unicidade nacional no exterior.

O inciso I do art. 21 da Constituição Federal expressa a competência da União para manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais. Ao presidente da República cabe representar a União para "[...] manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos" e "[...] celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional", segundo as competências privativas estabelecidas no art. 84, incisos VII e VIII, da Constituição Federal.

Conforme o inciso III desse art. 84, ao presidente da República compete "[...] iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição", podendo, ainda, propor emenda à Constituição (art. 60, inciso II), observando-se as condições previstas nesse art. 60 para tal iniciativa legislativa.

A atuação presidencial deve ser guiada segundo os princípios estabelecidos no art. 4º da Constituição, pelo qual se rege a República Federativa do Brasil, nas suas relações internacionais, pelos princípios da independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e concessão de asilo político.

É no parágrafo único desse art. 4º que se identifica o intuito de o Brasil buscar o processo de integração regional, que parece limitado aos países da América Latina: "A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações".

A esse respeito, Bastos (1999, p. 163) não duvida que essa norma tenha conteúdo programático. No entanto, para o autor, a redação desse dispositivo poderia suscitar dúvidas, requerendo interpretação quanto à possibilidade de inclusão ou não de outros países localizados fora do âmbito da América Latina na formação do bloco, como países europeus, asiáticos e anglo-saxões.

Segundo esse autor, países como a França e Alemanha, tradicionais rivais pelas guerras extremamente mortíferas, suplantaram sentimentos de ódio, para chegar ao ponto de suprimir as suas barreiras alfandegárias, de modo que a limitação na formação do Mercosul apenas com países da América Latina poderia estar na contramão da política adotada mundialmente.

O texto constitucional, contudo, pode merecer adequação para harmonizar-se aos objetivos que a nova realidade apresenta em relação ao crescente desenvolvimento da integração.

Sobre essa adequação, os presidentes dos quatro Estados membros que instituíram o Mercosul assumiram, no Tratado de Assunção, em seu art. 1o, o compromisso de harmonizar a legislação interna de seus Estados aos objetivos então estabelecidos.

Idêntico compromisso foi assumido recentemente pela Venezuela, o quinto país a integrar o Mercosul. Por força do Protocolo de Adesão, aprovado em 16 de junho de 2006, esse Estado membro tem o prazo até 2010 para adequar a legislação interna.

O compromisso assumido no Tratado de Assunção poderia ser levado a efeito pelo Brasil por meio de emenda constitucional, cuja iniciativa caberia ao próprio presidente da República, mediante a apresentação de proposta de emenda constitucional ao Poder Legislativo.

A competência do Poder Executivo para entabular tratados internacionais também se alia à competência do Poder Legislativo, uma vez que o art. 49, inciso I, da Constituição Federal, atribui ao Congresso Nacional competência exclusiva para "[...] resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional".

O texto constitucional brasileiro não conferiu qualquer dispositivo sobre o mecanismo de incorporação dos tratados internacionais e tampouco cuida da sua hierarquia em relação à legislação interna.

A Constituição brasileira promulgada em 1988, antes da instituição do Mercosul, ocorrida em 1991, o que pode justificar a não-harmonização constitucional ao tema da integração regional.

Porém, já transcorrida mais de uma década e meia desde a instituição do bloco, verifica-se que ainda não houve evolução do texto constitucional brasileiro quanto ao intuito integrativo, nem em relação aos tratados internacionais gerais e tampouco em relação aos atos internacionais de integração, ou seja, tratados, convenções e normas firmados sob a égide do Mercosul.

A exceção fica por conta dos tratados sobre direitos humanos, de que cuidou a Emenda Constitucional nº 45/2004, que tiveram tratamento diferenciado no texto constitucional brasileiro. Esse tema é abordado adiante, em tópico específico.

Essa omissão constitucional já reclamou posicionamento do STF, que entendeu que os tratados internacionais incorporados no Direito brasileiro submetem-se ao mesmo tratamento conferido à lei ordinária, seguindo-se as regras constantes na Lei de Introdução ao Código Civil [19].

A equiparação do tratado internacional, incorporado do Direito Interno, com a lei ordinária pode representar a sua derrogação por lei posterior que estabeleça eventual conflito com esse tratado.

É inconteste que essa realidade tende a gerar insegurança nas relações jurídicas internacionais, posto que o tratado internacional, além de sujeitar-se aos procedimentos internos para a aprovação e incorporação ao Direito Interno, ainda poderá ser considerado ineficaz por lei posterior que venha a derrogar seus efeitos.

Ademais, de um lado, o Brasil exterioriza seu interesse em integrar-se com países estrangeiros (parágrafo único do art. 4º e art. 1º do Tratado de Assunção), mas, de outro, pouco faz para reforçar e alicerçar juridicamente essa integração, mantendo-se inerte na promoção das necessárias modificações no texto constitucional.

Quanto à transferência de parte de soberania interna para organismos internacionais de caráter supranacional, ela passa ao largo do texto constitucional do Brasil, o que torna impossível a criação de órgãos com tais características.

O reconhecimento de um sistema jurídico supra-estatal está distante da realidade constitucional brasileira. Sobre essa questão, Celso Bastos e Ives Gandra da Silva Martins, citados por Nascimento (2004, p. 66), entendem tímido o texto constitucional, verbis:

Por ora, é preciso frisar que o novo texto constitucional é surpreendentemente acanhado e tímido na matéria, apegando-se ao que poderíamos já considerar, ante a evolução de outros países, como um extremado nacionalismo jurídico.

Para Dallari (2003, p. 119), a ausência de maior clareza no Direito brasileiro a respeito da força cogente a ser reconhecida para as decisões de organizações internacionais foi elemento significativo, por exemplo, na construção da estrutura e dos procedimentos institucionais do Mercosul, todos de baixo poder coercitivo.

Uma tentativa de introduzir na Constituição dispositivo disciplinador da recepção das decisões de organizações internacionais decorreu da proposta apresentada, em 1994, em período de revisão constitucional, pelo então deputado federal, Nelson Jobim.

Essa proposta de emenda ao art. 4º da Constituição Federal consistia na transformação do atual parágrafo único em parágrafo terceiro e no acréscimo dos parágrafos 1º e 2º. Confira a redação da proposta:

§ 1º. As normas gerais ou comuns de Direito Internacional Público são parte integrante do ordenamento jurídico brasileiro.

§ 2º. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte vigoram na ordem interna, desde que expressamente estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.

Para Dallari (op. cit., p. 120), a rejeição dessa proposta de emenda constitucional e a conclusão do processo revisional em 1994 provavelmente contribuíram para que o Protocolo de Ouro Preto, assinado em 17 de dezembro desse ano pelo Brasil e demais Estados integrantes do Mercosul, viesse a prever, para a organização, um sistema normativo baseado em decisões de natureza intergovernamental e com eficácia vinculada à respectiva formalização no Direito Interno de cada Estado membro, em evidente processo de normatização indireta.

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A realidade constitucional brasileira aponta que a solução foi postergada para o futuro, sobretudo pelas perspectivas que se abrem para a ampliação e o fortalecimento do Mercosul com base na adesão de países da América Latina e no estabelecimento de vínculos com outras organizações internacionais, como a CE, o Nafta, entre outras.

O surgimento do Mercosul poderia representar a causa para a implementação de mudanças constitucionais, que não aproveitariam apenas ao bloco, mas se estenderiam ao conjunto das relações internacionais firmadas com terceiros países e organizações internacionais.

Outro aspecto lembrado por Dallari (op. cit., p. 121), inerente ao tema da recepção das decisões oriundas de organizações internacionais, diz respeito à validade e efetividade, no território brasileiro, de julgados originários de tribunais internacionais.

Esses tribunais estruturam-se na forma de organização internacional, como a Corte Internacional de Justiça, ou, então, de instância de organização internacional, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que integra a Organização dos Estados Americanos (OEA). Portanto, esses julgados têm a natureza jurídica de decisão de organização de Direito Internacional Público.

Com a emergência de tribunais internacionais especializados, aos quais o Brasil se vincula, como o Tribunal Internacional do Direito do Mar, acentua-se a necessidade de que não pairem dúvidas quanto ao acatamento das respectivas deliberações.

A fragilidade da regra brasileira em relação à ordem internacional que cuida da recepção e integração dos tratados internacionais ao Direito Interno justifica uma sistematização ordenada e harmonizada que propicie entendimento claro e abrangente sobre a matéria.

Para o tratamento adequado, no texto constitucional, do tema relacionado à recepção dos tratados internacionais, Dallari (op. cit., p. 124) afirma que é importante que não se deixe de considerar, de um lado, a qualidade de compromisso formal, perante a comunidade internacional, que a norma convencional encerra e, de outro, a necessidade evidente de que sejam respeitados os parâmetros sistêmicos estabelecidos no arcabouço jurídico do Estado.

O tratado é um instrumento de natureza contratual e a constituição do vínculo obrigacional deve acarretar a necessária observância pelo Estado contratante dos efeitos nele estatuídos, conforme os princípios que regem o Direito Internacional Público. Para Dallari (op. cit., p. 124), "[...] essa assertiva não tem o propósito, como muitas vezes se alega, de colocar em xeque o postulado da soberania do Estado".

O tratado representa o resultado da manifestação voluntária do Estado e submete-se à aferição dos órgãos internos, segundo estatuído constitucionalmente. Conclui o autor que a necessidade de observância das regras resultantes de tratados internacionais não deriva, portanto, de eventual e autoconferida supremacia do Direito Internacional Público, mas é resultante lógica do pressuposto da efetividade das decisões adotadas soberanamente – e nos termos da correspondente ordem jurídica – pelo Estado e por suas instituições.

A preocupação com a recepção e integração do tratado ao Direito Interno é unânime na doutrina e na jurisprudência, que não pode prescindir de normatização no âmbito do sistema jurídico e, mais particularmente, da ordem constitucional brasileira.

Um sistema claro a respeito da recepção e integração do tratado ao Direito Interno afastaria questões que demandariam interpretação sobre qual seria a prevalência da regra, em caso de conflito entre regras do Direito Internacional e do Direito Interno.

Na fase atual de evolução das relações internacionais, o Estado continua a ser o instrumento indispensável de formação e execução das normas convencionais. Como tal, Vicente Marotta Rangel, citado por Dallari (op. cit., p. 125), acentua, verbis:

Cabe-lhe dispor sobre a maneira pela qual elabora os tratados, decidir se os considera parte integrante do ordenamento interno e determinar soluções de validade dos tratados senão também sobre as garantias técnicas e processuais que lhes assegure a eficácia na ordem interna.

Partindo dessa premissa e pela relevância e amplitude no plano interno e externo do tema da recepção dos tratados, a ser disciplinado por normas de natureza constitucional, o mecanismo adequado para levar a efeito a institucionalização de um sistema integrador dos tratados internacionais ao Direito brasileiro não pode ser outro que não a emenda à Constituição Federal, conforme defende Dallari (op. cit., p.125).

A desobstrução da ordem jurídica interna com a inserção de regras rigorosas a respeito do tema da integração dos tratados contribuiria para afastar o quadro antagônico em que se encontra o Brasil.

Antagonismo explícito, de um lado, pelo interesse de integrar-se com países da América Latina (parágrafo único do art. 4º da Constituição Federal) e, de outro, por não fixar constitucionalmente as regras, isto é, fixar a sistemática de integração ao Direito Interno dos tratados internacionais firmados como resultado do interesse integrativo.

Delineadas as problemáticas do texto constitucional brasileiro, são abordadas, no próximo tópico, as questões que possam propiciar o afastamento dos entraves apontados.

4.2.2 Das propostas de alteração da Constituição do Brasil

As propostas adiante alinhadas fundamentam-se no Direito Internacional Público clássico, Direito de Integração (Comunitário) e Direito Interno e pretendem abordar os entraves do ordenamento constitucional brasileiro que impedem o fortalecimento do processo de integração.

Para Dallari (2003, p.126), um sistema integrado de normas de natureza constitucional deve estar respaldado em pressupostos de feição substantiva, que podem reconhecer no sistema proposto dois pressupostos básicos, verbis:

a) o reconhecimento da integração internacional dos Estados, inclusive sob o aspecto da consolidação de um conjunto expressivo de normas de Direito Internacional Público, com um processo irreversível e de intensidade crescente; b) a necessidade de que esse processo de integração internacional desenvolva-se com fundamento na vontade soberana do povo de cada Estado, manifestada por via de mecanismos democráticos institucionalmente consagrados, a fim de que possa redundar na efetiva promoção dos Direitos Humanos e na elevação da qualidade de vida da população do planeta.

Esses pressupostos, segundo o autor, em que se estruturaria o novo sistema integrador dos tratados internacionais, levariam às seguintes diretrizes: a) os tratados, diferentemente do que ocorre atualmente, devem contar com reconhecimento de maior relevância no âmbito do quadro normativo nacional vigente e às suas disposições deve ser garantida a plena efetividade; b) a vinculação do Estado brasileiro a tratado deve estar respaldada por um grau de adesão social – usualmente aferido por meio de deliberação parlamentar – mais elevado do que aquele exigido atualmente.

Partindo da idéia de que os pressupostos e as diretrizes tenham sido implementadas, Dallari (op. cit., p. 126) apresenta as características que devem ser contempladas na proposta do novo texto constitucional, verbis:

a) previsão explícita da incorporação do tratado internacional ao ordenamento jurídico nacional; b) reconhecimento de status diferenciado para o tratado no quadro das normas vigentes no Estado, atribuindo-se-lhe posição hierárquica superior à das leis complementares e ordinárias; c) possibilidade de apreciação da constitucionalidade de tratado pelo Supremo Tribunal Federal previamente à deliberação do Congresso Nacional; d) previsão da exigência de promulgação de emenda constitucional aprovada pelo Congresso Nacional previamente à aprovação legislativa de tratado nos casos em que tal condição for assinalada pelo Supremo Tribunal Federal; e) previsão de quórum qualificado de três quintos para a aprovação de tratado pelo Congresso Nacional; f) previsão da exigência de aprovação prévia do Congresso Nacional relativamente ao ato de denúncia de tratado; g) reconhecimento da vigência no Brasil das normas emanadas de organizações internacionais de que o País faça parte, desde que expressamente previsto nos respectivos tratados constitutivos.

O detalhamento para a criação de um sistema de recepção e integração dos tratados internacionais, segundo Dallari, fundamenta-se na complexidade da matéria, a qual impede que o mero conjunto de normas de direito positivo venha solucionar a convivência entre tratado internacional e Direito Interno do Estado.

Com fundamento nos pressupostos, nas diretrizes e nas características, citados por Dallari em linhas pretéritas surgem múltiplas alternativas de sistematização constitucional – recepção e integração dos tratados internacionais ao Direito brasileiro, pelo qual se possa suprir a lacuna normativa existente e superar os dilemas encontrados – para o equacionamento das problemáticas apontadas pela jurisprudência e doutrina pátrias.

Esclarece Dallari (op. cit., p. 129) que a concepção desse sistema, em seu conjunto, tem inspiração nas formulações adotadas pelas Constituições ibéricas da década de 1970 sobre o assunto, produzidas à luz do processo de redemocratização vivido em Portugal e na Espanha e que se revelaram dotadas de mecanismos para viabilizar a integração dos citados Estados à CE.

Como fontes de referência mais recentes, o conteúdo da proposta teria sido subsidiada com base nas reformas introduzidas, na década de 1990, nas Constituições dos países que integram essa comunidade, com o intuito de adequá-las às diretivas inseridas no Tratado sobre a União Européia [20].

Da análise do art. 8º, nº 1, 2 e 3, da Constituição portuguesa de 1976 e do art. 96, nº 1, da Constituição espanhola de 1978, comunga-se do fato de que os citados textos constitucionais exerceram influência na proposta de sistematização de recepção dos tratados apresentada pelo autor, que poderá nortear o novo ordenamento normativo constitucional brasileiro, para suprir as lacunas existentes e torná-lo adequado ao processo integrativo.

O conteúdo da proposta que enfatiza os pressupostos, as diretrizes e as características da sistematização poderá levar a múltiplas alternativas de redação do novo texto constitucional, conforme advoga o autor.

Ao se comungar da detalhada proposta de sistematização do ordenamento constitucional, que serve para suprir a lacuna normativa (entrave) existente e superar os dilemas da recepção e integração dos tratados internacionais, no âmbito da jurisprudência e mesmo da doutrina, não se pode deixar de considerar, como primeira reflexão, o conteúdo das citadas características da proposta – alíneas c e d – e, como segunda, o conteúdo da alínea f.

Quanto ao conteúdo das alíneas c e d, entende-se que a submissão prévia ao STF dos tratados internacionais para verificação de sua constitucionalidade imporia delongas ao processo de incorporação no Direito Interno.

Ademais, parece afigurar-se dispensável esse procedimento prévio, sobretudo em razão da competência conferida constitucionalmente a cada um dos três poderes da República – princípio da repartição dos poderes.

Nesse sentido, cabe ao Poder Legislativo (art. 49, I) a atribuição de resolver tratados internacionais celebrados nos termos do art. 84, VIII, do atual texto constitucional brasileiro.

Por fim, mantidas as características contidas nas alíneas c e d para fins de proposta do novo sistema constitucional, criar-se-ia uma instância entre os poderes da República, o que não se coaduna com o princípio constitucional da independência dos poderes.

Sob outro prisma, a prévia aprovação para a denúncia do tratado, conforme a característica inserida na alínea f, antes transcrita, poderá impedir a denúncia do tratado no momento em que ele for descumprido por terceiros países ou organizações internacionais.

A aprovação prévia pelo Poder Legislativo, para que o tratado seja denunciado pelo Poder Executivo – presidente da República –, poderá demandar processo lento, cuja situação poderá trazer prejuízos ao Brasil, por não poder se valer da denúncia sem a prévia aprovação congressional.

Acentua-se, ainda, a desnecessária autorização prévia para a denúncia, posto que, se, para a celebração do tratado não se impõe essa exigência, também não se exigiria para a denúncia.

Essa reflexão e os demais aspectos (pressupostos, diretrizes e características) para um novo sistema normativo constitucional – recepção e incorporação dos tratados internacionais –, por certo, poderão corresponder a alternativas para superar o entrave (lacuna) constitucional respeitante à recepção e integração dos tratados internacionais no Direito Interno.

Contudo, essa desobstrução do ordenamento constitucional brasileiro sobre esse aspecto poderia solucionar o impasse quanto à recepção e integração dos tratados internacionais, mas não parece suficiente para resolver as demais problemáticas que envolvem o processo de integração.

É necessária a inclusão de dispositivo constitucional que reconheça a existência de ordenamento jurídico comunitário autônomo e vincule o Estado de forma material, e não apenas formal, ou seja, não como mero cumpridor das normas formais, mas sim como autor e responsável pela construção de um ordenamento jurídico autônomo de caráter comunitário que permitirá a reestruturação institucional no âmbito do Mercosul.

Acrescente-se também à proposta de inserção no texto constitucional de dispositivo que reconheça a existência desse sistema jurídico comunitário e autônomo um dispositivo constitucional material de compromisso quanto à lealdade na respectiva construção do sistema jurídico supranacional.

Contudo, para que a aprovação dessa proposta reste frutífera, é indispensável que medidas prévias sejam desencadeadas no interior do Estado, de modo que seja reservado ao Mercosul a importância como bloco econômico, semeando-se os ganhos que a sua consolidação trará para toda a sociedade e ao cidadão.

Para isso, estratégias de divulgação do Mercosul devem merecer especial destaque na mídia para que a sociedade tenha o real conhecimento dos objetivos, dos projetos, dos êxitos alcançados desde a sua criação e das expectativas para o futuro. É preciso, ainda, demonstrar os ganhos que o fortalecimento do bloco poderá proporcionar à sociedade e ao cidadão.

Como meio de divulgação e formação de cultura, sugere-se também a inserção de conteúdo sobre o Mercosul nos currículos escolares, de maneira que se alcancem, no interior de cada Estado, os meios para uma caminhada segura quanto ao futuro do bloco.

Considerando essa base sólida de aculturação, o legislador certamente terá interesse em promover alterações no texto constitucional em torno de um novo contexto de vinculação material do Estado para a construção de uma ordem jurídica comunitária que se sobreponha ao Direito nacional.

4.2.3 Do ordenamento constitucional do Uruguai

A Constituição da República do Uruguai contém dispositivos que dificultam os avanços na implementação do processo de integração do Mercosul, cujo texto parece refletir desinteresse na conformação de um sistema comunitário.

A Carta Constitucional do Uruguai, que data de 1967, passou por reformas, mas estas não foram suficientes para tornar o seu texto favorável ao intuito integrativo. A inserção desse país na nova realidade internacional restou postergada no texto constitucional.

Quanto à soberania, o art. 4º da Constituição uruguaia, implicitamente, confere-lhe conceito absoluto, verbis: "Artículo 4º La soberania en toda su prenitude existe radicalmente en la Nación, a la que compete el derecho exclusivo de establecer seus leyes, del modo que más adelante se expresará".

E, por todo o texto constitucional uruguaio, não se antevê qualquer hipótese de relativização do conceito de soberania, não se cogitando da autorização para a criação de organizações internacionais de caráter supranacional.

Em relação ao processo de integração, o texto constitucional uruguaio sinaliza com o intuito integrativo com os Estados latino-americanos, estabelecendo, entretanto, prioridades para a sua efetivação, como a que se refere aos produtos e às matérias-primas.

Quanto aos tratados internacionais, a Constituição uruguaia estabelece a forma de arbitragem ou outro meio pacífico de solução ante o surgimento de eventual litígio que deles decorrerem, conforme o art. 6º, verbis:

Artículo 6º En los tratados internacionales que celebre la República propondrá la cláusula de que todas las diferencias que surjan entre las partes contratantes, serán decididas por el arbitrage u otros médios pacíficos. La República procurará la integración social y econômica de los Estados Latinoamericanos, especialmente en lo que se refiere común de sus productos y matérias primas. Asi mismo, proponderá a la efectiva compementación de sus servicios públicos.

A competência para celebrar tratados internacionais está retratada no art. 168 da Carta Constitucional do país, a qual cabe ao presidente da República, dependendo da ratificação e aprovação pelo Poder Legislativo para efeito de incorporação no ordenamento nacional.

Artículo 168. Al Presidente de la República, actuando com ele Ministros respectivos, e com ele Consejo de Minstros, corresponde:

[...] 20) Concluir y suscribir tratados, necesitando para ratificarlos la aprobación del Poder Legislativo.

Não há dispositivo constitucional quanto à incorporação das normas emanadas dos órgãos internacionais ou de integração.

Nesse contexto, o entrave constitucional se estabelece, considerando a carência no texto da possibilidade de delegação de parte da soberania a instituições supranacionais, ainda que esta delegação se restrinja ao âmbito do bloco, assim como da previsão quanto à hierarquia a ser ocupada pelos tratados internacionais que se incorporarem ao Direito Interno do Uruguai.

4.2.4 Do ordenamento constitucional da Argentina

A Carta Constitucional da Argentina atualmente em vigor contempla a reforma constitucional realizada em 1994, considerada a mais ampla de todos os tempos.

Nessa reforma, foram inseridos temas que conferem competências ao Congresso Nacional relacionadas ao processo de integração, à disciplina do processo de aprovação dos tratados, à hierarquia dos tratados e das normas deles decorrentes e à possibilidade de criação de instituições supranacionais.

O item 22, do art. 75, da Constituição argentina diz o seguinte, verbis:

Art. 75. Corresponde al Congresso:

[...] 22 – aprobar o desechar tratados concluídos com las demás naciones y com las organizaciones internacionales y los concordatos com la Santa Sede. Los tratados y concordatos tinen jerarquía superior a las leyes.

Quanto ao processo de integração, o texto constitucional argentino tratou desse processo em dispositivo específico, que trata da possibilidade de delegação de poderes supranacionais a organizações internacionais de caráter supranacional. Entre as atribuições do Congresso Nacional do país, encontra-se inserida essa competência, desde que em condições de reciprocidade e igualdade, a saber:

Art. 75. Corresponde al Congresso:

[...] 24 – Aprobar tratados de integración que deleguem competências y jurisdicción a organizaciones supraestatales em condiciones de reciprocidad e igualdad, y que respeten el orden democrático y los derechos humanos. Lãs normas dictadas em su consecuencia tienen jerarquía superior a las leys.

Esse dispositivo é reservado especificamente aos tratados de integração, que, por assim dizer, autorizam a transferência de soberania a instituições supranacionais. Todavia, o seu teor somente poderá ter aplicação quando os demais parceiros do Mercosul adequarem os seus textos constitucionais, de modo a se criarem os organismos internacionais de caráter supranacional.

Outra especificidade é que ao texto constitucional argentino foram conferidas as condições que devem nortear esse tipo de tratado de integração, mediante a observância dos princípios da reciprocidade, da igualdade e, sobretudo, da democracia, cujas características são a mola propulsora do processo de integração.

O conteúdo do item 24 do art. 75 somente terá efeito prático quando todos os países do Mercosul conferirem seus textos constitucionais permissivo para a criação de instituições supranacionais, sucedendo-se a criação por meio de tratado de integração, mediante a observância dos princípios da igualdade e reciprocidade.

Dessa forma, a Carta Constitucional argentina favorece o processo de integração, constituindo-se em facilitador desse processo.

4.2.5 Do ordenamento constitucional do Paraguai

A Constituição paraguaia vigente, promulgada em 1992, ou seja, um ano após a assinatura do Tratado de Assunção, em março de 1991, na capital do país, possui tendências mais acentuadas ao favorecimento do processo de integração, pois contempla novas formas de atuação do Mercosul, ao autorizar expressamente a criação de instituições de caráter supranacional.

O art. 143 do mandamento constitucional paraguaio refere-se às relações internacionais, acenando que "La República del Paraguay, em sus relaciones internacionales, acepta el derecho internacional".

O texto constitucional do Paraguai estipula, em vários dos seus dispositivos, o mecanismo de incorporação e a hierarquia ocupada pelos tratados internacionais no âmbito do Direito Interno, de sorte a registrar enfaticamente, em seu capítulo I e II – neste com especificidade quanto às relações internacionais –, o regramento do tema retratado em sua lei maior, a Constituição.

Quanto à ordem jurídica supranacional, o texto constitucional paraguaio autoriza a delegação de soberania a organizações supranacionais, ao expressar em seu art. 145, verbis:

La República del Paraguay, en condiciones de igualdad con otros Estados, admite un orden jurídico supranacional que garantice la vigência de los derechos humanos, de la paz, de la justicia, de la cooperación y del desarollo, em lo político, econômico, social y cultural'' e prossegue sinalizando que "Dichas decisiones sólo podrán adoptarse por mayoria absoluta de cada Cámara del Congreso.

Esses aspectos induzem ao entendimento de que a Carta Constitucional do Paraguai retratou o intuito integrativo, quer no âmbito internacional, quer no âmbito regional, porque estabeleceu em capítulos específicos matéria inerente, autorizando a delegação de poderes a instituições de caráter supranacional e a sistemática de incorporação dos tratados internacionais e a sua hierarquia ao Direito Interno. Isso constitui aspecto facilitador ao processo de integração.

4.3 Intergovernamentalidade e supranacionalidade: os textos constitucionais

O Tratado de Assunção, que constituiu o Mercosul, complementado pelo Protocolo de Ouro Preto, foi concebido com base no modelo intergovernamental, como único modelo passível de ser adotado para o bloco.

Na ocasião da assinatura do Tratado de Assunção, as Cartas Constitucionais dos Estados membros que formaram o Mercosul não contavam com dispositivos que permitissem a opção pelo modelo supranacional, haja vista que, em nenhum dos ordenamentos internos, havia autorização para a delegação de poderes a instituições de caráter supra-estatal.

O Tratado de Assunção, em seu Capítulo I, estabelece os propósitos, princípios e instrumentos do Mercosul. O art. 1º sinaliza: "O compromisso dos Estados Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento de integração", mas não menciona, de forma expressa, qual seria essa conformação do ordenamento jurídico interno de cada Estado que necessitaria ser levada a efeito.

O Protocolo de Ouro Preto, adicional ao Tratado de Assunção, sobre a estrutura institucional do Mercosul manteve, em seu art. 2º, a estrutura orgânica com capacidade decisória, originariamente composta pelo CMC, GMC e acrescinta pela CCM, e estabelece que esses órgãos decisórios devem possuir natureza intergovernamental.

Para Luiz Olavo Babtista, citado por Accioly (2003, p. 167), o caráter transitório do tratado que instituiu o Mercosul demarca a passagem do regime existente para o do mercado comum, considerando que, ao se consolidarem os objetivos deste último, os atos constitutivos então por ele emanados devem ser substituídos por aqueles exarados na origem da constituição do bloco.

E continua: "Essa precariedade é marcada pela expressão de tratado para a constituição e não de constituição de um Mercado Comum e pelo fato de que ao se cumprirem as etapas do Programa de Liberação Comercial, este se esgota" (ACCIOLY, op. cit., p. 167, grifos da autora).

Por esse entendimento, poder-se-ia deduzir que o Tratado de Assunção, que se encontra atualmente na fase de união aduaneira incompleta, continua a ter aspectos fáticos de transitoriedade, por não terem sido esgotadas todas as etapas que levam ao mercado comum.

Quanto aos aspectos que envolvem os textos constitucionais dos Estados membros e tomando-se como paradigma o brasileiro, Gussi (2006, p. 127) comenta que, após período de ditadura, o texto foi construído com base em compromissos políticos. Várias pressões políticas contribuíram para os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, de modo que o resultado retrata os respectivos interesses.

Critica esse autor que tal construção pareceu representar um sinal de falta de habilidade política, que compromete a governabilidade, embora alguns defendam-na como exercício democrático.

Apontando como paradigma o exemplo europeu, ainda afirma que os textos constitucionais dos Estados membros não foram capazes "[...] de fornecerem bases jurídicas para um consenso interno nos membros do bloco. Longe estariam, portanto, de contribuir com a consolidação de um consenso mais amplo em nível supranacional" (GUSSI, op. cit., p. 126).

Nesse sentido, pode-se reforçar o entendimento de que os entraves enfrentados ainda nos dias atuais estão presentes na própria ordem constitucional dos Estados que integram o Mercosul, sem, contudo, afastar-se a idéia de que tem fundo político a ausência de avanços nos textos, que permitam maior abertura ao mercado globalizado.

Após a assinatura do Tratado de Assunção, em 1991, os textos constitucionais do Paraguai e da Argentina, por ocasião de suas revisões, ocorridas em 1992 e 1994, respectivamente, autorizaram a delegação de competência a organismos supranacionais, o que viabiliza a integração no campo jurídico e admite a supremacia da ordem supranacional sobre a nacional.

Sobre essa delegação, ambas as Constituições inserem em seus textos condicionantes de reciprocidade em relação aos demais Estados.

Sobre o assunto, confira, como exemplo, o texto constitucional paraguaio:

Artículo 145. DEL ORDEN JURÍDICO SUPRANACIONAL

La República del Paraguay, en condiciones de igualdad con otros Estados, admite un orden jurídico supranacional que garantice la vigencia de los derechos humanos, de la paz, de la justicia, de la cooperación y del desarollo, em lo político, económico, social y cultural.

Dichas decisiones solo podrán adoptarse por mayoría absoluta de cada Cámara del Congreso.

O tema da delegação de poderes a organismos internacionais, de âmbito geral ou regional, sequer é tocado nos textos constitucionais do Brasil e do Uruguai, permanecendo omissos até os dias atuais quanto à possibilidade de criação de órgãos de caráter supranacional. Isso demonstra que esses países se mostram acanhados e reticentes sobre o tema da cessão de parte da soberania interna, não obstante a proposta [21] de alteração do art. 4º da Constituição Federal do Brasil, encaminhada no âmbito do Poder Legislativo em 1994, sem, contudo, sofrer aprovação.

A respeito do critério intergovernamental adotado pelo Mercosul no Protocolo de Ouro Preto, Jorge Perez Otermin, citado por Accioly (op. cit., p. 168), escreve:

Lo cierto es que el critério que ha imperado, pero por cierto no unánimente deseado, há sido y lo sigue siendo – incluso en el Protocolo de Ouro Preto –, el negarle al proceso de integración el menor viso de supranacionalidad. Esta posición ha sido sostenida principalmente por Brasil, argumentando em impedimentos de orden constitucional.

Assim, a ausência de permissivo constitucional para a criação de instituições supranacionais no âmbito do bloco afigura-se como entrave jurídico ao processo de integração, cuja transposição precede a implementação de ações conjuntas entre os governantes dos Estados. A superação desses entraves contará com estratégias conjuntas entre as diferentes esferas dos Poderes e a ampla discussão da sociedade, de modo a propiciar a implementação de ordenamento legal que dê suporte à criação do modelo de estrutura institucional que melhor se amolde à realidade do Mercosul.

Para tanto, os traços da CE representam apenas um dos caminhos a serem seguidos para a reconstrução da estrutura institucional, mas não são os únicos, pois as peculiaridades e assimetrias em torno dos países do Mercosul – que conta com grandes perspectivas de ampliação com a adesão de outros países da América Latina – poderão requerer modelo próprio que atenda aos intentos dos seus integrantes.

4.4 Tribunal supranacional – perspectivas: uma abordagem segundo o texto constitucional brasileiro

A Constituição brasileira, em seu art. 5º, inc. XXXV, expressa que "[...] a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito" e, no seu art. 92, enumera os órgãos que compõem o Poder Judiciário.

Esses dispositivos constitucionais, segundo a maioria dos doutrinadores, constituem vedação à criação de instituições de caráter supranacional no âmbito do bloco, notadamente de um Tribunal de Justiça supranacional, pois haveria a necessidade de o texto constitucional brasileiro prever a existência de um órgão judicial supranacional com predomínio sobre a estrutura do Poder Judiciário dos Estados membros do Mercosul.

Nessa linha de entendimento são as preliminares de Luiz Olavo Baptista, citado por Accioly (op. cit, p. 169):

Do ponto de vista jurídico, parece haver obstáculos, ao menos do ponto de vista da Constituição brasileira.

Será preciso que ela admita a existência de um órgão judicial supranacional, que predomine sobre a estrutura do Poder Judiciário.

Nós não podemos de modo nenhum ignorar a nossa realidade sociológica. E nesta, o corporativismo impera. Na medida em que se disser que sobre as Cortes Supremas dos quatro países se erguerá uma outra Corte, que terá o poder de revogar as decisões dessas, imediatamente veremos o corporativismo judicial pôr-se em ação e reagir ante a ameaça de um poder mais alto. Será preciso, então, que o processo de educação que nascerá através da prática da Corte Arbitral (...) e dos mecanismos de integração em geral, venha a demonstrar a necessidade e a utilidade de vir a se constituir a Justiça do Mercosul, que não será superior à Justiça de cada um dos países, se não naquelas matérias da sua exclusiva competência, isto é, verificar a interpretação e a atuação que se dá a normas comunitárias.

O autor tem razão na premissa adotada, mas não nos seus fundamentos, pois a proposta quanto à criação de um Tribunal de Justiça supranacional não necessariamente levará a uma reação caracterizada pelo corporativismo judicial.

A composição da estrutura funcional judicante de um Tribunal de Justiça supranacional poderia ser integrada por magistrados dos órgãos do Poder Judiciário de cada Estado membro, os quais se poderiam desincumbir melhor de seu mister, pela sua preparação técnica para o exercício judicante numa corte internacional. A composição da estrutura do tribunal poderia adotar como paradigma o exemplo muito bem-sucedido da CE.

Segundo Accioly (op. cit., p. 168), os principais entraves para a integração estão contidos no art. 5º, XXXV, e no art. 92 da Constituição Federal brasileira. Consoante aquele dispositivo, "[...] a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito", enquanto este estabelece, de forma taxativa, quais são os órgãos que compõem o Poder Judiciário, não prevendo qualquer possibilidade de instituição de poder supranacional.

Para a ministra e atual presidente do STF, Elen Gracie Northfleet, citada por Accioly (op. cit., p. 168), os arts. 5º, inc. XXXV, e 92 da Constituição brasileira não configuram impedimento à criação e regular funcionamento de um tribunal supranacional, verbis:

Em primeiro lugar porque, a alguns desses organismos já existentes o Brasil somente empresta reconhecimento, como também concorre ativamente para a sua formação, como é o caso do Tribunal Internacional de Haia, de cuja composição participa o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Francisco Rezek, e o Tribunal dos Direitos Humanos da Costa Rica, onde tem assento o prof. Cançado Trindade, da UnB. Em segundo lugar, porque a existência dessas cortes não afasta nem impede o acesso aos tribunais nacionais. E, por último, porque a existência de um tribunal supranacional não implica qualquer tipo de subordinação da estrutura judiciária nacional. Aos juízes nacionais [assim é no sistema da Comunidade Européia, exemplo bem-sucedido que deverá servir-nos de modelo] compete a aplicação do direito derivado dos tratados, sendo-lhes facultada a consulta, sob a forma de reenvio, ao órgão comunitário, que tenha por missão a interpretação do Tratado, com visão mais ampla e desligada de vises nacionais, de modo a garantir que se atinja o objetivo inscrito entre os princípios fundamentais da Constituição Federal: "A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

As razões citadas não justificam a ausência de impedimento constitucional para a criação de instituições supranacionais, embora das afirmativas da ministra se deduza, com muita propriedade, a realidade do Poder Judiciário brasileiro diante de órgãos comunitários, assim exemplificados como tribunais supranacionais.

Diante da polêmica, a inserção, no texto constitucional brasileiro, de previsão que conduza à induvidosa interpretação quanto à possibilidade de criação de instituições supranacionais no bloco permitirá que os Estados membros promovam a rediscussão da estrutura institucional criada pelo Protocolo de Ouro Preto [22].

Isso consistiria na tentativa de buscar a efetiva implantação das quatro liberdades (livre circulação de bens, de serviços, de pessoas e de capitais) que caracterizam o Mercosul, assim previstas no Tratado de Assunção, de modo a se harmonizar e adequar a legislação aos objetivos do bloco.

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Sobre a autora
Beatriz Engelmann

advogada, consultora jurídica de empresa pública federal em Brasília (DF), pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, pós-graduanda em Integração Econômica e Direito Internacional Fiscal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ENGELMANN, Beatriz. Mercosul: os desafios constitucionais do processo de integração regional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1537, 16 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10398. Acesso em: 24 abr. 2024.

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