Nos últimos meses, muito se comentou acerca da Lei Complementar n° 123, de 14 de dezembro de 2006, que instituiu o chamado "Super Simples" ou "Simples Nacional". Trata-se de norma que dispensa tratamento tributário diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte.
Vamos restringir nossos comentários ao contido no artigo 23 da citada norma, que está assim redigido:
"Art. 23. As microempresas e as empresas de pequeno porte optantes pelo Simples Nacional não farão jus à apropriação nem transferirão créditos relativos a impostos ou contribuições abrangidos pelo Simples Nacional."
Antes de adentrarmos na análise deste dispositivo em especial, todavia, lembramos que o inciso IX do artigo 170 da Constituição Federal (CF/88) disciplina que a ordem econômica deve reservar "tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País." Não podemos nos esquecer, também, que determina o artigo 146, inciso III, "d" da CF/88 que a Lei Complementar, ao estabelecer normas gerais em matéria tributária, definirá tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte, inclusive em relação às contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13 da Carta Magna (as quais incluem a contribuição ao PIS e a COFINS).
Assim, resta claro que a CF/88 determina que se dispense tratamento favorecido às micro e pequenas empresas. No entanto, a prevalecer a interpretação do fisco dada ao transcrito artigo 23 da Lei Complementar n° 123/06, enormes prejuízos poderão ser causados, se é que já não se está causando, a este segmento empresarial.
Isto, porque, em 25 de julho de 2007, a Receita Federal – 8ª Região, numa interpretação que a nosso ver afronta o que determina a Constituição Federal, exarou a Solução de Consulta n° 360 vedando a tomada de créditos de PIS e COFINS às empresas que adquirem bens e serviços de empresas optantes pelo Simples Nacional.
Tal entendimento é, no mínimo, equivocado. Através de pura lógica de economia de tributos, esta interpretação do artigo 23 da Lei Complementar 123/06 levará as empresas sujeitas ao regime não cumulativo das citadas contribuições a dar preferência às compras das mercadorias de empresas não enquadradas no Simples Nacional, pois somente desta forma poderão descontar do PIS e da COFINS devidos créditos da ordem de 9,25% calculados sobre o valor das aquisições.
Assim, ou as pequenas empresas serão preteridas em face às demais, ou serão compelidas a reduzir custos e margem de lucro, para que o preço final de seus produtos seja menor, compensando a impossibilidade de transferência de créditos.
Ora, como vimos, o texto constitucional impõe à legislação infra-constitucional tratamento favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte. O art. 23, se interpretado como o fisco o fez, as prejudica enormemente!
Sob pena de inconstitucionalidade do artigo 23 da Lei Complementar n° 123/06, só uma conclusão é possível: o entendimento exarado pelo fisco na solução de consulta mencionada não pode revelar a intenção do legislador.
Incautos poderiam argüir que se as pequenas e micro empresas não recolhem as citadas contribuições às alíquotas de 1,65% e 7,6% (respectivamente PIS e COFINS), não seria possível transferir esses créditos a terceiros. Lembramos, contudo, que a sistemática da não-cumulatividade do PIS e da COFINS, nos termos das Leis nºs 10.637/02 e 10.833/03, diferencia-se da não-cumulatividade do ICMS e IPI. A não-cumulatividade desses impostos está atrelada à própria mercadoria circulada ou ao produto industrializado. A apropriação dos créditos do PIS e COFINS não-cumulativos condiciona-se apenas às limitações previstas nas Leis nºs 10.637/02 e 10.833/03 [01].
É fato, ainda, que se poderia argüir que a Lei Complementar n° 123/06, em face de sua "superior hierarquia" e edição mais recente, teria alterado parte da sistemática de crédito da contribuição ao PIS e da COFINS, disciplinada pelas Leis n°s 10.637/02 e 10.833/03.
Entendemos que tal assertiva também não pode prevalecer. A princípio, porque o art. 195, § 12 da CF/88 determina que a lei definirá a forma de sua não-cumulatividade. Portanto, na linha da reiterada jurisprudência do STF, esta pode ser ordinária e não necessariamente complementar.
Desta forma, embora a vedação expressa na lei no Simples Nacional tenha sido veiculada por meio de Lei Complementar (art. 23, da LC nº 123/06), constata-se que este dispositivo está em mesmo grau hierárquico das Leis nºs 10.637/02 e 10.833/03, pois é formalmente complementar, mas materialmente ordinária.
Não nos ateremos aqui a analisar ou até mesmo a expor as outras formas possíveis de se interpretar o citado artigo 23. Resta-nos, todavia, neste momento, aguardar uma melhor interpretação desta norma por parte do fisco federal, sob pena de serem impostas severas restrições ao desenvolvimento das micro e pequenas empresas no país.
Nota
01 As únicas condições impostas pela legislação para a apropriação dos créditos do PIS e da COFINS não-cumulativos estão vinculadas aos seguintes fatores:
(i) a empresa adquirente esteja enquadrada no regime não-cumulativo;
(ii) os bens e serviços não tenham sido adquiridos de pessoas físicas e que tenham sido tributados na venda ou prestação efetuada pela pessoa jurídica fornecedora;
(iii) os bens e serviços adquiridos não sejam utilizados como insumos na prestação de serviços ou produção de bens com saídas isentas, não tributadas ou tributadas à alíquota zero na venda ou prestação;
(iv) os bens e serviços devem ser adquiridos de pessoa jurídica domiciliada no País e os custos e despesas incorridos, pagos ou creditados, também devem ter como beneficiária pessoa jurídica domiciliada no Brasil.