O caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TI RSS) nos ensina como conflitos judicializados que não conseguiram alcançar uma solução que trouxesse pacificação para as relações interpartes são geralmente fonte de sofrimento, violações de direitos humanos e perpetuação de conflitos da mesma natureza, tal como se vê atualmente pelo debate em torno da proposta construída pelo STF, em 2009, sobre a tese do marco temporal.
Assim, em 20 de maio de 2005, praticamente um mês após a assinatura do Decreto presidencial que homologará a demarcação do território em disputa, o senador Augusto Affonso Botelho Neto, entre outros, ajuizou Ação Popular, de nº 3.388, com a pretensão de impugnar o modelo de demarcação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TI RSS), a nulidade da Portaria 534, de 13 de abril de 2005, e o Decreto de 15 de abril de 2005.
Entre os vícios à demarcação, considerados insanáveis pelos requerentes da Ação Popular, em síntese, pedem que sejam preservadas da demarcação as áreas destinadas à exploração econômica, as sedes de municípios e estradas de circulação, terras tituladas pelo Incra e faixa de segurança na fronteira do Brasil com Venezuela e Guiana.
Assim, frente às argumentações e pedidos da Ação Popular nº 3.388, a União os rechaçou como sendo inconsistentes, alegando inclusive erro de concepção histórico no quesito da suposta ameaça à soberania nacional que a demarcação trazia, pois os indígenas desde os momentos iniciais do processo colonizador foram essenciais para a segurança das fronteiras do Brasil.
Quando o Supremo Tribunal Federal procura situar o conceito de ‘terras indígenas’ no âmbito do constitucionalismo brasileiro, faz referência à unidade do território estatal e sua submissão à soberania e independência nacional como princípios norteadores das relações internacionais, conforme inciso I do artigo 1º da Constituição Federal.
Então, lembra a referida Corte que todas as terras indígenas são bens públicos da União, de acordo com o inciso XI do artigo 20 da CF, e que a demarcação não tem o condão de extinguir ou minimizar o caráter estatal dos territórios demarcados, uma vez que entende o STF que “nenhuma terra indígena se eleva ao patamar de território político, assim como nenhuma etnia ou comunidade indígena se constitui em unidade federada. Cuida-se, cada etnia indígena, de realidade sociocultural, e não de natureza político-territorial” (STF, 2009).
Desse modo, a demarcação das terras indígenas não é um ato de exclusão entre povos indígenas e não indígenas, do contato físico ou cultural, pois a partir do amparo constitucional e um modelo centrado na União, como mediadora na solução de conflitos e fomento da interculturalidade, busca-se “tanto preservar a identidade de cada etnia quanto sua abertura para um relacionamento de mútuo proveito com outras etnias indígenas e grupamentos de não-índios”, modelo também de colaboração e responsabilidade mútuas que tende ao enriquecimento comum do patrimônio cultural nacional (STF, 2009).
Compreende-se, todavia, que este modelo de participação mediadora do Estado deve se estabelecer com esteio na promoção da autonomia das comunidades indígenas e sua participação democrática no espaço público, de modo que possam exercer, como preconiza o artigo 232 da Constituição Federal, legitimamente, a defesa de seus direitos e interesses não apenas na esfera jurídica, mas na arena pública também, haja vista o reconhecimento de sua capacidade processual e civil plenas, com fundamento também na Convenção 169 da OIT.
Há, sem dúvida, no momento presente, a continuidade de uma manifestação expressa de não aceitação do pluralismo jurídico por parte do STF, restringindo a concepção de pluralismo e reduzindo o alcance do artigo 231, quando reconhece aos índios os seus “costumes”; pois, dessa forma, além do STF sinalizar que não considera o direito como produto cultural, que pode ter como fonte os costumes de uma comunidade (ou sociedade) esquece que ele pode se manifestar por meio de práticas costumeiras - o direito consuetudinário; como é o caso dos povos indígenas, inclusive permitido pelo Estatuto do Índio, em seu artigo 57, como referido neste capítulo.
Assim, a necessidade de diferenciar “território”, enquanto categoria jurídico-política que pressupõe “uma dada Ordem Jurídica soberana”, da palavra “terra”, cujo uso tem conotação sociocultural e não política, leva inclusive a um nacionalismo distorcido, travestido de um ideal puro e homogêneo de Estado monocultural.
Vale lembrar, nesse caso, que não se defende a cristalização ou engessamento da cultura dos povos indígenas, como peças de museu para lembrar e mirar o homem idilicamente no seu estado natural primeiro, muito pelo contrário, o que se entende é que a dinâmica cultural assim como as próprias identidades são reproduzidas e desenvolvidas a partir da própria comunidade e não do Estado, salvo se totalitário o for, uma vez que tem como obrigação apenas dispor os meios para sua promoção e proteção, mas a partir dos interesses de cada grupo.
Não é sem razão que a exploração das terras indígenas para finalidades econômico-extrativistas sob diretrizes economicistas tem sido causa de tragédias não apenas culturais, mas ambientais, sociais, pessoais e, nem sempre lembradas, econômicas também. Essa visão míope caracteriza uma posição refratária à leitura intersistêmica que valoriza e fortalece os direitos humanos (fundamentais) não só para as comunidades indígenas, mas para os brasileiros como um todo.
O exemplo trazido pelo STF com a aplicação do marco temporal – que também atinge a demarcação de terras quilombolas - no julgamento em questão, alastrou-se em sua própria Casa, por mais que tenha sido referido como aplicável apenas ao caso Raposa Serra do Sol; uma vez que a mesma justificativa foi utilizada pela Segunda Turma da Corte Suprema brasileira para anular demarcações de terras indígenas no Mato Grosso do Sul, no caso: as “TIs” Guyraroká, do povo Guarani e Kaiowá, e Limão Verde, do povo Terena.
É importante ressaltar que no julgamento do Caso Raposa Serra do Sol, concluído em 19 de março de 2009, foram elencadas 19 condicionantes para execução da decisão, a ser supervisionada pelo Supremo e o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
Um ponto importante é que na decisão final ficou consignado que ela não tinha caráter vinculatório aos demais juízes e tribunais, valendo apenas para a demarcação em questão, mas não impedindo que suas diretrizes sejam utilizadas em outros casos, assim como foi feito nos casos anteriormente citados nos quais o ministro Gilmar Mendes afirmou, contrariando o que fora decidido pelo STF, que a tese do marco temporal é válida em qualquer outra decisão sobre a matéria.
Entendemos a extrema necessidade e urgência da ampliação dos debates públicos, intersetoriais e interculturais, para que sejam efetivamente garantidos os direitos fundamentais de povos originários, devidamente inseridos no contexto democrático e fraternal proposto pela Constituição vigente, sob pena de continuarmos com um processo histórico de exclusão e violação de direitos dos referidos povos.
Referências:
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Petição n. 3.388. Caso Raposa Serra do Sol. Inteiro teor do Acórdão em decisão de 19 de março de 2009. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133>. Acesso em: 5.jun.2023.
MIGALHAS. STF impõe 19 condições para demarcação de terras indígenas. Notícias STF. Publicado em 20.mar.2009. Disponível em:
<https://www.migalhas.com.br/quentes/80591/stf-impoe-19-condicoes-para-demarcacao-de-terras-indigenas>. Acesso em 8.jun.2023.