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Mercosul: os desafios constitucionais do processo de integração regional

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16/09/2007 às 00:00
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CONCLUSÃO

Os relatos históricos que justificam a era da globalização retroagem há séculos, mas o fenômeno ganha acentuada dimensão a partir dos anos 80, quando surgem os blocos econômicos, difundidos pela chamada integração regional.

No caso da integração do cone Sul, os primeiros passos para a integração regional começam a ser trilhados em 1986, com a assinatura entre o Brasil e a Argentina do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento para a eliminação de barreiras alfandegárias. Por meio desse instrumento, ambos os países estabelecem um período de transição de dez anos para a criação de um espaço econômico comum entre os países.

Sobrevém posteriormente, em 1991, o Tratado de Assunção, firmado entre o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, que cria o Mercosul, com objetivo voltado à construção de um mercado comum. Os conflitos que marcam as divergências entre o Brasil e Argentina ao longo da história não impedem a formação desse bloco.

Suscita-se que a escolha do modelo intergovernamental pelos integrantes do bloco tenha sido fortemente influenciada pelo regime da ditadura militar, que, por certo, ainda deixara resquícios nos governos por ocasião da criação do bloco. O regime democrático é reforçado pelo pacto firmado pelos Estados membros como condição de inclusão ou manutenção do Estado no bloco.

A criação do Mercosul representa uma resposta ao crescente avanço dos processos de integração, surgindo após os fracassos da Alalc e da Aladi como instrumento de formação de um mercado comum regional. O Tratado de Assunção contou com previsão expressa no sentido de permitir a ampliação do bloco com a adesão dos países latino-americanos, o que propiciou a recente adesão da Venezuela como membro pleno.

O nível de integração pretendido pelos Estados membros por ocasião da criação do bloco corresponde às etapas que precisam ser ultrapassadas, iniciando-se com a zona de livre-comércio, seguindo-se com a formação de uma união aduaneira até a consolidação do mercado comum.

Pela razão de não terem sido esgotadas todas as etapas que levam ao mercado comum, cuja fase atual é de uma união aduaneira incompleta, pode-se concluir que o Tratado de Assunção continua a ter aspectos fáticos de transitoriedade.

Embora o intento integrativo subsuma-se na formação de um Mercado Comum, conforme, aliás, a própria sigla do bloco assim sugere: – MERCOSUL – Mercado Comum do Sul, ainda restam degraus a serem galgados para a consolidação do mercado, eis que os problemas da configuração da TEC sugerem a imperfeição da união aduaneira, em cuja fase atual encontra-se o bloco.

O retardamento da consolidação das etapas do processo de integração pode implicar retrocessos na integração e fragilizar o Mercosul como bloco econômico. Essa demora expõe os parceiros, de forma individualizada, a pressões externas advindas de países ou outros blocos comerciais, que os instigam a com eles firmarem acordos bilaterais ou multilaterais, o que pode implicar a saída de parceiros do bloco, colocando em risco a sobrevivência do Mercosul.

Por outro lado, a cada passo que se avança rumo à integração, os Estados membros passam a ceder, de forma progressiva, parte da soberania interna. A consolidação da união aduaneira, por exemplo, requer maior cessão de soberania do que a zona de livre-comércio, sem o que não se alcança o mercado comum.

Por outro lado, a UE serviu de paradigma para a criação do Mercosul, mas há diferenças entre os países que integram os diferentes blocos, como é o caso do Brasil, que representa em torno de 80% do total da população do bloco por ocasião da sua constituição, o que pode ter representado dificuldades ou mesmo impossibilidade na criação de instituições supranacionais semelhantes à da UE.

Partindo da idéia de que a integração regional não é um processo comandado pelo mercado, mas pela política para criar um mercado, pode-se concluir que os avanços podem estar embasados em políticas, sejam elas de natureza econômica, social, jurídica ou outra.

O alicerce para a condução das políticas está no Direito, assim como o Direito está no ordenamento jurídico de cada Estado membro ou no próprio ordenamento jurídico comunitário.

A ausência do reconhecimento de um sistema jurídico comunitário no âmbito do Mercosul implica que as normas, os tratados e as convenções internacionais firmados sob a égide do bloco submetam-se ao mesmo mecanismo de incorporação adotado para os tratados internacionais gerais, subordinados ao Direito Internacional Público clássico, e incorporem-se ao ordenamento jurídico interno segundo a legislação de cada Estado. Isso configura entrave ao processo de integração.

A revisão do conceito de soberania do Estado revela-se indispensável diante da evolução das relações internacionais e da intensificação do surgimento dos blocos regionais, que reclamam a construção de estrutura organizacional apta a direcionar a comunidade segundo as normas de Direito Comunitário.

O sistema vigente no âmbito do Mercosul não mais atende aos anseios da nova era de integração, posto que não promove o Direito Comunitário, dificulta a harmonização da legislação constitucional e infraconstitucional, postergando avanços na integração.

É necessário desobstruir o ordenamento constitucional, afastando-se os entraves existentes e promovendo-se a construção do ordenamento jurídico comunitário, que deve ser edificado com base no texto constitucional, vinculando o Estado materialmente a partir de compromissos sólidos de lealdade, solidariedade, reciprocidade, entre outros.

Assim, restaria ultrapassado qualquer debate quanto à celeuma que envolve a recepção e integração dos tratados internacionais no âmbito interno, fazendo que perca importância e torne inócuo qualquer debate em torno da dicotomia das teorias dualista e monista, criadas e desenvolvidas para justificar o fenômeno da recepção e integração dos tratados internacionais ao Direito interno.

Segundo essa perspectiva de criação de ordenamento jurídico comunitário, os citados atos internacionais passariam a ter tratamento diferenciado no ordenamento jurídico interno, passando a ser integrados de forma direta e imediata no ordenamento jurídico nacional. As relações entabuladas no âmbito do bloco ou fora dele ostentariam maior credibilidade, surtindo maior eficácia e segurança jurídica, o que propiciaria o fortalecimento do processo de integração.

O propósito do trabalho conduz à identificação dos entraves implícitos ou explícitos das Constituições dos Estados membros, que são impeditivos do processo de integração regional. A adequação do texto constitucional aos objetivos do Mercosul não garantirá, por si só, avanços na integração, mas o suporte jurídico poderá ensejar a sua arrancada pela ação e vontade coordenada dos governantes dos Estados membros do bloco.

A Constituição da Argentina, promulgada em 24 de agosto de 1994, encontra-se mais próxima dos propósitos do sistema comunitário, admitindo um sistema supranacional, sem maiores impedimentos à integração.

A Constituição do Paraguai, promulgada em 20 de junho de 1992, encontra-se harmonizada aos propósitos integrativos, possui moderno sistema quanto às relações internacionais e contempla a possibilidade de delegar competência a instituições de caráter supranacional, não se detectando maiores obstáculos ao processo de integração.

No texto constitucional paraguaio a possibilidade de criação de instituições supranacionais encontra-se, expressamente prevista, no art. 145 e, de forma implícita, nos arts.137 e 141 desse ordenamento.

A Constituição do Brasil encontra-se distante dos propósitos integrativos, porquanto não possui qualquer sistematização quanto à recepção e incorporação dos tratados internacionais e não disciplina a possibilidade de delegação de poderes para instituições supranacionais. Essa lacuna já remeteu a matéria de recepção dos tratados internacionais ao Supremo Tribunal Federal (STF), que os equipara à lei ordinária, sujeitando-os à derrogação por lei posterior.

No ordenamento jurídico brasileiro, não há qualquer diferenciação entre os tratados internacionais gerais e os tratados firmados sob a égide do Mercosul, posto que são subordinados ao Direito Internacional Público clássico.

A inexistência de norma constitucional brasileira que estabeleça a hierarquia dos tratados tende a gerar insegurança jurídica nas relações firmadas entre o Brasil e os Estados integrantes do Mercosul, países terceiros e organizações internacionais.

Partindo dessa premissa e pela relevância e amplitude no plano interno e externo do tema da recepção dos tratados, a ser disciplinado por normas de natureza constitucional, o mecanismo adequado para levar a efeito a institucionalização de um sistema integrador dos tratados internacionais ao Direito brasileiro não pode ser outro que não a emenda à Constituição Federal.

A desobstrução da ordem jurídica interna com a inserção de regras rigorosas a respeito do tema da integração dos tratados contribuiria para afastar o quadro antagônico em que se encontra o Brasil.

Antagonismo explícito, de um lado, pelo interesse de integrar-se com países da América Latina (parágrafo único do art. 4º da Constituição Federal) e, de outro, por não fixar constitucionalmente as regras, isto é, fixar a sistemática de integração ao Direito Interno dos tratados internacionais firmados como resultado do interesse integrativo.

A Constituição do Uruguai afirma a soberania do Estado e não faz qualquer previsão a respeito da criação de instituições de caráter supranacional; o texto constitucional é omisso quanto à recepção e incorporação dos tratados internacionais, de sorte a requerer a manifestação da jurisprudência, nos moldes do Direito brasileiro.

No texto constitucional uruguaio não há qualquer disposição sobre o reconhecimento de um ordenamento jurídico comunitário, o que confira entrave ao processo integrativo.

A Constituição da Venezuela encontra-se harmonizada aos propósitos integrativos, pois admite a existência de instituições supranacionais e confere a aplicação imediata no Direito interno dos tratados e normas internacionais.

Nota-se que os avanços do processo integrativo no âmbito do Mercosul reclamam ajustes na constituição do bloco, a começar pela reestruturação dos seus órgãos segundo a concepção de transferência de atribuições a organizações comunitárias.

Para isso, é necessário que todos os textos constitucionais estejam harmonizados ao propósito integrativo, de modo a possibilitar a aplicação das normas comunitárias uniformemente em relação a todos os membros do bloco.

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A criação de ordenamento jurídico comunitário e sua implementação no âmbito do Mercosul não caracterizam tarefa de todo árdua, pois o bloco, formado há uma década e meia, possui estrutura institucional e operacional quanto ao sistema normativo que, embora desvinculado do sistema proposto, poderá ser incorporado no novo modelo.

O embasamento para a formulação das propostas de alteração constitucional encontra-se no próprio texto constitucional. A Constituição brasileira disciplina a modificação constitucional por meio de emendas, nos termos previstos no art. 60. É certo também que há limitações constitucionais, como as previstas no § 4º, I, do art. 60, mas se restringem a mudanças de cláusula pétrea.

Como o Mercosul reforça o princípio democrático como norte dos governos dos Estados membros, poderia haver maior propagação dos objetivos do bloco, baseada no envolvimento da sociedade na discussão de temas que extrapolam os limites territoriais internos, como políticas econômicas, ambientais, educacionais, trabalhistas e sociais.

Isso tende a levar a uma mudança de pensamento de toda a sociedade dos Estados membros que seja favorável à integração. Contudo, a construção dessa mudança não poderá ser levada adiante com êxito sem a indispensável participação dos poderes constituídos e de toda a sociedade de cada Estado membro do bloco, de forma que a ordem jurídica possa conferir o alicerce e proteger os direitos dela decorrentes.

É imbuído desse pensamento que se apresentam, como desafio, propostas de alteração constitucional fundadas em pressupostos e princípios que demandam prévia consolidação e assimilação no âmbito interno de cada Estado membro.

A lacuna no texto constitucional brasileiro relativa ao tema da recepção e integração dos tratados internacionais ao Direito Interno, que representa entrave ao processo de integração do Mercosul, pode ser afastada com emenda constitucional.

Essa emenda deverá contemplar os seguintes pressupostos: a) o reconhecimento da integração internacional e; b) a necessidade de observância, em relação ao processo de integração, da vontade soberana do povo de cada Estado, com vista à elevação da qualidade de vida das pessoas e ao respeito aos direitos humanos.

Para a elaboração da proposta de emenda o legislador deverá contemplar as seguintes diretrizes: a) o reconhecimento de maior relevância aos tratados internacionais no âmbito do quadro normativo nacional vigente e a garantia da plena efetividade das suas disposições; b) a vinculação do Estado brasileiro a tratado deve estar respaldada por um grau maior de adesão social, mediante a representação parlamentar.

Além desses pressupostos e diretrizes, o novo modelo deve revestir-se das seguintes características: a) previsão explícita da incorporação do tratado internacional ao ordenamento jurídico nacional; b) reconhecimento de posição hierárquica superior dos tratados internacionais em relação às normas internas e; c) previsão de quórum qualificado para a aprovação do tratado internacional no Congresso Nacional.

Essas propostas, embora capazes de sistematizar a recepção dos tratados internacionais ao Direito Interno brasileiro, não são suficientes para afastar os demais entraves implícitos, que impedem o fortalecimento do processo de integração.

Assim, a essa proposta agrega-se a inclusão de dispositivo constitucional que reconheça a existência de ordenamento jurídico comunitário autônomo e que vincule o Estado, de forma material e não apenas formal (como mero cumpridor das normas formais), à construção dessa nova ordem.

O Estado passaria a ocupar o papel de agente de mudança e responsável pela construção de um sistema jurídico comunitário (autônomo) e, como tal, o texto constitucional deve contemplar cláusula material de compromisso quanto à lealdade para levar a efeito a edificação dessa nova ordem.

Para que a aprovação dessa proposta reste frutífera, é preciso agir em torno da construção de novo pensamento do Estado, quando, então, o legislador poderá estar preparado para a implementação de propostas que possa desencadear a sua aprovação.

Isso implica desafios que merecem ampla participação e debate dos mais diversos setores dos Estados, sendo necessário que sejam reservadas ao Mercosul medidas que lhe possam conferir a efetiva importância como bloco regional.

É preciso que se propaguem as utilidades ou vantagens que a consolidação do bloco trará a toda a sociedade e ao cidadão, para que se desperte o interesse social pelo bloco.

Entre as estratégias dessa propagação e formação de cultura favorável à integração regional, deve merecer especial destaque a divulgação na mídia sobre o Mercosul, para que a sociedade tenha o real conhecimento dos seus objetivos, projetos e êxitos alcançados desde a sua criação, assim como as expectativas para o futuro.

Ainda colaborando com essa estratégia, podem ser inseridas nos currículos das escolas e universidades o tema relativo à integração regional, notadamente em relação ao Mercosul, de maneira que se alcance, no interior de cada Estado, os meios para uma caminhada segura quanto ao futuro do bloco.

Considerando essa base, sólida, de aculturação e reestruturação do pensamento de toda a sociedade, o legislador certamente terá interesse em perseguir a construção de um sistema jurídico comunitário, pelo mecanismo da emenda constitucional, como meio para tornar efetivo o Direito interno, quando se fala em integração no Mercosul. Estará o legislador imbuído de um novo contexto de vinculação material do Estado no compromisso da construção de uma ordem jurídica comunitária que se sobreponha ao direito nacional.

Verifica-se, assim, que há desafios a serem superados no âmbito do Mercosul para que o bloco tenha reconhecimento e esteja fortalecido diante de organismos internacionais e de países terceiros.

Como resultado desse fortalecimento garantir-se-á a qualidade de vida dos cidadãos dos Estados membros, mediante o estímulo do comércio interbloco e extrabloco, assim como a livre circulação de bens, serviços, pessoas e capitais, assegurando-se um futuro próspero para o processo de integração.

A reformulação da ordem jurídica comunitária depende de alicerces sólidos que se revelam no próprio texto constitucional de cada Estado membro e não podem prescindir do interesse político do Estado na promoção de políticas que levem à desejada qualidade de vida.

O ordenamento constitucional é um dos instrumentos para o fortalecimento do processo de integração, porém, sem a conjugação de ações políticas e de estratégicas adotadas de forma coordenada, não se alcançarão mecanismos para a construção da nova ordem jurídica.

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Sobre a autora
Beatriz Engelmann

advogada, consultora jurídica de empresa pública federal em Brasília (DF), pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, pós-graduanda em Integração Econômica e Direito Internacional Fiscal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ENGELMANN, Beatriz. Mercosul: os desafios constitucionais do processo de integração regional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1537, 16 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10398. Acesso em: 25 abr. 2024.

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