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Silêncio administrativo:

uma análise dos seus efeitos

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02/10/2007 às 00:00
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4 Estado Democrático de Direito

Considerando que a Carta Magna pátria, em seu artigo 1°, qualifica o Estado brasileiro como sendo um Estado de Direito, oportuno analisarmos o significado que tal conceito encerra.

Nos primórdios da humanidade, o poder estava associado àquele que detinha força física, capaz de intimidar um rival em eventuais embates corporais. Posteriormente, mas ainda em tempos pretéritos, antes do surgimento do Estado de Direito, aos monarcas era permitido impor suas vontades de forma absoluta, não havendo nada capaz de se sobrepor aos poderes reais.

Nessa época, o Poder se justificava como sendo um atributo de origem divina ou como um mero resultado de uma imposição pela força, de maneira que os indivíduos a ele submetidos deviam amoldar-se a seus comandos.

Com a alteração da realidade política, todavia, surge a necessidade de se controlar a tirania dos governantes, os quais, até então, não sofriam quaisquer limitações, senão as impostas por preceitos divinos. Emerge, então, um Estado que, abandonando o rótulo de absoluto, passa a submeter-se a limites impostos pelo Ordenamento Jurídico: o Estado de Direito.

Assim, marcadamente difundido no mundo hodierno, ainda que assuma contornos diferenciados em atenção aos cenários político-sociais em que se apresente, o Estado de Direito é uma garantia dos administrados, que poderão esperar e cobrar dos governantes atitudes concretizadoras das finalidades previamente definidas em lei – em sentido amplo.

Nesse modelo de Estado, considerando-se que a lei, que se propõe geral e abstrata, é apontada como moldura do comportamento da Administração, restam vedadas manifestações estatais casuísticas, antes tão comuns quando não se impunham limites à vontade real. Em síntese, o Ordenamento Jurídico passa a funcionar como autorizador e limitador do comportamento da Administração, que só poderá atuar em conformidade a seus preceitos.

A Carta Magna, todavia, além de adjetivar o Estado brasileiro como um Estado de Direito, o afirma "Democrático", pelo que se impõe a análise da dimensão de tal qualificativo.

Assim, por Estado Democrático entende-se aquele em que o poder emana do povo e é exercido em nome desta coletividade; aquele que, distanciando-se dos regimes oligárquicos – em que se busca a satisfação dos interesses privados de uma minoria –, visa o atendimento dos interesses da coletividade, verdadeira titular do poder que, no modelo da democracia indireta, é exercido por seus representantes.

Resta, portanto, fixada a supremacia dos interesses públicos sobre os privados como marca do Estado Democrático, de maneira que todos os programas de atividade da Administração hão que estar orientados pelos preceitos constitucionalmente tutelados, com vistas a se realizarem os fins efetivamente públicos.

Dessa maneira, um Estado que se pretenda Democrático e de Direito será aquele em que a Administração, além de se manifestar de acordo – e tão-somente - com as autorizações conferidas pelo Ordenamento Jurídico, o faz com vistas ao atendimento da supremacia dos interesses públicos sobre os privados. Nesta tarefa, avultam de importância os princípios norteadores da atuação administrativa, sem os quais o plano do Estado Democrático de Direito não pode ser cumprido em sua integralidade.

Assim, a despeito de poderem ser identificados diversos princípios inscritos em outras passagens da Carta Magna, bem como um sem número de valores, não menos importantes, que podem ser inferidos do próprio texto constitucional, por lhe serem implícitos, enfocaremos, nos limites do interesse do presente estudo, os preceitos indicados no artigo 37 da Constituição Federal.

Dispõe, o citado artigo, que "A Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]." [18]

Considerando o alcance do princípio da legalidade [19], capaz de irradiar efeitos sobre outros preceitos orientadores da atuação administrativa, tomá-lo-emos como ponto de partida desta breve análise sobre a principiologia aplicável à Administração.

Nesse passo, fornecendo-nos os contornos para a conceituação de legalidade, Hely Lopes Meirelles ensina que "Na Administração não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza." [20]

Assim, a noção de legalidade, coincidindo com a vinculação da atuação administrativa ao quanto previsto em lei, encontra-se identificada com a própria essência de um Estado de Direito, que, como se afirmou, é hostil ao vilipêndio do interesse público por ingerências indevidas da vontade do agente administrativo.

Isso porque, não estivesse o administrador subordinado à fiel observância do quanto determinado em lei, legitimando-se sua atuação para além do legalmente autorizado, a função administrativa estaria inteiramente vulnerável a interferências do agente, capazes de ultrajar a conduta administrativa.

Nesse passo, impõe-se registrar que quando se fala em obediência à "lei", está-se a referir a sua acepção ampla, abarcando-se variadas espécies normativas. Todavia, a previsão legal só será capaz de orientar o comportamento da Administração quando for – e na exata medida em que o for – cumpridora da noção de proporcionalidade [21].

Em outras palavras, determinado preceito legal apenas atenderá ao interesse público – podendo, assim, guiar a conduta administrativa - quando atender a uma relação de custo-benefício. Com isso, indispensável que, qualquer que seja a previsão legal, haja o prévio sopesamento dos interesses por ela feridos e daqueles por ela preservados, só se podendo considerar atendido o interesse público quando estes se afigurem mais relevantes que aqueles.

Do quanto dito, verifica-se que a legalidade, guiando a atuação de uma Administração avessa ao Estado Absolutista é, assim, um caminho encontrado para se assegurar a impessoalidade do agente público. Assim, ao se pretender que o exercente da função administrativa dispense a todos os administrados tratamento isento de percepções que lhe sejam particulares, ou seja, tratando a todos não de forma idêntica, mas enxergando suas diferenças com base em critérios prévios e sustentáveis, segundo a exata medida contida na dicção legal – que haverá sempre que perseguir o interesse público –, está-se zelando pela impessoalidade da Função administrativa, princípio também tutelado em sede constitucional.

Aliás, recobrando-se o quanto dito acerca do significado do "ad ministrar", invocando-se, neste turno, a lição de Ruy Cirne Lima, para quem "a Administração é a atividade do que não é senhor absoluto" [22], tem-se que qualquer atuação do administrador que sobreleve suas impressões pessoais em detrimento do interesse legalmente tutelado configurará manifestação do pernicioso desvio de comportamento, passível de responsabilização, até mesmo pessoal, do agente.

De nada valeriam, no entanto, os preceitos supra-referidos, se não fossem conferidos aos administrados mecanismos para fiscalizar seus cumprimentos. É nesse contexto que avulta de importância o princípio da publicidade.

Quando se diz ser dever da Administração tornar públicas suas decisões, o que se pretende, em verdade, é conferir à função administrativa a transparência que se faz necessária a que o administrado compreenda os caminhos que foram percorridos até a adoção de determinada providência. Por tal razão, na esteira do que sustenta Odete Medauar [23], entendemos ser apropriada a denominação do princípio em comento como "princípio da transparência".

Ora, num Estado que se pretenda Democrático e de Direito, não se pode admitir – salvo em hipóteses excepcionais [24] – que haja o ocultamento de informações inerentes à atividade da Administração Pública que, como se afirmou, volta-se à satisfação dos interesses coletivos.

Nesse contexto, emerge como imperativo que a Administração não só permita ao administrado conhecer o conteúdo das suas decisões, como que revele, com absoluta transparência, todas as justificativas das providências adotadas – estejam elas insertas na sua atribuição discricionária ou vinculada.

Isso porque, ao dirigir um pleito à Administração, por exemplo, não será possível ao administrado insurgir-se contra a manifestação estatal, caso desconheça as razões (motivos) que conduziram àquela providência. Seria o mesmo que imaginarmos alguém tentando defender-se de uma acusação que não sabe identificar qual seja.

Nesse passo, oportuno registrarmos a distinção, apontada por Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem o motivo do ato compreende "a própria situação material, empírica, que efetivamente serviu de suporte real e objetivo para a prática do ato" [25], ao passo que a motivação, sendo uma espécie de exposição dos motivos, "integra a ‘formalização’ do ato, sendo um requisito formalístico dele". [26]

Assim, num Estado de Direito, não basta a existência de motivos para a atuação administrativa, sendo necessária sua enunciação, ou seja, a motivação que, inexistindo, implica cerceamento de defesa do administrado, vilipendiando direitos que lhe são fundamentais. Aliás, como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, "o princípio da motivação é reclamado quer como afirmação do direito político dos cidadãos [...], quer como um direito individual a não se assujeitarem a decisões arbitrárias, pois só têm que se conformar às que forem ajustadas às leis." [27]

Dessa forma, não se pode permitir uma fundamentação implícita dos comportamentos da Administração, o que, nas situações descritas, ensejaria a dúvida sobre os motivos que efetivamente conduziram à adoção de determinada providência.

No Direito Administrativo não se pode admitir, como acontece no âmbito do Direito Privado, que pela autonomia das partes, acorde-se, de uma hora para outra, que o silêncio representará a aquiescência ou negativa de dada proposição. Assim, a enunciação expressa dos motivos que conduzem aos comportamentos administrativos, ao tempo em que são para a Administração a simples forma daquela atuação, são para os administrados o conteúdo das suas liberdades, ou seja, a garantia de que, sem a adoção daquela configuração exterior, não poderia a Administração atentar contra suas liberdades individuais.

Dessa maneira, a consignação expressa dos motivos que conduzem a uma decisão administrativa, longe de representar um culto parnasiano, em que se valoriza a forma pela forma, volta-se a assegurar os interesses dos próprios administrados.

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Ademais, entendemos necessário que o exercente da função pública, além de consignar expressamente as razões que conduziram a cada uma das decisões, o faça de forma prévia ou contemporânea ao ato, evitando qualquer possibilidade de obscurecer-se o mecanismo administrativo por elementos surgidos a posteriori. Sobre tal questão, registramos o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Parece-nos que a exigência de motivação dos atos administrativos, contemporânea à prática do ato, ou pelo menos anterior a ela, há que ser tida como uma regra geral, pois os agentes administrativos não são "donos" da coisa pública, mas simples gestores de interesses de toda a coletividade [...] [28]

Registramos, ainda, identificarmo-nos com o quanto sustentado por Alberto Ramón Real, citado por Celso Antônio Bandeira de Mello [29], para quem a exigência de motivação é requisito de toda atividade administrativa, não se fazendo distinção, para tal fim, entre o comportamento discricionário ou vinculado [30].

Isso porque, como se afirmou noutra passagem, negamos que a discricionariedade se confunda com qualquer margem de liberdade do administrador – havendo, apenas, em algumas situações, uma insuficiência instrumental. Ademais, se o cidadão é o titular do interesse público gerido pelo administrador, não lhe podem ser impostas restrições à fiscalização da atuação administrativa.

No entanto, na hipótese de atuação vinculada, a despeito de não se afastar a obrigatoriedade da motivação, entendemos, em harmonia ao quanto sustentado por Celso Antônio Bandeira de Mello [31], ser possível a revelação da fundamentação a posteriori. Afirma o citado autor:

[...] em se tratando de atos vinculados [...] se o ato não houver sido motivado, mas for possível demonstrar ulteriormente, de maneira indisputavelmente objetiva e para além de qualquer dúvida ou entredúvida, que o motivo exigente do ato preexistia, dever-se-á considerar sanado o vício do ato.

Entendemos, todavia, que, ainda quando se cuide de hipótese de atuação vinculada, há determinadas situações em que, em decorrência da natureza do ato, resta inafastável a prévia consignação da motivação, exempli gratia, nas hipóteses da atuação administrativa resultar em limitação à esfera jurídica dos administrados, recusa a suas pretensões, aplicação de sanções decorrentes de procedimentos administrativos disciplinares, dentre outros. [32]

No que se refere ao princípio da eficiência, por sua vez, entendemo-no realizado sempre que, traçada uma meta, tenham sido empregados os meios adequados a seu alcance com sucesso.

Assim, no âmbito jurídico, a noção de eficiência deve ser compreendida como um mecanismo de medição da proximidade entre os resultados efetivamente atingidos – ou em vias de serem atingidos, já que a eficiência não pode ser apenas uma noção que sirva a análises pretéritas, mas também às presentes - e aqueles que foram visados pela Administração, ou seja, do atendimento do interesse público, obedecendo-se à legalidade.

Todavia, a tentativa de se compreender a eficiência sob uma ótica meramente legalista afigura-se fadada ao insucesso. Isso porque, a noção de eficiência aplicável em Direito Administrativo confunde-se com a própria concepção da "boa administração" [33], não se podendo afirmar eficiente uma atuação administrativa que, a despeito de satisfazer aspectos técnicos da realidade que inscreve dado fato, não a acompanhe na noção da ética.

Assim, não se pode afirmar eficiente, exempli gratia, a atuação de um gestor público que, na tarefa de ver uma determinada proposta legislativa aprovada, favoreça pessoas entregando-lhes cargos para os quais não se revelem competentes. Ora, ainda que sua meta, qual seja, a aprovação da proposta legislativa, tenha sido atingida, não se pode atribuir eficiência a sua atuação, já que, considerando os mecanismos que foram empregados para a consecução do seu desiderato, revela-se reprovável sob o enfoque ético.

Em outras palavras, na análise da eficiência aplicável à Administração, não nos vale a teoria de Maquiavel [34], para quem os fins atingidos pelos governantes justificam os meios por ele empregados. Isso porque, a asseguração da ampla defesa ao administrado – que só será possível quando houver a larga transparência do comportamento administrativo –, ao tempo em que representa um meio para a Administração conhecer a verdade sobre os fatos, significa um fim em si mesmo para o cidadão, garantindo-lhe o gozo da sua liberdade.

Assim, ratificamos o quanto dito acerca do princípio da transparência, não sendo bastante que a Administração decida os pleitos que lhe são dirigidos pelo administrado – ou seja, realize o fim; necessário que, para além disso, seja demonstrada a lisura nos meios empregados, razão pela qual se faz premente a consignação da fundamentação de modo expresso.

Sobre o princípio da moralidade, por seu turno, entendendo estar identificado como a retidão na gestão da coisa pública, deixaremos de tecer maiores considerações, uma vez que as explicações relativas à ética necessária à eficiência da Administração, bem como à noção de impessoalidade alhures abordada, serão aqui inteiramente válidas.

Como se observa, os princípios aqui aludidos – e ainda aqueles que deixamos de mencionar, mas cuja relevância não se apresenta por isso reduzida – encontram-se de tal forma relacionados, que resta dificultosa a tentativa de analisá-los isoladamente, pelo que se conclui que, ao desatendimento de qualquer destes preceitos, a atuação administrativa encontra-se maculada.

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Sobre a autora
Ana Carolina Araújo de Souza

bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia, assessora jurídica da Procuradoria de Justiça Cível do Ministério Público do Estado da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Ana Carolina Araújo. Silêncio administrativo:: uma análise dos seus efeitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1553, 2 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10482. Acesso em: 24 abr. 2024.

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