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Descriminalização do porte de drogas para consumo próprio pode resultar em crime de receptação

10/08/2023 às 10:00

Resumo:


  • O Supremo Tribunal Federal (STF) está julgando o Recurso Extraordinário n° 635.659, que pode levar à descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, com base na alegada inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/06).

  • Até o momento do julgamento, quatro ministros votaram pela descriminalização, mas com divergências quanto aos critérios e extensão da medida, principalmente em relação à maconha e à quantidade que caracterizaria o consumo próprio.

  • A discussão jurídica se aprofunda ao considerar as implicações de uma eventual decisão favorável ao recurso, levantando a possibilidade de que, na ausência do art. 28, condutas de porte poderiam se enquadrar em outros tipos penais, como o crime de receptação previsto no art. 180 do Código Penal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Embora todos os ministros votantes até agora sejam favoráveis à descriminalização da conduta de porte de drogas para consumo pessoal, não há consenso sobre o alcance dos efeitos da decisão.

Nos últimos dias, o país está com os olhos voltados para Supremo Tribunal Federal aguardando o desenrolar do julgamento do Recurso Extraordinário n° 635.659 de relatoria do Ministro Gilmar Mendes com repercussão geral, portanto o resultado deste recurso terá efeito erga omnes, estendendo-se a todo o país.

Em suma, este recurso busca a declaração da inconstitucionalidade do art. 28, da Lei 11.343/06, mais conhecida com a Lei de Drogas. Na prática, o que se visa com a declaração da inconstitucionalidade do art. 28 que tipifica o crime de porte de drogas para consumo próprio seria uma espécie de abolitio criminis pela via do controle de constitucionalidade.

O êxito da pretensão do mérito recursal acarretaria, em tese, a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, por esta razão tem-se gerado intenso debate sobre a matéria no âmbito do Congresso Nacional e da sociedade em geral, intensificando-se os debates jurídicos e políticos, tanto em razão do mérito quanto de suposta usurpação de competência legislativa do Congresso pelo STF.

Atendo-se exclusivamente às questões judiciais, iniciado o julgamento vemos uma propensão dos Ministros da Corte para descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. Até o momento, temos um placar de quatro votos pela descriminalização e nenhum contra, sendo eles: o Ministro Gilmar Mendes (relator), Edson Fachin, Barroso e Alexandre de Moraes.

Embora todos os ministros votantes sejam favoráveis a descriminalização da conduta, não há entre eles consenso no alcance dos efeitos da decisão, sendo que cada ministro sugere adoção de critérios diferentes.

Para Gilmar Mendes, relator, o art. 28, da lei de Drogas deve ser integralmente declarado inconstitucional para que o efeito da decisão abranja qualquer substância que seja considerada como droga.

Já o ministro Edson Fachin acompanhou parcialmente o relator, no entanto, a destacou que a descriminalização deve ser estendida apenas à maconha, permanecendo a proibição ao porte das demais substâncias, ainda que para o consumo próprio.

No voto do ministro Luís Roberto Barroso, assim como o ministro Fachin estabeleceu que a descriminalização deve se estender apenas à maconha, mas acrescentou a necessidade de se estabelecer critérios objetivos para a apuração da intenção do porte do agente. Para ele é necessária a fixação do limite de até 25 gramas de maconha ou de até seis plantas fêmeas para definição de consumo próprio.

Por fim, o ministro Alexandre de Moraes também limitou a liberação do porte da maconha, seguindo o entendimento do ministro Barroso de aplicação de critério objetivo para verificação da condição de consumo próprio, no entanto, permitiu que esse critério objetivo variasse de 25 a 60 gramas, mas destacou que esse critério objetivo não deve ser o único para a verificação da condição de uso pessoal, mas deve ser analisado o contexto fático do caso concreto.

Havendo tantos pontos divergentes entre os ministros que impossibilitasse a adoção de um critério certo e determinado, o relator solicitou a suspensão do julgamento para o alinhamento da questão entre os ministros para que haja a adoção de critério único para a análise.

Não obstante as divergências da extensão dos efeitos da decisão, o Supremo Tribunal Federal caminha no sentido da descriminalização do porte para consumo próprio, da maconha ao menos, tendo como base uma pretensa inconstitucionalidade do art. 28, da lei de drogas, mas com a modulação dos efeitos da decisão.

Ocorre que no atual cenário jurídico, o porte de drogas para consumo pessoal encontra-se tipificado em lei especial (lei de drogas) e em razão do princípio da especialidade que dispõe que a lei especial deve ser aplicada em detrimento de lei geral. O artigo 28 desta lei especial tutela a proibição do porte de substâncias consideradas como droga pela Portaria 344/98 da ANVISA, tipificando como crime no preceito primário da norma e dispondo das penas no seu preceito secundário.

Muito já se debateu na doutrina e na jurisprudência a respeito da natureza jurídica das penas do artigo 28, por serem penas sui generis, inexistindo outras penalidades de caráter criminal semelhantes no ordenamento jurídico pátrio, uma vez que prevê como pena apenas “advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”, não havendo a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade em hipótese alguma, ainda que em contexto de reincidência.

O debate da doutrina e da jurisprudência girava em torno do entendimento de que a própria lei 11.343/06 havia ela descriminalizado a conduta do agente que portasse droga para o próprio consumo. Tal entendimento se deu em razão dessa lei ter revogado a antiga lei 6.368/76 que previa no seu art. 16 uma pena de detenção de 6 meses a 2 anos, bem como o pagamento de 20 a 50 dias-multa.

Com o advento da “nova” lei e a extinção da pena de multa e de privação de liberdade parte da doutrina e jurisprudência, à época, passou entender pela descriminalização da conduta, mas não foi o que prevaleceu. O entendimento dominante foi o de que não houve uma descriminalização da conduta pelo legislador, mas uma mera descarcerização por questão de política criminal, mas mantendo o rótulo de crime na conduta, o que embora não possa gerar a prisão do indivíduo de per si, mas poderia ter diversos tipos de reflexos na vida no indivíduo, inclusive na aplicação de benefícios carcerários na execução penal.

Assim, estando de volta a discussão da temática, é necessário que haja uma reflexão acerca de possíveis efeitos em caso de procedência do RE n° 635.659 e a fixação de tese do Supremo Tribunal Federal pela descriminalização do porte pessoal de droga ou da maconha isoladamente.

Pois bem, como mencionado anteriormente o que determina que essa matéria é disciplinada pelo art. 28 da lei de drogas e não por outra norma qualquer é o princípio da especialidade que afasta a aplicabilidade de uma norma geral ante a existência de norma especial que discipline a matéria.

Mas e se a norma especial deixar de existir no mundo do direito em razão de uma declaração de inconstitucionalidade?

Por diversas vezes o próprio STF, em especial na ADI 3148 TO, já deixou claro que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou dispositivo legal torna-o nulo de pleno direito, devendo seus efeitos serem extirpados do mundo jurídico como se nunca tivessem existido, tendo esta decisão um verdadeiro efeito repristinatório.

Portanto, a declaração da inconstitucionalidade do art. 28 da lei de drogas, pode apagar o crime de porte de drogas para consumo próprio, no entanto, não significa que haverá uma automática extinção da conduta como fato típico penalmente punível, mas apenas a aplicabilidade de uma norma especializada à conduta. Havendo um tipo penal diverso, mas que se amolde perfeitamente à conduta de portar substância prevista como droga, poderia aplicar-se então a penalidade a ele cominada.

Considerando isso e analisando os tipos penais existentes, é possível verificar-se a compatibilidade da referida conduta, amoldando perfeitamente ao preceito primário do crime de receptação previsto no art. 180, do Código Penal, explico.

A receptação é um crime de ação múltipla, ou um tipo misto alternativo, que qualquer de seus verbos de forma cumulativa ou isoladamente já é suficiente para a configuração do delito, assim dispondo:

Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.   

Quando analisamos a conduta de um agente que porta algum tipo de substância entorpecente com o objetivo de usá-la, inevitavelmente este agente ou estará transportando ou estará conduzindo esta substância, e por vezes terá adquirido ou recebido de outrem, somente não havendo tipicidade no caso de cultura própria em que o indivíduo planta em casa e lá mesmo a consome.

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Ademais, é elementar do tipo penal a consciência do agente ser produto de crime. Quando se vê que o RE n° 635.659 questiona a constitucionalidade apenas do art. 28 da lei de drogas, não sendo objeto de questionamentos o art. 33 da mesma lei (tráfico de drogas), então não há possibilidade de declaração neste sentido, permanecendo incólume este dispositivo no ordenamento jurídico.

Assim, quem quer que porte droga advinda do tráfico de drogas, possuindo a consciência de sua origem estará incorrendo na conduta do crime de receptação, uma vez que a origem criminosa da substância conduz à ilicitude de quem a adquire, inexoravelmente incorrendo em crime de receptação, assim como quem adquire um produto qualquer advindo de furto ou roubo, com mais razão abrangeria quem adquire produto do tráfico de drogas por ser conduta mais gravosa que aquelas.

O delito de receptação é considerado um crime parasitário, ou seja, ele é dependente da existência prévia de outro delito para que exista, pois só haverá a receptação de houver um delito que gere algum produto.

Conquanto a receptação esteja previsto no Título II, Dos crimes contra o patrimônio, a doutrina e a jurisprudência são pacíficas em admitir a desnecessidade da infração antecedente ser um crime contra o patrimônio, como por exemplo, quem adquire, recebe, transporta, conduz ou oculta, em proveito próprio ou alheio coisa que sabe ser produto de peculato (art. 312, CP), incorrerá em receptação, mesmo sendo a infração antecedente um crime contra a administração pública e não contra o patrimônio, ou mesmo quem comete essas condutas sabendo ter sido produto de violação de direito de autor (art. 184, CP), incorrerá também em receptação, mesmo que a infração antecedente ser um crime contra a propriedade imaterial e não contra o patrimônio e assim sucessivamente.

Por fim, para complementação do tipo penal, há a necessidade do preenchimento do especial fim de agir do tipo, estar portando em proveito próprio, o que por si só já fica demonstrado quando o agente porta a droga na intenção de usá-la para obtenção de um prazer advindo dos seus efeitos.

Devemos ainda considerar a possibilidade de argumentação contrária alegando a impossibilidade de aplicação da norma do art. 180 em razão da atipicidade material pela pequena quantidade de droga, aplicando-se o princípio da bagatela. Até podemos admitir tal argumentação, por ser um princípio amplamente admitido na jurisprudência, todavia também é entendimento pacificado nos tribunais superiores que a reiteração delitiva nesses crimes de bagatela afasta a atipicidade material da conduta, haja vista que a tipicidade formal não é afastada pela insignificância.

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

Restando demonstrada a tipicidade da conduta, resta discutir sobre a aplicação do preceito secundário da aplicação do dispositivo do art. 180. Como citado anteriormente, ao crime de receptação é aplicável uma pena de reclusão de um a quatro anos e multa, o que mais se assemelha a antiga pena aplicável anteriormente à vigência da lei 11.343/06.

Havendo essa interpretação que aqui levantamos, haveria uma espécie de novatio legis in pejus, que embora na realidade não se trate de uma nova lei, mas o efeito represtinatório da declaração de inconstitucionalidade de uma norma traria consequências semelhantes, devendo-se aplicar todos os princípios constitucionais a respeito de nova lei mais prejudicial ao réu, aplicando-se apenas aos crimes cometidos a partir da publicação do acórdão retirando do mundo jurídico o art. 28 da lei de drogas.

Assevera-se que a declaração de inconstitucionalidade de uma norma possui efeitos amplos, inclusive podendo haver consequências indesejadas não previstas por quem a suscitou.

O que significaria na prática um tiro que saiu pela culatra dado por aqueles visam a todo custo descriminalizar o uso de drogas no país, ainda mais se utilizando de atalho pela via judicial de questão que deve ser debatida pelos representantes eleitos pelo voto popular por ser uma matéria tão sensível à realidade brasileira, sobretudo àqueles que vivem em locais mais vulneráveis a ação de traficantes e usuários .

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Sobre o autor
Paulo Sergio Lendengues Gaita

Policial Penal do Estado do Tocantins. Bacharel em Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAITA, Paulo Sergio Lendengues. Descriminalização do porte de drogas para consumo próprio pode resultar em crime de receptação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7344, 10 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105507. Acesso em: 22 dez. 2024.

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