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Um destino em processo

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09/07/2023 às 14:11
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3. QUANDO A PENA ENCERRA: A RESSOCIALIZAÇÃO DO APENADO NA SOCIEDADE

Dois anos se passaram. Ou, então, os cinco anos impostos pelo juiz na decisão final de condenação. Ou, ainda, dez, quinze, vinte. A pena um dia chega ao fim. E o que acontece quando ela terminar?

Como a legislação brasileira não permite a prisão perpétua, nem a pena de morte, a pena dada pela Justiça a um condenado sempre será pré-determinada e temporária. O problema é que nem sempre, a sociedade se prepara para isso. Ou, sequer, espera por tanto. Por isso, de nada adianta castigar somente o indivíduo: as penas devem perseguir uma finalidade específica, de modo a dar aos encarcerados condições para que possam ser reintegrados à sociedade de maneira efetiva (FIGUEIREDO NETO, 2009, p. 1).

O desafio, portanto, é fazer com que o preso utilize esse período de reclusão para se preparar ao convívio social para que possa se tornar útil a si mesmo, à sua família e à sociedade. É daí que advém a importância da Lei de Execução Penal (LEP), que, embora necessite de alguns reparos pontuais, ainda pode ser considerada um excelente conjunto de regras execucionais, resultado da decorrência natural da dinâmica da vida em sociedade – especialmente quando confrontada com outras leis penais e processuais já ultrapassadas e antiquadas.

Por este motivo é que, dentre todos os objetivos da Lei de Execução Penal (LEP), talvez o mais importante seja aquele que só terá reflexos fora da penitenciária, ao fim da pena: a ressocialização. Mas, para que realmente consiga se inserir de volta na sociedade, o preso primeiro precisa enfrentar uma pena que seja cumprida de forma digna. Todo o contrário não vai funcionar, é mera falácia.

Com base nisso, é importante manter uma pergunta sempre em evidência: a pena está, de fato, cumprindo a sua função social?

Embora a LEP seja uma tentativa de proteger os direitos básicos e humanos do preso como forma de prepará-lo para o retorno à sociedade, o cumprimento de pena tem uma perspectiva bem diferente do que acontece na prática. Marcão (2012, p. 21) já indicava que “o problema, por aqui, não está na lei, mas na sua reincidente não aplicação”.

De fato. Existe mesmo um abismo existente entre o ideal normativo e a realidade prática que não pode ser resolvido com a edição de outra lei ou com mudanças na lei vigente, por exemplo. O sistema prisional conta, hoje, com cerca de 700 mil presos, o que torna o Brasil a quarta maior população carcerária mundial, segundo Buch (2017). Para todos esses, no entanto, há menos de metade de vagas e, ainda assim, uma condição mínima necessária para se tratar da recuperação de um indivíduo:

Detentos sem colchão para dormir, sem kit-higiene, sem trabalho, sem estudo, coisificados. O sistema está falido e essa falência violenta especialmente a dignidade humana. De outro lado, não há verba para abrir vagas suficientes nas unidades prisionais ou incrementar os recursos humanos. É preciso construir escolas, hospitais, habitação (BUCH, 2017, p. 3).

Viver em meio a esse tipo de contexto explica muito do que se vive hoje, com tanta frequência: muitos egressos saem da prisão e, num pequeno intervalo de tempo, voltam a delinquir, o que se transforma num círculo vicioso de contínuas entradas e saídas dos estabelecimentos prisionais.

Em 1764, o italiano Cesare Beccaria já se perguntava sobre essa efetividade da prisão ao publicar a sua obra Dos delitos e das penas, hoje um clássico mundial do Direito Penal contemporâneo. Questionava-se ele:

Quais serão, entretanto, as penas adequadas a esses delitos? Será a morte uma pena realmente útil e necessária para a segurança e para a boa ordem da sociedade? Serão a tortura e os suplícios justos, e alcançarão eles o fim a que as leis se propõem? Qual será a melhor maneira de prevenir os delitos? Serão as mesmas penas igualmente úteis em todos os tempos? (BECCARIA, 2006, p. 42).

Em um contexto assim, a ressocialização não acontece. Ela precisa se construir no avesso disso: na assistência necessária, nos trabalhos de acompanhamento, na oportunidade de capacitação profissional, na busca pela conscientização psicológica e social, na oferta de uma segunda chance e, principalmente, mediante um olhar atualizado sobre a questão carcerária e a implantação de políticas públicas penitenciárias livre de pré-conceitos e que estejam conectadas definitiva e eficazmente com os princípios e garantias constitucionais. Um exemplo muito prático disso é a possibilidade de transferir o preso para perto de sua família e para o local onde possua raízes, conforme lembra Nery e Júnio, apud Figueiredo Neto (2009).

Dar ao preso a assistência necessária para reintegrá-lo é ressocializar. Ressocializar é procurar compreender as razões que o levaram à prática de delitos, dando-lhe uma chance para mudar, oportunizando um futuro melhor independente dos crimes perpetrados no passado (ROSSINI, 2015, p. 2).

Além disso, é importante lembrar que, sozinha, a pena não consegue reintegrar o indivíduo apenado protegida apenas pelo texto legal. É preciso inserir a isso também outros elementos básicos de dignidade, como a participação da própria família e as oportunidades oferecidas a ele, por exemplo. Bitencourt, apud Mirabete (2006), já reforçava que, por si só,

a ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias, tendem a converter-se num microcosmo no qual se reproduzem e se agravam as grandes contradições que existem no sistema social exterior (...). A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre a sua função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação. (BITENCOURT apud MIRABETE, 2006, p. 2006).

Assim, a dignidade imposta na ressocialização e a salvaguarda de direitos básicos do preso têm a força de resgatar a sua autoestima e lhe trazer condições para um amadurecimento pessoal e profissional. O direito à assistência, por exemplo, é uma das primeiras formas de iniciar esse processo de reabilitação, uma vez que promove valores humanos por meio do simples trato do preso enquanto indivíduo e ser humano.

3.1 A reincidência

A reincidência é o principal indicador da deficiência do sistema prisional e da tentativa do Estado em amenizar os índices de criminalidade. Quando ela acontece, o alerta vermelho deve ser ligado: é um sinal de que a reclusão em penitenciária, durante o cumprimento da pena, não supriu o resultado esperado e não obedeceu as diretrizes trazidas pela LEP.

Mas não é só. Por vezes, a carência e a deficiência não estão só no sistema profissional, mas também na vida social após confinamento: falta de oportunidade no mercado, ausência de qualificação profissional mínima, julgamento dos demais indivíduos, dificuldades para se manter e manter a família, falta de moradia digna também são motivos que podem fazê-los voltar a delinquir.

Presos ao sistema capitalista, eles se sentem obrigados a buscar sustento imediato após a prisão, mas nem sempre encontram portas abertas com tanta facilidade. Nestes casos, as atividades ilícitas acabam se apresentando como única alternativa disponível de retorno à vida normal – o que também acaba ocasionando os incontáveis entra-e-sai das penitenciárias. Essa prática é o exemplo clássico que demonstra o quanto a ressocialização do preso não depende só do Estado e do texto legal: a responsabilidade por tal desafio é de todos os cidadãos.

Segundo Figueiredo (2009), é dever do sistema resolver de forma efetiva as primeiras deficiências apresentadas pela população do cárcere. Isso não está limitado apenas ao controle jurídico e burocrático, mas também à solução das carências sociais: oferecimento de uma moradia temporária e emprego digno, regularização da documentação básica e acompanhamento profissional durante a adaptação à rotina em liberdade. No entanto, segundo lembra Figueiredo Neto (2009, p. 2), quase sempre o serviço público “não consegue atender mais da metade da demanda, deixando muitas pessoas e suas famílias desamparadas, à mercê da própria sorte”.

Em paralelo, também é necessária uma mudança cultural da sociedade para encarar e receber esses presos, com olhar muito mais atento à importância da sua reabilitação – e não somente na mera condenação como pagamento dos seus erros. Neste sentido, fica clara a importância do amparo: sem um projeto de políticas penitenciárias adequado ao que está expresso na LEP, gera-se o fenômeno da reincidência que afeta a toda a sociedade e, por consequência, cadeias, presídios e penitenciárias superlotados.

Como se vê, portanto, o problema não está na lei. A LEP elenca todos os recursos teóricos necessários para se mudar a situação do sistema penitenciário brasileiro. O Estado precisa dar o exemplo e se conscientizar do seu papel, promovendo investimentos para programas de ressocialização.

Apesar de moderna, procurando racionalizar, desburocratizar e flexibilizar o funcionamento do sistema prisional, a Lei de Execuções Penais não tem produzido os resultados concretos almejados por seus autores e esperados pela sociedade. Tal ineficácia está na omissão do Poder Executivo que, procurando de todas as formas dirimir e eximir-se de suas obrigações básicas no plano social, até a presente data não houve investimentos necessários em escolas, em fábricas e fazendas-modelo, ou mesmo comércio; em pessoal especializado e em organizações encarregadas de encontrar postos de trabalho para os presos em regime semiaberto e aberto, principalmente para os egressos dos estabelecimentos penais (ZACARIAS, 2006, apud FIGUEIREDO NETO, 2009, p. 3).

Para Rossini (2015), algumas medidas que devem ser utilizadas pela política pública criminal envolvem a ampliação das possibilidades da substituição da pena privativa de liberdade pelas restritivas de direito ou multa, a redução das prisões cautelares (que devem ser impostas somente quando preencherem os requisitos necessários presentes na lei e não couber outra medida cautelar menos drástica que o cárcere etc.).

Assim, é indispensável o fomento por parte do Estado para atender as necessidades estruturais dos presídios e viabilizar local para que os presos possam praticar atividades físicas, estudar, trabalhar e fazer suas refeições, por exemplo.

3.2 Trabalho como forma de reintegração do preso

O trabalho se apresenta como um processo natural de resgate da dignidade humana do preso e é um direito do preso devido ao importante papel ressocializador que apresenta: interrompe os efeitos corruptores do ócio, ajuda na formação da personalidade, permite que o encarcerado disponha de algum dinheiro para ajudar nas suas necessidades e na subsistência de sua família e viabiliza a estabilidade e a segurança econômica para quando alcançar a liberdade.

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Justamente por este motivo é incentivado pelo art. 28 da LEP que estabelece: “o trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva”. Cunha (2012, p. 30), por exemplo, já dizia: “a laborterapia é uma das mais importantes armas na reinserção do preso ao convívio social”.

O trabalho prisional é, portanto, fator decisivo para a reincorporação social do recluso. Possui, basicamente, duas vertentes complementares uma a outra: enquanto direito viabiliza a inclusão do apenado no sistema progressivo de cumprimento da pena e; enquanto dever, caracteriza-se como importante função de reinserção, dando início ao processo ressocializador.

Também possui uma dupla finalidade: tem caráter educativo e caráter produtivo. O caráter educativo significa a oportunidade de aprendizado e, por conseguinte, uma profissionalização. O caráter produtivo permite a geração de meios financeiros para atendimento às suas necessidades.

Numa feliz síntese, afirma que o trabalho do preso “é imprescindível por uma série de razões: do ponto de vista disciplinar, evita os efeitos corruptores do ócio e contribui para manter a ordem; do ponto de vista sanitário é necessário que o homem trabalhe para conservar seu equilíbrio orgânico e psíquico; do ponto de vista educativo o trabalho contribui para a formação da personalidade do indivíduo; do ponto de vista econômico, permite ao recluso dispor de algum dinheiro para suas necessidades e para subvencionar sua família; do ponto de vista da ressocialização, o homem que conhece um oficio tem mais possibilidades de fazer vida honrada ao sair em liberdade (ARÚS, ANO apud MIRABETE, FABBRINI, 2006, p.90).

No entanto, é importante lembrar também que o trabalho prisional não pode ser obrigatório. Tal determinação é considerada inconstitucional, posto que no art. 5º, incisos XIII e XLVII, alínea “c” da Constituição Federal, o trabalho possui caráter facultativo, uma vez que é assegurada a liberdade de escolha de trabalho, e ainda é proibida a pena de atividades laborais forçadas (OLIVEIRA, 2009, p. 7).

Neste mesmo sentido, as Regras Mínimas da ONU reforçam o fato de que o trabalho prisional não deve ter caráter aflitivo. Pelo contrário. Ele deverá contribuir, por sua natureza, para manter ou aumentar a capacidade do preso de ganhar a vida de forma honrada quando em liberdade. Desta forma, a sua organização e seus métodos devem assemelhar-se àqueles que realizam trabalho similar fora do estabelecimento, de forma a prepará-los para as condições normais do trabalho do trabalho livre (MIRABETE; FABBRINI, 2006).

Isso significa que, na prática, a jornada de trabalho deve variar entre seis e oito horas diárias, com descanso nos domingos e feriados – com exceção de algumas atividades excepcionais. Ele também poderá ser industrial, agrícola ou intelectual, respeitando as aptidões dos presos que estão evidenciadas no estudo da personalidade e outros exames. Além disso, também deve-se considerar a profissão ou ofício que ele desempenhava antes de ingressar na prisão ou, então, oportunizar a ele a escolha pelo trabalho que prefere realizar, o que fará com que se sinta mais motivado (MIRABETE, FABBRINI, 2006).

Seguir tais padrões oferece benefícios para os dois lados. Para o preso, o trabalho prisional se torna um meio de remissão de pena – em que, a cada três dias de trabalho, um será descontado. Para o Estado, é um meio de ressarcimento pelas despesas advindas da condenação. A Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), por exemplo, já apurou que o trabalho prisional faz com que o preso custe menos da metade do valor mensal que o Estado destina para a manutenção de uma pessoa sob custódia. No Estado de Minas Gerais, o preso custa em média R$ 2,7 mil mensais pelo sistema tradicional dos presídios do Estado e R$ 1 mil pelo método de ressocialização da FBCA (MONTENEGRO, 2017).

Porém, nem sempre é isso que acontece. Em geral, há pouca ação do ente público neste sentido e a maioria dos estabelecimentos prisionais espalhados pelo país não têm aproveitado o potencial da mão de obra que os presos disponibilizam (KUEHNE, 2011, p. 32).

3.3 Falência da prisão: a ineficiência da pena privativa de liberdade e a privatização das prisões

Por muito tempo prevaleceu a ideia de que a prisão seria o meio mais apropriado para cumprir com todas as finalidades da pena, inclusive viabilizando a reabilitação do preso. Essa crença, quase uníssona, não é de hoje: a ideia advém do século XIX, quando a prisão se converteu na principal resposta penológica com a criação da pena privativa de liberdade.

De lá para cá, dois séculos já transcorreram. Todavia, muita coisa mudou. A privação da liberdade passou a ser fortemente questionada, principalmente pelos criminalistas e especialistas no assunto que acompanham os seus resultados. O argumento é retórico: ela fez surgiu um grande número de comunidades fechadas para onde passaram ser enviados por indivíduos de diferentes procedências, idades, religião e costumes, obrigados a conviver entre si e a desenvolver obrigatoriamente uma vida própria. O ambiente do cárcere, portanto, transfigura-se num meio artificial, antinatural.

Com base nisso, Bitencourt (2011, p. 162-163) fala em crise do sistema penitenciário e diz que ele “tem sido tão persistente que se pode afirmar, sem exagero, que a prisão está em crise. O objetivo ressocializador no cumprimento da pena privativa de liberdade está compreendido nessa crise, uma vez que as críticas à prisão tradicional relaciona-se à impossibilidade de obter algum efeito positivo sobre o recluso.

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Para o sociólogo africano Stanley Cohen, a ineficácia da prisão é tamanha que não vale a pena a sua reforma, pois manterá sempre seus paradoxos e suas contradições fundamentais. Seguindo o mesmo raciocínio, mas em um enfoque menos radical, alguns autores falam que se torna inatingível o objetivo reabilitador em razão das condições materiais e humanas das prisões.

O motivo para tudo isso está na realidade do sistema prisional hoje – aquele que se vê todos os dias nos noticiários da TV. São graves as deficiências das prisões. Em algumas delas, a violação da dignidade da pessoa humana já se tornou algo rotineiro: maus-tratos verbais (insultos, grosserias etc.) ou de fato (castigo sádicos, crueldade injustificadas); superlotação carcerária; condições deficientes de trabalho; carência de serviços médicos; regime alimentar escasso; elevado índice de consumo de drogas; reiterados abusos sexuais; e ambiente propício à violência, em que impera a utilização de meios brutais, onde sempre se impõe o mais forte (BITENCOURT, 2011).

Segundo ela, “a prisonização leva à desorganização da personalidade, à deformação do caráter, a degradação do comportamento e ao abandono dos padrões de conduta da vida extramuros” (OLIVEIRA, 1996, p.77-78).

Por este motivo, a intervenção das políticas públicas por parte do Poder Público se torna essencial. Um exemplo positivo de alternativas é a que acontece na Penitenciária de Joinville, em Santa Catarina, onde seis empresas locais possuem convênio para viabilizar o trabalho do executado. Os reflexos disso são claros: o índice de reincidência está bem abaixo da média nacional, segundo aponta Oliveira (2009).

Na referida instituição os detentos são uniformizados, as celas estão sempre limpas, e bem iluminadas, a alimentação e os demais itens para a mantença da casa prisional são disponibilizadas por empresas terceirizadas. No que concernem às visitas em tal estabelecimento importa referendar que quando são sociais, ocorrem no pátio coberto, onde estão disponíveis bancos; e se são visitas íntimas, há cerca de dez quartos, equipados com cama de casal, chuveiro quente, rádio e ventilador para os encarcerados disporem de momentos privados com o mínimo de conforto. Conclui-se com tais exemplos demonstrados que a solução do colapso do sistema prisional brasileiro é composta de inúmeros fatores. Entretanto, o principal limiar segundo a linha de raciocínio apresentado e defendido no referido trabalho é a produtividade da população encarcerada, visto que somente assim esses indivíduos serão tratados com trabalho respeito e definitivamente reinseridos na sociedade, pois com isso a ressocialização digna tornar-se-á viável (OLIVEIRA, 2009, p. 7).

Outra alternativa que já se tornou um bom exemplo para o falido sistema prisional, em época de escassez de recursos públicos e crescimento da população carcerária, é o método da Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC), um estabelecimento de ressocialização de presos em cumprimento de pena. A APAC surgiu em São José dos Campos (SP), quando o advogado Mario Ottoboni reuniu um grupo de amigos para buscar alternativas de amenizar os constantes dilemas vivenciados pela população carcerária da cadeia pública municipal.

Na APAC, o preso segue uma rotina de trabalho e educação regular acompanhada por um quadro fixo de funcionários e grupos de voluntários, que proporcionam atividades variadas, como terapia e religiosidade. Os horários para as atuações (dormir, acordar, alimentação, lazer e visitas) são previamente estabelecidos para tudo. Caso o preso não se adapte ao regimento interno, não será recebido. Por este motivo, todos aqueles que ingressam no estabelecimento passam dois meses frequentando um curso de capacitação e orientação. No método da APAC, o preso deverá respeitar o próximo para ser respeitado, e tem plena consciência de sua prática delituosa e do mal social ocasionado.

Ao longo dos anos, as APAC’s têm demonstrado experiências vitoriosas nos Estados onde funciona e, principalmente, números expressivos de recuperação de condenados. E o mais curioso é que a participação do Estado é quase nula (sequer existe a presença da polícia), uma vez que a administração do presídio compete à igreja católica, que indica o seu diretor e gere o presídio com intensa participação da sociedade. A própria comunidade se encarrega de fiscalizar o funcionamento da prisão, mas há sempre um juiz de execução penal e um promotor de justiça acompanhando de perto tudo o que acontece no estabelecimento prisional.

O jurista e filósofo britânico Jeremy Bentham, já nos idos de 1761, imaginou uma prisão nos mesmos moldes das APCs, semiadministrada por particulares. Apesar dos abusos da iniciativa privada e a possibilidade de auferição de lucro, sua ideia era de uma prisão voltada integralmente para o trabalho do preso utilizando da mão de obra carcerária e retirando do Estado a responsabilidade pelo trabalho do preso. Bentham almejava a transformação dos modelos de fábricas existente, efetivamente realizada mediante contrato celebrado entre o poder público e o particular. Contudo, defendia que somente o poder público poderia atuar no tocante à alimentação, saúde, educação, segurança interna e demais necessidades prisionais, posto que se o Estado que prende e que condena os malfeitores da lei (NUNES, 2013).

Dentro desta ideia, a implementação de estabelecimentos prisionais voltados ao trabalho do apenado não retira do Estado continua a função jurisdicional de acompanhamento e responsabilidade – até porque esta é indelegável. O que existe é apenas uma espécie de parceria com o setor privado para o desempenho de atividades meramente administrativas, o que já acontece no Brasil (OLIVEIRA, 2009).

Minas Gerais foi o primeiro Estado brasileiro a adotar a parceria público-privada em seus presídios, no final de 2010, quando construiu e inaugurou do complexo penitenciário em Ribeirão da Neves. Outros Estados também já optaram por uma parceria semelhante: Pernambuco (no Complexo Prisional em Itaquitinga) e Rio Grande do Sul que anunciou a construção de um presídio, em Canoas. Embora esse modelo inovador esteja em grau de experiência, ainda é cedo para se afirmar se ele é eficaz ou não no alcance dos objetivos da pena (punir e ressocializar).

Nunes (2013, p. 375), no entanto, já se antecipa:

na verdade, a privatização dos presídios, no Brasil, não deu certo. Pode até ser que em outros países modelo seja referência, mas no Brasil observou-se que as empresas que administram as prisões se abastecem de lucros, esquecendo a responsabilidade de recuperar o criminoso. Vê-se, assim, que a velha concepção de que o Estado que pune é o mesmo que executa a pena é por demais atualizada e vai demorar algum tempo para ser modificada.

O fato é que a falta de uma eficiente estrutura vem, cada vez mais, conduzindo a um colapso preocupante de falência do sistema prisional – que, inclusive, já foi colocada aos olhos da sociedade pela CPI do Sistema Carcerário, divulgada em junho de 2008.

Buch (2017) considera que o caminho é a redução cada vez mais frequente do encarceramento para, em seu lugar, estruturar-se novas alternativas penais que evitem a privação da liberdade e substituam as prisões provisórias. “Está na hora de evoluirmos em nossa civilidade, porque da forma como a vida tem se mostrado temos é retrocedido. O abismo está olhando para nós. A humanidade necessita viver e sobreviver. Isso não é uma opção, é um imperativo” (BUCH, 2017, p. 3).

3.4 Justiça retributiva x justiça restaurativa

No Direito Penal, a lógica parece ser simples: busca-se retribuir o mal praticado com a aplicação de uma pena, que serve como castigo pela conduta criminosa. Seria, na prática, quase como a aplicação concreta de outro mal, embora legítimo, para combater o mal que lhe deu origem. Para Alves (2013, p. 11), “o Brasil adotou, ainda que de forma inconsciente, a ideia do Direito Penal como solução exclusiva para todos os problemas da sociedade, tipificando algumas condutas como crimes no objetivo do encarceramento, diante da prática de um ilícito”. Por este motivo, fala-se que o Direito Penal enseja a configuração de uma justiça retributiva.

Na justiça retributiva, o que predomina é a privação de liberdade. A punição, portanto, está vinculada tão somente ao ato cometido e não à medida que busca recuperar e ressocializar o indivíduo que a cometeu, a fim de que ele não pratique mais conduta delitiva. A vítima mal aparece: o que se oferece a ela é a justiça em relação àquilo que lhe foi tirado ou atingido.

Esse sistema punitivo atual, no entanto, já se mostrou ineficaz: ao mesmo tempo em que não abarca as necessidades da vítima, também não proporciona a reeducação e ressocialização do infrator. Pouco resultado prático se tem conseguido a fim da pena, o que exige a busca de alternativas penais mais eficazes para conter a crescente criminalidade que abate à sociedade atualmente (SANTOS, CAGLIARI, 2011, p. 191).

Foi assim que nasceu a ideia de uma nova concepção para o sistema, que passou, aos poucos, a afrontar este pensamento ao longo dos anos: a justiça restaurativa.

Nesta nova alternativa penal, os interesses do Estado não são necessariamente lesados pelo crime e a contravenção visa tutelar de forma mais intensa a figura da vítima, que geralmente fica relegada a um segundo plano no Direito Penal (MASSON, 2009). A punição do infrator, portanto, deixa de ser o único objetivo do Direito Penal: o exercício da ação penal é mitigado para dar lugar à conciliação entre os envolvidos – o autor, o coautor ou partícipe e a vítima – que decidem, entre si, a melhor forma de reparação dos danos causados.

Trata-se de um novo paradigma voltado a um mecanismo sancionador do crime e de resposta da justiça. Diferente da concepção tradicional de justiça penal, a justiça restaurativa dá mais atenção ao dano causado às vítimas e à sociedade do que às leis que foram infringidas com a prática de determinado ato. A partir dessa tentativa de humanização dos envolvidos, o método procura identificar as necessidades geradas pelo conflito/crime e ofertar a responsabilização de todos os afetados, de forma a obrigá-los a uma resolução. Em outras palavras, a justiça restaurativa traz soluções sancionatórias sob outra perspectiva, diversa da comum restrição de liberdade, segundo aponta Alves (2013).

O ofensor, neste sentido, pode adquirir os maiores benefícios, uma vez que o seu encontro com a vítima possibilita maior consciência dos danos produzidos e da importância do respeito à lei, fazendo com que ele se sinta mais incluído.

A justiça restaurativa tem como principal finalidade, portanto, não a imposição da pena, mas o reequilíbrio das relações entre agressor e agredido, contando para tanto com o auxílio da comunidade, inicialmente atacada, mas posteriormente desempenhando um papel decisivo na restauração da paz social. Nesse contexto, vislumbra-se justiça com ênfase na reparação do mal proporcionado pelo crime, compreendido como uma violação às pessoas e aos relacionamentos coletivos, e não como uma ruptura com o Estado.

Em verdade, o crime deixa de constituir-se em ato contra o Estado para ser ato contra a comunidade, contra a vítima e ainda contra o seu próprio autor, pois ele também é agredido com a violação do ordenamento jurídico. E, se na justiça retributiva há interesse público na atuação o Direito Penal, na justiça restaurativa tal interesse pertence às pessoas envolvidas nos episódios criminosos (MASSON, 2009, p. 527-528).

É uma reestruturação completa da tradicional concepção de justiça que existe hoje no Brasil. Diferente da mera aplicação fria da lei, que não leva em consideração as questões sociais e emocionais da vítima, a justiça restaurativa busca um processo de socialização e de inclusão social do ofensor, fazendo com que ele se sinta parte de sua comunidade e não simplesmente um infrator que é julgado e estigmatizado (SANTOS; CAGLIARI, 2011).

O processo restaurativo, neste caso, também é público e, de maneira alguma, está apenas limitado à esfera privada. Não haverá, desta forma, a desjudicialização da justiça criminal, nem a privatização do Direito Penal, mas, sim, o pleno exercício comunitário e a concretização de princípios e regras constitucionais por meio das modernas técnicas de mediação, conciliação e transação prevista no ordenamento jurídico (ALVES, 2013).

O primeiro passo para a introdução da justiça restaurativa no Brasil se deu em 1995, com o advento da Lei 9.099, que regulou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Assim, com base no princípio da intervenção mínima, cabe ao legislador deixar de incriminar qualquer conduta que não tenha grande importância para o Direito Penal. Com isso, busca-se flexibilizar a ação penal (para que não seja obrigatoriamente proposta) e restaura-se o estado de paz social sem a necessidade de acionar o instrumento penal coercitivo e unilateralmente adotado pelo poder estatal.

Assim, diante da atual realidade prisional, impossível imaginar que a pessoa que teve a sua liberdade tolhida por conta de um ato delituoso e foi retirada do convívio social para ser confinado em uma cela tenha alguma chance de apresentar uma ressocialização. O processo já está errado desde o início. Isso porque a condição humilhante a que é submetido somente alimentará o próprio ódio e a revolta e lhe dará acesso a verdadeiras aulas de aprimoramento em práticas criminosas. O processo já é falho desde a sua origem.

Neste sentido, é necessária uma reforma no Direito Penal. E tal remodelação pode estar voltada ao cumprimento do princípio da mínima intervenção, para que a pena privativa de liberdade seja utilizada somente nos casos em que não exista outra solução para a proteção do bem jurídico. Isso evita, principalmente, a prisão desnecessária de muita gente e, em consequência, também o aumento da população carcerária.

Não se trata, no entanto, de deixar de punir, mas, sim, de propor coerência à maneira como percebe-se a punição hoje. A partir de uma perspectiva de conciliação e diálogo, proposta pela justiça restaurativa, o infrator tem a oportunidade de reparar o dano por iniciativa própria, ao invés de ser, meramente, jogado coercitivamente à restrição de liberdade. Trata-se de prezar ainda mais pela ressocialização tão discutida e almejada, menos ofensiva ao infrator.

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Sobre o autor
Edward Müller Pickler

Bacharel em Direito. Escritor de obras jurídicas em Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PICKLER, Edward Müller. Um destino em processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7312, 9 jul. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/104964. Acesso em: 22 nov. 2024.

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