"O espírito do comércio produz nos homens um acentuado sentido de justiça exata, oposto de um lado à rapinagem e de outro à negligência dos próprios interesses.
O comércio afasta os preconceitos agressivos. Em toda parte, onde se estabeleceram costumes brandos, existe o comércio, e onde se pratica o comércio, existem costumes brandos."
(Montesquieu)
Desde a realidade montesquiana, de meados do século XVIII, grandes e profundas modificações alteraram o mecanismo econômico responsável pela sustentação da sociedade organizada. Vivemos hoje num planeta povoado por mais de 6 bilhões de pessoas, onde nascem 148 crianças por minuto (1). É dentro desta conjuntura multitudinária que se delineiam os novos contornos das práticas comerciais hodiernas.
Globalização, supranacionalidade, comércio eletrônico, mercados comuns, abertura comercial, são vários os termos do novo catecismo colonizador, escondendo sob o véu da pomposidade o seu caráter imperialista. Sem que nos demos conta estamos sofrendo um retrocesso histórico.
Na Europa, berço da civilização moderna, dos séculos X a XIII vigeu o regime feudalista, pelo qual alguém se tornava vassalo de um senhor, ao qual devia serviços, obediência e auxílio, em troca de proteção ou sustento. Quase dez séculos passados do enterro do feudalismo, novamente nos vemos às voltas com o mesmo regime, sofrendo a vassalagem comercial imposta pelos novos senhores feudais - as multinacionais. Seguimos cegos as regras ditadas pelas grandes corporações, as quais tem como finalidade precípua desenvolver e atiçar a fúria consumidora do povo (seus vassalos), determinando gostos, desejos, modos de vida, no afã colonialista de criar feudos e conquistar territórios. Para efeito de ilustração podemos citar o Brasil, aqui o faturamento das múltis estrangeiras já supera o das empresas nacionais, 120 bilhões de dólares contra 109 bilhões (2), sendo que o aporte alienígena não para de crescer tanto no solo pátrio quanto nos demais países potencialmente atraentes.
Um dos subprodutos desta colonização moderna é a pirataria, nome popular dado à usurpação ou violação de direitos autorais ou da propriedade intelectual sobre obra literária, científica ou artística. O fato é típico, definido como crime no Código Penal (artigo 184 e §§, do Dec-Lei 2.848/40) e em leis especiais (artigos 183 a 195, da Lei 9.279/96 e artigo 12 da Lei 9.609/98), valendo-se ressaltar o dolo específico comum aos tipos, qual seja o "animus lucrandi". Desta forma, para que o fato esteja revestido pela tipicidade é necessário a presença do elemento subjetivo do injusto, consubstanciado nos termos - "com intuito de lucro" (art. 184, § 1º e 2º, do CP), "utilização com fins econômicos" (art. 184, inc. I e II; 188, inc. I e II; e 191, caput, da Lei 9.279/96), "fins de comércio" ( art. 12, § 1º e 2º, da Lei 9.609/98) - caso contrário a conduta é atípica. Em outras palavras, o comportamento do mero consumidor, que adquire as indigitadas mercadorias piratas para uso próprio, não constitui crime, uma vez que ausente o elemento subjetivo especial - a intenção de auferir lucro.
Não há como negar o comportamento altamente reprovável do contrafator, que assenhora-se inescrupulosamente do trabalho desenvolvido por outrem, fruto este muitas vezes de uma vida inteira de dedicação, causando repugnância ao Direito. Do outro lado, porém, temos o jugo onipresente dos gigantes transnacionais que, na sua voracidade capitalista, afastam da população a possibilidade de desfrutar das conquistas (produtos) da civilização contemporânea.
Aonde fica, neste contexto, a promessa do "Welfare State"?. Governantes vem e vão mas a demagogia populista não muda. E o povo, que já não tem mais a quem recorrer, vê-se obrigado a procurar alternativas de sobrevivência, inventando maneiras de participar, ainda que espuriamente, do sonho consumista que lhes foi impingido pela pletora propagandista daqueles conglomerados, cercados e acossados pelo fantasma da falta de poder aquisitivo. É sob esta pressão econômica que surgiram e brotam incessantemente, tal qual a hidra de Lerna (3), as feiras e camelódromos pelo mundo afora, abundantes em todo o tipo de falsificação, da mais grosseira à sofisticada. Aí pode-se encontrar perfumes, relógios, sapatos, bolsas, produtos eletrônicos, CDs, programas de computador, absolutamente tudo é passível de sofrer a ação pirática. Só no caso específico dos CDs, a Associação Protetora dos direitos Intelectuais e Fonográficos do Brasil estima que o prejuízo da indústria com a contrafação chega a 300 milhões de dólares ao ano, tendo sido produzido algo em torno de 40 milhões de discos piratas em 1999, dos quais apenas 1,3 milhão foi apreendido. Para cada dez CDs legítimos, calcula-se, há quatro ilegais (4).
A realidade é contundente, não adianta bravatas dos países poderosos, como as que assistimos na tumultuada conferência da Organização Mundial do Comércio, OMC, realizada em dezembro do ano passado em Seattle, Estados Unidos. Naquela ocasião, pudemos vislumbrar quais os rumos da novel concorrência internacional e sua arma mais eficiente - o neoprotecionismo. Da lição de Seattle ficou uma certeza, a de que o Brasil, bem como outros países em situação idêntica, apesar de ter feito obedientemente a lição neoliberal dos anos 90, policiado por organismos internacionais como o FMI e o Banco Mundial, continua excluído da ciranda comercial planetária e relegado à sua eterna condição de importador. As críticas, na mesma oportunidade feitas pelo presidente Bill Clinton ao Brasil, pela utilização de crianças na fabricação nacional de sapatos tem a mesma inspiração que as acusações de dumping dirigidas às nossas siderúrgicas, qual seja garantir a proteção do mercado de trabalho americano supostamente ameaçado pelas exportações brasílicas. Retrato evidente desta desigualdade macroeconômica espelha-se na balança comercial brasileira, que encerrou 1999 com um déficit de 1,5 bilhão de dólares, considerando que no ano anterior, 1998, os brasileiros compraram 3,6 bilhões de dólares a mais do venderam ao E.U.A. (5)
O abismo insofismável criado por estas diferenças internacionais é o oxigênio que alimenta a proliferação do comércio clandestino. Nesta tentativa desesperada de diminuir o legado da dívida social herdada do colonialismo europeu, o cidadão comum vê na opção de compra de um CD famoso por 5 reais no camelô a única alternativa viável para sua adequação societária. Não podemos olvidar que a referida massificação da propaganda tornou indispensável o exercício do consumo, fim colimado pelo projeto globalizador, o que seria impossível na compra do produto original ao preço de 30 reais, ou mais, proibitivo para o limitado orçamento da grande população. Já dizia Keynes (6): "o capitalismo é a crença mais estarrecedora de que o mais insignificante dos homens fará a mais insignificante das coisas para o bem de todos".
Por fim, resta-nos a lição do sábio indiano Lahur Sessa, a quem se atribui a invenção do jogo dos reis (xadrez), ensinava o mestre: "os homens mais avisados iludem-se, não só diante da aparência enganadora dos números, mas também com a falsa modéstia dos ambiciosos. Infeliz daquele que toma sobre os ombros o compromisso de uma dívida cuja grandeza não pode avaliar com a tábua de cálculo de sua própria argúcia" (7).
NOTAS
1- Fonte: Organização das Nações Unidas.
2- Fonte: FIPECAF/Maiores e melhores.
3- Hidra (mitologia), na mitologia grega, monstro de nove cabeças que vivia em um pântano perto de Lerna, Grécia. Uma ameaça para todos os habitantes de Argos, tinha um sopro mortalmente peçonhento e quando cortavam uma de suas cabeças, cresciam duas no lugar; a cabeça do meio era imortal. ( in Enciclopédia ENCARTA)
4- Fonte: pesquisa realizado por Fábio Shivartche em VEJA/ano 32/nº 51.
5- Fonte: Fundação Getúlio Vargas.
6- Keynes, Jonh Maynard (1883-1946), economista britânico de maior influência neste século, sua obra "Teoria geral do emprego, juro e moeda", provocou uma autêntica remodelação nas teorias econômicas do capitalismo e serviu de pilar ao desenvolvimento da economia moderna.
7- apud Mello, Júlio César de (1895-1974), in "O Homem que Calculava", matemático e escritor carioca que assinava sob o pseudônimo de Malba Tahan.