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O Palacete Franco de Mello e o tombamento do qual padece

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Enquanto aguarda um destino, seja ele qual for, o casarão segue fechado e em processo acelerado de deterioração.

A importância do café como fonte de riquezas para o Brasil, e especialmente para o Sudeste, nos séculos XIX e XX, é fato que compõe o imaginário dos brasileiros, desde a sua passagem pelos bancos escolares. O sucesso da lavoura cafeeira no estado de São Paulo teve consequências importantes para a construção da economia e da política na região, tendo deixado marcas ainda visíveis em sua via mais famosa, a Avenida Paulista.

Os barões e coronéis do café foram responsáveis pela primeira fase de ocupação da Avenida, eminentemente residencial. Grandes e belos casarões foram nela construídos, o que a tornou palco da vida social, política e econômica daquela época.

A maioria desses casarões não resistiu ao tempo, mas alguns ainda persistem na Avenida. Dentre eles, chama bastante atenção o Palacete construído pelo Coronel Joaquim Franco de Mello, em 1905, ainda em pé no atual número 1919 [1] e que sempre pertenceu à mesma família.

O Palacete foi erigido no centro de uma grande área verde. Sua arquitetura valeu-se do estilo eclético, muito popular à época, que mesclava influências do Rococó, do Barroco e do Renascimento, bem ao gosto burguês do período. Foi ampliado nos anos posteriores, o que o deixou com a configuração atual.

Ao longo dos anos seguintes, o bom andamento dos negócios com café e com loteamentos imobiliários enriqueceu a família. Nesse ambiente confortável, o Coronel e a sua esposa Lavínia tiveram três filhos, Raphael, Raul e Rubens. Pai, mãe e Raphael, o filho mais velho, residiram no Palacete até falecerem, em 1937, 1954 e 1978, respectivamente. Os outros dois irmãos, Raul e Rubens, voltaram a morar no casarão nas décadas de 1950 e 1980, respectivamente. Rubens trouxe consigo uma nova geração da família, na pessoa de seu filho Renato Franco de Mello.

Em 1992, o imóvel foi tombado pelos patrimônios municipal e estadual, por meio da Resolução nº 45/CONPRESP/92 [2] e da Resolução SC 36, de 16-11-92 [3] , como “bem cultural de interesse histórico-arquitetônico e cultural” [4]. O tombamento foi colocado sob a responsabilidade do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT).

À época, os proprietários alegaram que não tinham condições financeiras para manter o imóvel nos termos das condições impostas pelo tombamento, que determinavam que deveriam ser conservadas “todas as características internas e externas, a partir da reforma realizada em 1921, e a área verde que lhe é pertinente” [5].

Nesse mesmo ano, os atuais proprietários, Rubens Franco de Mello e sua esposa, ajuizaram ação pedindo o reconhecimento da desapropriação indireta do imóvel, com a consequente indenização no valor do bem, dado que o tombamento lhes havia privado do exercício do direito de propriedade do imóvel e da possibilidade de exploração econômica.

Citando precedente judicial relativo à Casa Modernista de Gregori Warchavchik, os proprietários alegaram que a ocupação do casarão por uma só família não é mais financeiramente possível nos dias de hoje e que o tombamento havia tornado inviável a exploração de parte do imóvel por atividade com fins comerciais [6]. Nesse contexto, o tombamento, embora, em princípio, não implique a perda de propriedade, impõe inúmeras limitações ao direito de propriedade.

A partir da década de 1990, Renato Franco de Mello passou a encabeçar a administração da casa. Para tentar angariar recursos para a manutenção do imóvel, cedeu o espaço para a promoção de eventos, festas, feiras de adoção de animais, bazares, peças de teatro e até para um sebo, algo que o tombamento não permitia e que lhe ocasionou notificações e multas sucessivas [7].

A sentença, de 1995, entendeu que o tombamento impunha restrição absoluta ao direito de propriedade e concedeu indenização aos herdeiros [8]. Essa decisão foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (“TJSP”), em acórdão de 1997 [9]. O Estado, inconformado, seguiu discutindo os valores a serem pagos pelo imóvel e a atribuição dos encargos/obrigações de manutenção da estrutura. Levou a questão ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em valores atualizados, a indenização estaria em torno de R$ 110 milhões [10].

Rubens e Renato não chegaram a ver o desfecho final do processo, pois Rubens faleceu em 2006 e Renato em 2019.

Em junho de 2019, após 27 anos de litígios, o Palacete passou das mãos dos herdeiros para o Governo Estadual, sob a responsabilidade da Secretaria Estadual da Cultura [11]. O processo, contudo, segue em andamento, sendo discutido, agora, o destino da indenização.

Ao longo das três décadas de impasses, o imóvel aguardou, pacientemente, que tivesse fim a multiplicidade de fases processuais, de instâncias e de recursos de um processo em que uma petição inicial de quatro páginas deu origem a autos que, até o momento, já acumularam 18 mil páginas, em inacreditáveis 31 anos de tramitação.

Na última década, o Governo do Estado de São Paulo chegou a anunciar vários destinos para o casarão: museu de Ciências [12] , museu da diversidade LGBT [13] e museu gastronômico [14] , dentre outros, mas ainda não deu início a nenhum desses projetos, apesar de já ser proprietário inconteste do imóvel há quatro anos. A família Mello Franco, por sua vez, desejava que o imóvel fosse remobiliado, com móveis originais do início do século XX, dos quais eram proprietários, e que fosse transformado em uma casa-museu, para mostrar aos visitantes como viviam os moradores da Avenida Paulista nos tempos áureos do café e da Belle Époque [15].

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Enquanto aguarda um destino, seja ele qual for, o casarão segue fechado e em processo acelerado de deterioração. Sua história recente é mais um caso em que o tombamento, que deveria proteger o imóvel, para benefício cultural das gerações posteriores, acabou potencializando o efeito contrário: seu fechamento, inacessibilidade ao público e sua deterioração.

Em vista disso, infelizmente, no caso em questão, o tombamento e o surrealismo jurídico que se seguiu serviram apenas para a autojustificação da existência de todo o sistema administrativo e jurídico e para impedir que esse patrimônio se integrasse, organicamente, à vida quotidiana, algo bem distante dos efeitos pretendidos. Ao fim de três décadas, entretanto, permanecem firmes o desejo e a esperança de que, quando o Palacete finalmente ganhar um destino, não seja tarde demais para a sua já tão comprometida arquitetura.


Notas

[1] https://g1.globo.com/sao-paulo/vc-no-g1-sp/noticia/2013/11/conheca-sua-cidade-casarao-da-paulista-e-alvo-de-acao-e-se-deteriora.html; e https://saopauloantiga.com.br/palacete-franco-de-mello

[2] https://www.imprensaoficial.com.br/DO/BuscaDO2001Documento_11_4.aspx?link=%2f1992%2fdiario%2520oficial%2520do%2520municipio%2fdezembro%2f16%2fpag_0032_DS4OJ7F31R725e0EAEK1G70R0A2.pdf&pagina=32&data=16/12/1992&caderno=Di%C3%A1rio%20Oficial%20do%20Munic%C3%ADpio&paginaordenacao=100032

[3] https://www.imprensaoficial.com.br/DO/BuscaDO2001Documento_11_4.aspx?link=%2f1992%2fexecutivo%2520secao%2520i%2fnovembro%2f17%2fpag_0031_7P83FE3PEESIRe8KADCRSA6FV08.pdf&pagina=31&data=17/11/1992&caderno=Executivo%20I&paginaordenacao=10031

[4] Artigo 1º da Resolução SC 36, de 16-11-92.

[5] Artigo 1º, I, da Resolução nº 45/COMPRESP/92.

[6] https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=1HZWY8HLP0000&processo.foro=53&conversationId=&cbPesquisa=NMPARTE&dadosConsulta.valorConsulta=rubens+franco+de+mello&cdForo=-1&paginaConsulta=

[7] https://www.estadao.com.br/fotos/sao-paulo/o-palacete-franco-de-mello-em-17-publicacoes-do-estado/

[8] Vide link da nota de rodapé nº 6.

[9] Vide link da nota de rodapé nº 6.

[10] https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/requinte-frances-e-disputas-conheca-o-centenario-casarao-abandonado-da-avenida-paulista.phtml

[11] https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/requinte-frances-e-disputas-conheca-o-centenario-casarao-abandonado-da-avenida-paulista.phtml

https://avidanocentro.com.br/blogs/conheca-a-historia-do-misterioso-casarao-que-sobrevive-na-avenida-paulista

[12] https://catracalivre.com.br/agenda/saiba-antes-casarao-na-paulista-vai-virar-museu-de-ciencia

[13] https://santaportal.com.br/geral/gestao-doria-casa-paulista-museu-gastronomia

[14] https://www.cultura.sp.gov.br/governo-do-estado-de-sao-paulo-abre-chamamento-publico-para-concessao-do-casarao-franco-de-mello-2

[15] https://storageproac.blob.core.windows.net/uploads/relato-Renato-Franco-de-Mello.docx

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Sobre as autoras
Anita Mattes

Doutora pela Université Paris-Saclay, Mestre pela Université Panthéon-Sorbone, Professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, Conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), sócia-fundadora do escritório Studio Mattes e Conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

Luciana Amendola Imbriani Kreidel

Advogada empresarial, graduada pela USP, com especializações pela Universidade de Salamanca, pela Fundação Getúlio Vargas, pela ESPM e pelo Insper. É também pesquisadora independente em arte, história e cultura. É consultora jurídica no escritório Studio Mattes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTES, Anita ; KREIDEL, Luciana Amendola Imbriani. O Palacete Franco de Mello e o tombamento do qual padece. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7307, 4 jul. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104917. Acesso em: 27 abr. 2024.

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