A discussão acerca da função social da obra de arte não é recente, nem deságua em acordo simples e pacífico. O artista serve como arauto da sociedade de cada época. Através de sua obra, diz à sociedade como pensa e convoca os indivíduos a pensar a sua própria versão da sociedade. Como tantas foram e serão as épocas, e como tantos foram e serão os indivíduos, múltiplas são as funções da arte.
Nos tempos atuais, vemos a arte como um convite (às vezes bastante incômodo) para o pensamento crítico e para a reflexão ética. Excessivos conflitos, às vezes judicializados, decorreram recentemente desta situação: lembremo-nos das discussões acerca da exposição “Queermuseu” e sobre a peça de teatro “O evangelho segundo Jesus, rainha do céu”, que deram muito o que falar nos círculos conservadores. Mas, independentemente das forças autoritárias que pretendem impor uma só versão de mundo, sem contemplar as múltiplas culturas que compõem a sociedade, a função de fazer refletir o aqui e o agora, assumida pela arte, se afirma fortemente.
Contudo, para além da função social da obra de arte em si, há uma outra abordagem sobre a qual este texto convida a pensar: a comunicação ou execução pública de uma obra de arte está se dando atualmente em um ambiente socialmente responsável?
Em outras palavras, os eventos artísticos, sejam eles concertos, exposições de artes visuais, festivais musicais, eventos multimeios, espaços de visitação exterior, têm sido pensados no sentido de convidar e receber com responsabilidade as diversidades e as necessidades da sociedade? E as entidades envolvidas num evento cultural, como o patrocinador, o artista de renome ou o poder público, estão preocupados com isto?
Estes questionamentos são cada vez mais comuns e como resposta temos presenciado algumas qualificadas fórmulas de verificação de responsabilidade ambiental, social e empresarial em eventos culturais de um modo geral. Vemos que, muito além do atendimento das normas legais que estão implicadas em uma produção cultural, parâmetros éticos têm sido utilizados para avaliar a conveniência de um nome ou uma marca se aliar a uma proposta de evento ou exposição.
A metodologia que vem sendo majoritariamente aplicada para esta avaliação da responsabilidade social de um evento artístico-cultural é o do conceito ESG, que vem do inglês environmental, social and governance, remetendo à responsabilidade ambiental, social e empresarial num conjunto de melhores práticas para negócios, de qualquer natureza.
O ESG nasceu nos primeiros anos do século XXI, em uma parceria do Banco Mundial com a Organização das Nações Unidas e um grupo de instituições financeiras de grande porte, resultante em um documento chamado “Who Cares Wins”, ou, em livre tradução, Quem se importa, ganha. Na busca de investimentos sustentáveis, o ESG tem se tornado desde então uma base ética para os planos de negócio. Nada mais natural, portanto, que empreendimentos de arte e cultura atentarem para esta métrica de avaliação de impactos positivos e negativos da realização.
Imaginemos a abertura de um grande festival de arte e cultura com apresentações cênicas e musicais e exposições visuais. Agora pensemos, neste contexto, quem são os prestadores de serviço envolvidos; eles estão sendo remunerados dignamente ou estão estabelecidos em alojamentos precários, em regime análogo à escravidão?
São incentivadas as admissões de prestadores portadores de necessidades especiais, idosos, pretos, mulheres e LGBTQIAPN+ ou são toleradas piadas e discriminação no ambiente da produção? E sob o aspecto do tratamento do público, existem campanhas efetivas de combate ao assédio sexual e protocolos de atendimento de eventuais ocorrências neste sentido?
Sob o ponto de vista ambiental, o evento que estamos imaginando, adotou estratégias de economia energética? O material cenográfico é reciclável? Qual o impacto ambiental da realização em termos de lixo produzido e em termos de emissão de ruídos sonoros que possam comprometer a vida silvestre da vizinhança ou incomodar os moradores do entorno?
E ainda, sob o enfoque da governança, esta produção tem adotado boas práticas de tratamento de dados pessoais dos espectadores? Trata-se de uma empresa produtora que recolhe todos os tributos devidos em virtude da percepção de patrocínios e da venda de ingressos? Os acordos com sindicatos de empregados são honestamente estabelecidos e depois são respeitados?
São múltiplas vertentes de análise, a depender da tipologia do evento, do público pretendido e do conteúdo artístico veiculado, e o seu resultado aponta para um novo tipo de valor de um evento, o quanto ele é ou não responsável. Com base nestas conclusões, o público tem buscado estar ou fugir de uma realização e os patrocinadores têm desejado aliar sua marca ou não àquele evento.
Não é à toa que o Festival de Cinema de Cannes, na França, em 2018, anunciou uma linha telefônica para acolhimento de vítimas ou testemunhas de assédio sexual em suas dependências, iniciativa que foi replicada no ano seguinte pelo Festival Sundance de Cinema, nos Estados Unidos.
E também, pelos mesmos motivos, vimos em 2022 o Rock in Rio divulgar massivamente sua agenda sustentável desenvolvida desde 2001: ações green ou ecologicamente engajadas, foram prioridade da produção do evento.
Ações responsáveis no contexto das produções artísticas, em espaços de eventos e em indústrias colaterais aos eventos como a fonográfica, da moda, da publicidade, de games, de mídias convergentes, dentre outras, são cada vez mais bem-vindas!
Concluímos assim que um empreendimento artístico-cultural não pode mais se posicionar à margem das métricas da sustentabilidade, da responsabilidade e do respeito. Por mais que a obra artística tenha uma função social, está na hora do empreendedor cultural também atentar para isto!