A paternidade é apresentada como uma grande conquista para muitos casais, pois faz parte de um sonho e representa o símbolo da prole, da comunhão e do amor entre o casal. Durante o período de gestação, os pais fazem todos os preparativos e aguardam ansiosamente a chegada do bebê: desde as primeiras tarefas, como a de escolher um nome ou arrumar um enxoval, servem como uma aproximação emocional com o filho que está por vir. Desse modo, é perceptível que o vínculo afetivo começa a ser construído antes mesmo do nascimento.
Esse processo, entretanto, também pode ser a motivação para aflições e inseguranças. Esses medos emergem, entre outras coisas, da possibilidade de morte ou doença do feto. Considerando reiterados casos recentes, é preciso evidenciar a existência de um problema passível de ocorrer e que aflige inúmeros casais: o da troca de bebês na maternidade.
De acordo com estudo realizado, com fundamentação nas estatísticas divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, pela empresa de tecnologia Natosafe (2020), a estimativa de troca de bebês nas maternidades brasileiras é de uma troca a cada seis mil nascimentos. Considerando que a média de nascimentos é de três milhões de neonatos por ano no Brasil, a estimativa é de que anualmente cerca de quinhentos pais sofrem com esse problema. De acordo com o médico Gil Mendonça Brasileiro (2020), essa situação se apresenta principalmente pela falta de estrutura e de investimento nas maternidades brasileiras. Assim, essas instituições não possuem tecnologias suficientes para detectar esses erros sem ser pela atividade dos profissionais responsáveis do local.
Para Aristóteles (Estagira, 384 a.C. — Atenas, 322 a.C.), “A arte imita a vida”. Sob essa perspectiva, tal assertiva é ratificada observando-se a película cinematográfica Madres Paralelas (2022), do diretor Pedro Almodóvar. Esta obra apresenta uma trama, em que duas mulheres têm os seus filhos trocados ainda na maternidade, tempos depois uma das mães descobre o erro cometido, mas esconde o fato, em razão da morte do seu filho biológico.
Nesse sentido, na vida real, é possível verificar diversas reportagens sobre o tema, como esses casos são comuns e afetam a vida das pessoas. Um caso de grande repercussão aconteceu na cidade de Aparecida de Goiânia, em que os bebês foram trocados na maternidade durante o período da pandemia, sendo assim, o hospital restringiu o pai e a avó de assistirem o parto. Após isso, o próprio hospital comunicou a possibilidade de erro para as famílias e solicitou o teste de DNA, que confirmou a troca. Após a análise do testemunho das famílias, percebe-se que a principal questão apontada por eles são os danos proporcionados pela repentina ruptura com a criança, a qual já desenvolveram uma ligação afetiva.
Desta forma, fica evidente o vínculo afetivo que se estabelece, além disso, os pais enfrentam muitas dificuldades e relutância em trocar e ter com eles um filho biológico, uma vez estabelecido laços afetivos com o filho não biológico torna-se difícil a aceitação da troca. Nesse sentido, destaca-se que o vínculo afetivo na relação paterna vai além do vínculo consanguíneo.
Sob essa perspectiva, consoante ao entendimento de Jones Figueiredo (2004, p. 1-5), com o passar do tempo, há diferentes situações as quais chegam a jurisdição do Estado e é dificultoso adaptar determinadas demandas dentro desse ordenamento, então, através também da doutrina e da jurisprudência é possível tratar e orientar os juristas em situações mais específicas. Com base nesse pressuposto, a troca de crianças na maternidade seria um desses casos.
Assim, juridicamente, são possíveis vários desdobramentos desse tipo de situação concreta. Através da jurisdição do Estado e dos seus respectivos órgãos, é possível determinar a responsabilidade dos envolvidos e, de certo modo, reparar ou indenizar os prejudicados.
Contudo, é essencial compreender que esse processo de reparação é pautado a partir das consequências da situação em relação aos envolvidos, uma vez que tal fato significa a desconjuntura (pelo sujeito trocado e pelas respectivas famílias envolvidas) da construção social, e dos laços afetivos calcados ao não reconhecimento da pessoa trocada enquanto ente pertencente do meio social que sempre viveu, e nem do meio familiar ao qual biologicamente deveria estar vinculado.
Dessa maneira, é incontestável que uma criança que tenha sido trocada e descubra essa situação posteriormente, durante a adolescência ou a vida adulta, enfrentará desafios significativos na construção de uma identidade e personalidade sólidas. Conforme apontado por PRADO e MARTINS (2007), essa revelação tardia pode gerar dificuldades consideráveis no estabelecimento de noções coerentes de identidade e pertencimento. Afinal, o sujeito humano é constituído através de forças externas, através das quais pode-se entender o meio social e cultural no qual esse viveu e as relações transacionadas. Tal entendimento é percebido em:
A subjetividade se produz na relação das forças que atravessam o sujeito, no movimento, no ponto de encontro das práticas de objetivação pelo saber/poder com os modos de subjetivação: formas de reconhecimento de si mesmo como sujeito da norma, de um preceito, de uma estética de si. (PRADO, MARTINS, 2007, p.17)
Nesses termos, coaduna-se o entendimento proposto por Vygotsky(2021), no que tange a educação moral como fruto que possibilita a construção ética, cívica e cultural da criança. Uma vez que tais pontos, quando construídos na infância pautada em aspectos e construções afetivas tidas como absolutas, se desfeitas repentinamente ratificam diretamente o debate sobre a fragilidade da identidade, da personalidade e da consciência da criança trocada em maternidade.
É mister salientar ainda o entendimento de ambos os autores acima expressos corroboram na demonstração da gravidade das consequências na troca da criança na maternidade.
Dessa forma, esse processo pode acarretar não apenas dificuldades no estabelecimento da identidade e personalidade, mas também causar danos morais significativos. A descoberta de ter sido trocado pode abalar profundamente o indivíduo, causando angústia, confusão emocional e um sentimento de traição ou injustiça. Esses danos morais podem afetar não apenas o bem-estar psicológico, mas também a autoestima, os relacionamentos interpessoais e a capacidade de confiar nos outros.
A partir desse pressuposto, é possível depreender que é necessário reconhecer e levar em consideração os impactos emocionais e psicológicos causados por essa situação delicada, a fim de buscar medidas de reparação e apoio adequadas às vítimas, assim, é possível aferir danos morais aos envolvidos, pois essa situação afeta diretamente valores inerentes aos direitos da personalidade.
Em uma situação que ocorreu em Goiânia em 2021, houve separação de um casal o qual teve o seu bebe trocado, pois o marido era fenotipicamente muito diferente da criança erroneamente entregue, desse modo pensou que se tratava fruto de infidelidade da esposa. Por conta da sua responsabilidade, nesse caso, o estado deve indenizar os mesmos, pois claramente houve um dano talvez irreversível em face desse erro.
Outrossim, é possível afirmar que esse tipo de situação ainda enseja a questão da perda de chance. A perda de chance é um conceito utilizado no direito civil para descrever a situação em que alguém é privado da oportunidade de obter um resultado favorável devido à conduta negligente ou ilícita de outra pessoa. No caso específico das crianças que foram trocadas na sala de parto, a perda de chance sugere que elas podem crescer e se desenvolver na família biológica em que deveriam ter sido criadas. Quando os bebês são trocados na maternidade, é provável que os envolvidos sejam privados da interação e dos laços emocionais que seriam criados se a identificação adequada tivesse sido feita. Desse modo, cabe requerer indenização por parte dos responsáveis, inclusive o Estado, no sentido de reparar as oportunidades as quais foram perdidas por conta desse erro.
Ademais, as consequências das trocas de bebês também reverberam no sentido dos poderes relativos à filiação. Esses dependem muito da situação concreta, há algumas variáveis envolvidas, o reconhecimento ou não da criança por parte dos pais biológicos e dos socioafetivos, esses que podem, através de autocomposição, entrar em acordo ou optar pela formação de uma lide para o estado resolver a demanda.
Em 2020, no Distrito Federal, em uma situação descoberta após sete anos, os pais de ambas as crianças decidiram de comum acordo a manutenção da filiação feita no registro. Nesse caso, por exemplo, não haveria a mudança da filiação.
Não obstante, outro ponto importante acerca dessas situações são os direitos sucessórios decorrentes dessa troca. Por conta dessa situação não ser positivada no ordenamento jurídico pátrio, as orientações são encontradas na jurisprudência. Nesse sentido, corrobora a tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal, a qual foi considerada um caso de repercussão geral julgado no ano 2016, à decisão determinou que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016).
Pelo expresso acima, são extensas as consequências jurídicas da troca de crianças em maternidades na área do Direito Civil, que vão desde questões sucessórias aos direitos da personalidade. Ademais, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), é possível também ensejar a responsabilização penal dos profissionais de saúde responsáveis por essa troca, senão vejamos:
“Art. 229. Deixar o médico, enfermeiro ou dirigente de estabelecimento de atenção à saúde de gestante de identificar corretamente o neonato e a parturiente, por ocasião do parto, bem como deixar de proceder aos exames referidos no art. 10 desta Lei:
Pena - detenção de seis meses a dois anos.”
Em conclusão, a paternidade é um momento de grande importância e significado para os casais. Durante a gravidez, os pais estabelecem laços afetivos com seus bebês por meio de preparativos e cuidados, construindo um vínculo emocional antes mesmo do nascimento. No entanto, a troca de bebês na maternidade surge como uma preocupação que pode abalar essa conexão e trazer inseguranças. Nesse sentido, a troca de crianças na maternidade não apenas traz danos emocionais e psicológicos para os envolvidos, mas também levanta questões legais, que ensejam responsabilidade e reparação. É essencial reconhecer e considerar o impacto dessa situação delicada e buscar medidas adequadas para apoiar e reparar as vítimas, levando em conta os danos morais e a perda de oportunidades decorrentes desse grave erro.
Da discussão posta acerca das consequências jurídicas da troca de crianças em maternidade, foi possível depreender que tal problemática perpassa por diferentes áreas do direito. O indivíduo afetado pelo erro fático da troca maternal, ainda em ambiente hospitalar, ou seja, nos primeiros dias de vida, terá vários atos da vida civil comprometidos. Vez que, haverá vício nos eventos advindos posteriormente ao seu nascimento.
Ainda, a partir dos dados anteriores fornecidos, é possível afirmar que essa não é uma situação eventual, é relativamente comum casos em que bebês são trocados na maternidade. Dessa forma, é primordial reconhecer, discutir e tentar mitigar os impactos onerosos sobre os direitos da personalidade do infante e dos seus genitores, assim como as consequências posteriores no que tange ao desenvolvimento dessas crianças.
Referências
ALVES, Jones Figueredo. RELAÇÕES MÚTUAS: doutrina precisa reger famílias geradas com troca de bebês. Conjur. São Paulo, p. 1-5. abr. 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-abr-19/jones-alves-doutrina-reger-familias-geradas-troca-bebes. Acesso em: 05 dez. 2002
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Especial(Resp) 898060/ SC. Direito Civil e Constitucional. Prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica. Agravo de decisão que não admitiu recurso extraordinário em que se discute, à luz do art. 226, caput, da Constituição Federal, a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da biológica. Relator: Ministro Luis Fux. Santa Catarina-SC. 21 set. 2016. Diário da Justiça Eletrônico. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur371896/false. Acesso em : 10 mai. 2023.
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GOMES, Michel; COSTA, Renata. Mãe de bebê trocado em hospital após o parto diz que se emocionou quando delegada abriu teste de DNA: 'Meu mundo caiu'. 2022. TV Anhanguera. Disponível em: https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2022/02/09/mae-de-bebe-trocado-em-hospital-apos-o-parto-diz-que-se-emocionou-quando-delegada-abriu-teste-de-dna-meu-mundo-caiu.ghtml. Acesso em: 25 nov. 2022.
ISTO É (ed.). DF: ‘Estou arrasada’, diz mãe que descobriu troca de bebês 7 anos após parto. Disponível em: https://istoe.com.br/df-estou-arrasada-diz-mae-que-descobriu-troca-de-bebes-7-anos-apos-parto/. Acesso em: 05 dez. 2022.
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NATOSAFE. Por que os medos de mães e pais da troca de bebês em maternidades é real? 2020. Disponível em: https://natosafe.com.br/por-que-os-medos-de-maes-e-pais-da-troca-de-bebes-em-maternidades-e-real/#:~:text=No%20entanto%2C%20estima%2Dse%20que,de%20uma%20troca%20por%20dia. Acesso em: 25 nov. 2022.
PRADO, Kleber Filho, MARTINS, Simone. A subjetividade como objeto da(s) Psicologia(s). Revista Psicologia & Sociedade, Ed. 19 (3), pgs. 14-19, 2007.
VYGOTSKY, Lev. Psicologia Educacional: o comportamento ético. O Comportamento Ético. 2021. Disponível em: https://portalctb.org.br/psicologia-educacional-lev-vygotsky-1926-capitulo-12-comportamento-etico/. Acesso em: 10 mai. 2023.