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A teoria do umbral do acesso ao Direito Civil como complemento à teoria do estatuto jurídico do patrimônio mínimo

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2.A TEORIA DO ESTATUTO JURÍDICO DO PATRIMÔNIO MÍNIMO

De acordo com o que foi visto no capítulo anterior, a perspectiva liberal vivenciada pelo Direito Civil desde o período iluminista até a segunda metade da centúria passada injetou nas relações jurídicas privadas um tom eminentemente patrimonialista, fazendo com que, na maioria das vezes, a tutela à propriedade tivesse maior destaque do que aquela conferida à própria pessoa humana. Nesse contexto, verifica-se que os bens eram tratados apenas e tão-somente como institutos em prol de si mesmos, ou seja, absolutamente desvinculados de qualquer finalidade personalística, de proteção à essência humana. Estimulava-se, portanto, a pura e simples acumulação de bens (ter), mesmo que isso não gerasse nenhum efeito na promoção da felicidade pessoal do seu titular (ser).

Destarte, o princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto princípio estruturante do ordenamento jurídico nacional, insculpido no art. 1º, III, da Lex Fundamentallis de 1988, veio a operar profunda mudança neste cenário, inaugurando-se o fenômeno da repersonalização ou despatrimonialização do Direito Civil, por meio do qual os institutos civilistas, antes voltados para a satisfação dos interesses econômicos e patrimoniais do indivíduo, passam a ter como finalidade primordial a tutela da pessoa humana, no intuito de promover a dignidade desta.

Por conta deste (re)posicionamento da pessoa humana como verdadeiro alvo das normas jurídicas de Direito Civil (e do Direito como um todo), os bens, mais do que nunca, reafirmam-se como objetos de direito, no sentido de que somente podem ser entendidos como instrumentos para a realização da dignidade dos seus titulares, daí porque não se permite que aqueles se sobreponham a estes últimos. Em outras palavras, sepulta-se o paradigma do ter, que por muito tempo habitou o Direito Civil, influenciando os seus institutos, e fomenta-se a novel concepção do ser, em uma autêntica e efetiva defesa do indivíduo enquanto pessoa humana.

Nessa esteira, o brilhante Professor paranaense Luiz Edson Fachin, em obra já considerada clássica no estudo do Direito Civil intitulada "Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo", elaborada como tese para o Concurso de Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, engendra a teoria do estatuto jurídico do patrimônio mínimo, segundo a qual o ordenamento jurídico deve sempre procurar garantir um mínimo de patrimônio (mínimo existencial) ao indivíduo como forma de garantir-lhe a sua dignidade.

Desse modo, uma parcela essencial do patrimônio de qualquer pessoa deverá estar protegida contra a influência de quem quer que seja, eis que afetada para o atendimento das necessidades básicas da pessoa humana. Com isso, funcionaliza-se o patrimônio (ou ao menos parte dele), colocando-o como meio de alcance da dignidade do seu titular.

A teoria do estatuto jurídico do patrimônio mínimo acaba revolucionando o estudo dos bens, pois estes não podem ser mais encarados sob uma ótica demasiadamente patrimonializada, que muitas vezes deixava o indivíduo relegado a segundo plano; eles devem estar inseridos em uma perspectiva personalística, entendida como incentivadora da proteção à pessoa humana. Nesses termos, os Professores Cristiano Chaves de Farias e Nélson Rosenvald afirmam que "através da teoria do reconhecimento do direito a um patrimônio mínimo, institutos antes vocacionados, exclusivamente, à garantia do crédito são renovados, rejuvenescidos, e utilizados na proteção da pessoa humana, como um aspecto essencial para o reconhecimento de sua dignidade [15]".

Trata-se, portanto, de franca aplicação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana em um cenário a partir dele mesmo desenhado de despatrimonialização e repersonalização das relações jurídicas civis. Aliás, o próprio Luiz Edson Fachin reconhece que "a proteção de um patrimônio mínimo vai ao encontro dessas tendências, posto que põe em primeiro plano a pessoa e suas necessidades fundamentais [16]".

Em face disso, fica claro que a previsão dos chamados direitos da personalidade não é suficiente para promover uma integral proteção da pessoa humana, devendo ser complementada, para este fim, com a teoria sub examine, ainda mais no regime capitalista no qual se assenta o país, onde um mínimo de acúmulo de capital contribui significativamente para o desenvolvimento de uma vida digna.

Resumindo com precisão cirúrgica a sua própria tese, o Professor Fachin [17] assevera que:

A presente tese defende a existência de uma garantia patrimonial mínima inerente a toda pessoa humana, integrante da respectiva esfera jurídica individual ao lado dos atributos pertinentes à própria condição humana. Trata-se de um patrimônio mínimo indispensável a uma vida digna do qual, em hipótese alguma, pode ser desapossada, cuja proteção está acima dos interesses dos credores. A formulação sustentada se ancora no princípio constitucional da dignidade humana e parte da hermenêutica crítica e construtiva do Código Civil brasileiro, passando pela legislação esparsa que aponta nessa mesma direção.

É de mister importância também salientar que a teoria do estatuto jurídico do patrimônio mínimo atende ainda a dois dos primordiais objetivos da República Federativa do Brasil, quais sejam, a solidariedade e a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais, conforme consta do art. 3º, I e III, respectivamente, do Texto Maior, objetivos estes que, a nosso ver, axiologicamente se tratam de mera aplicação do macro princípio da dignidade da pessoa humana.

A garantia do patrimônio mínimo resulta de uma intervenção estatal na autonomia privada do cidadão dirigida a um fim maior, a proteção à dignidade humana (e demais objetivos dela decorrentes, a exemplo daqueles acima mencionados), e, por isso mesmo, tal intervenção afigura-se absolutamente legítima, típica do que Rodrigo da Cunha Pereira [18] convencionou chamar de Estado-protetor, considerado a faceta do Estado responsável pela interferência no âmbito particular em prol do indivíduo obrigado a suportar esta mesma interferência [19].

Por conta disso, pode-se afirmar que a teoria sub examine não afasta o caráter patrimonial das relações jurídicas privadas, isto é, não visa atacar a propriedade privada e o direito creditício, muito pelo contrário, ela apenas provoca uma redefinição, releitura, adaptação destes institutos às novas brisas do Direito Civil-Constitucional, determinando que os mesmos não se sobreponham à dignidade do indivíduo. Melhor comentando esta idéia, Fachin [20] expõe:

Em certa medida, a elevação protetiva conferida pela Constituição à propriedade privada pode, também, comportar tutela do patrimônio mínimo, vale dizer, sendo regra de base desse sistema a garantia ao direito de propriedade não é incoerente, pois, que nele se garanta um mínimo patrimonial. Sob o estatuto da propriedade agasalha-se, também, a defesa dos bens indispensáveis à subsistência. Sendo a opção eleita assegurá-lo, a congruência sistemática não permite abolir os meios que, na titularidade, podem garantir a subsistência.

A teoria do estatuto jurídico do patrimônio mínimo tem como fundamento de partida a regra da proibição da doação universal (doação inoficiosa), segundo a qual é nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador. Muito embora esta regra humanitária seja antiga, com origens romanas, estando consagrada já no Código Civil de 1916, no seu artigo 1.175, insta salientar que ela somente ganhou destaque depois do advento da Carta Magna de 1988, quando se consagrou o fenômeno da repersonalização do Direito Civil. Antes disso, no Codex de 1916, de tom eminentemente patrimonialista, a regra estava adormecida, praticamente ignorada. Hoje estampada no art. 548 do Código Civil de 2002, passa a ter a atenção que sempre mereceu. É o que leciona o Professor Luiz Edson Fachin [21]:

A nulidade da doação universal dos bens sem reserva de usufruto insere-se no quadro de normas que, a despeito do caráter acentuadamente patrimonialista da doutrina civilista consubstanciada no Código Civil de 1916, já tutelavam, de algum modo, topicamente, direitos fundamentais da pessoa. Em razão do Direito Civil clássico fornecer a estrutura e a legitimação para o modelo liberal, fundado nos princípios da propriedade privada, da autonomia privada e da liberdade formal, essas normas de caráter humanitário permaneceram ofuscadas, podendo renascer, reconstruídas dialeticamente, na tensão contemporânea entre o ‘mundo da vida’ e a racionalidade excludente do mercado globalizante.

Estabelecido esse ponto de partida da sua teoria, o Professor Fachin passa a citar diversos outros exemplos para ilustrá-la. Dentre estes exemplos, talvez o mais conhecido é o do bem de família, que a seguir analisamos de forma muito breve.

O instituto do bem de família existia no ordenamento nacional desde o Código Civil de 1916, onde estava regulado na sua Parte Geral, mais precisamente nos artigos 70 a 73. Destarte, esta previsão legal, além de tímida, contemplava apenas o bem de família convencional, aquele pactuado entre as partes, que, na prática, por óbvio, era pouco utilizado, permanecendo o cidadão, com isso, desprotegido. Nesse contexto, de suma importância foi a promulgação da Lei nº 8.009/90, que traz o conceito de bem de família desvinculado da necessidade de convenção nesse sentido pelos interessados (bem de família legal), garantindo enfim a efetiva proteção ao patrimônio mínimo.

Consagra-se então a regra geral de que o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável, preservando-se assim um mínimo de patrimônio para o desenvolvimento das atividades humanas.

Acrescente-se ainda que o bem de família (em qualquer modalidade) encontra guarida constitucional, tendo em vista que a Emenda Constitucional nº 26/2000 alterou o artigo 6º do Texto Maior justamente para nele incluir, como direito social, o direito à moradia.

Noutro giro, registre-se também que a jurisprudência pátria, no enfrentamento corriqueiro de questões relacionadas ao bem de família, acabou elastecendo o seu campo de aplicação ao reconhecer como entidades familiares a pessoa solitária (o single) e a comunidade formada por variados parentes, principalmente entre irmãos (família anaparental). Veja-se o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a esse respeito, in verbis:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. LOCAÇÃO. BEM DE FAMÍLIA. MÓVEIS GUARNECEDORES DA RESIDÊNCIA. IMPENHORABILIDADE. LOCATÁRIA/EXECUTADA QUE MORA SOZINHA. ENTIDADE FAMILIAR. CARACTERIZAÇÃO. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA. LEI 8.009/90, ART. 1º E CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 226, § 4º. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1.O conceito de entidade familiar, deduzido dos arts. 1º da Lei 8.009/90 e 226, § 4º da CF/88, agasalha, segundo a aplicação da interpretação teleológica, a pessoa que, como na hipótese, é separada e vive sozinha, devendo o manto da impenhorabilidade, dessarte, proteger os bens móveis guarnecedores de sua residência. (STJ, REsp n. 205.179-SP, DJ de 07.02.2000).

EXECUÇÃO. Embargos de terceiro. Lei nº 8.009/90. Impenhorabilidade. Moradia da família.Irmãos solteiros. Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza de proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei nº 8.009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles". (STJ, REsp n. 159.851-SP, DJ de 22.06.98).

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Ainda no tocante ao bem de família, noticie-se, a título de curiosidade, que o novo Código Civil, não mais na Parte Geral, mas sim no Livro de Direito de Família, mais precisamente nos seus artigos 1.711 a 1.722, é o diploma legal atualmente aplicável ao bem de família convencional, sendo que o novel regramento é mais amplo do que aquele encontrado no Código anterior, contemplando, por exemplo, a possibilidade de instituição do bem de família em bens móveis.

Outros tantos exemplos de patrimônio mínimo são citados pelo Professor paranaense, a saber: a possibilidade de revogação de doação, em caso de recusa de prestação de alimentos, por parte do donatário, que teria o dever e a possibilidade de prestá-los (art. 557, IV do Código Civil de 2002); a incapacidade relativa dos pródigos (art. 4º, IV, do Codex); a vedação de contrato que tenha por objeto a herança de pessoa viva (pacta corvina, art. 426 do Código atual); a cláusula de inalienabilidade testamentária (artigos 1.848 e 1.911 do Código) e a imposição da legítima (art. 1.789 do Código), sendo estes dois últimos exemplos entendidos como proteção não ao titular do patrimônio, mas sim a terceiros.

Saltando os muros do Direito Civil, iremos encontrar no Código de Processo Civil, artigos. 648 e 649, outro exemplo sintomático de aplicação desta teoria, já que tais dispositivos agasalham hipóteses de impenhorabilidade de determinados bens, incluindo a impenhorabilidade dos instrumentos de trabalho (art. 649, VI) e do módulo rural (art. 649, X).

Em analogia à concepção de patrimônio mínimo, Fachin ainda indica o princípio da preservação da empresa como exemplo de aplicação da sua teoria.

Outros tantos exemplos certamente também poderiam ser aqui citados, mas, para evitarmos a exaustão, contentemo-nos com as situações anteriormente analisadas, até porque, como muito bem alertado pelos Professores Cristiano Chaves de Farias e Nélson Rosenvald, "o eventual rol de exemplos não é exauriente, dependendo do caso concreto para que seja delimitada a extensão do patrimônio da pessoa humana, a partir da colisão entre valores patrimoniais destinados à garantia do crédito e valores patrimoniais vocacionados à proteção das situações existenciais, exigindo importante atuação interpretativa e construtiva [22]".

Continuando sob a perspectiva da teoria capitaneada pelo preclaro Professor Luiz Edson Fachin, impende destacar que o conceito de patrimônio mínimo, como já afirmado alhures, é relativo, variável de acordo com a realidade econômica de cada indivíduo, mensurável, portanto, no caso concreto. Isso, porém, não afasta o seu caráter universal, consistente no fato de que ele é aplicável a todos, independentemente da situação financeira do seu titular, pois tal teoria é inteiramente construída a partir do pressuposto de que "não se pode admitir pessoa humana sem patrimônio [23]".

É exatamente este pressuposto que merece ser analisado com vagar. Será que, de fato, todo indivíduo possui patrimônio? E se possui, esse patrimônio tem sempre utilidade prática, independentemente do seu valor e da condição do seu titular?

É o que passamos a apreciar a partir das linhas vindouras.

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Sobre o autor
Leonardo Barreto Moreira Alves

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Especialista em Direito Civil pela PUC/MG Mestre em Direito Privado pela PUC/MG Professor de Direito Processual Penal de cursos preparatórios Professor de Direito Processual Penal da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais (FESMPMG) Membro do Conselho Editorial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Membro do Conselho Editorial da Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Leonardo Barreto Moreira. A teoria do umbral do acesso ao Direito Civil como complemento à teoria do estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1535, 14 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10406. Acesso em: 22 dez. 2024.

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