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Decisões boas já nascem com prazo certo de vida

23/10/2007 às 00:00
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Interpretando o sentido do art. 100 da Constituição Federal, que submete os pagamentos resultantes de condenação judicial da Fazenda Pública à ordem cronológica de apresentação dos precatórios, com exceção dos créditos de natureza alimentícia, a Corte Suprema entendeu ser necessária a formação de fila específica para precatórios alimentícios.

Antes de o STF assim decidir, estados e municípios já utilizavam duas filas distintas, por imposições de ordem prática. Não haveria como pagar de uma só vez, no mesmo dia, centenas ou milhares de credores a título de crédito alimentício.

Com o advento da Emenda Constitucional nº 30/00, que parcelou os créditos não alimentares em até dez prestações anuais, conferindo poder liberatório às parcelas inadimplidas nos prazos respectivos, os entes políticos devedores passaram a privilegiar estes créditos em detrimento dos créditos alimentícios, aparentemente desprovidos de qualquer sanção em caso de inadimplemento.

Assim, o privilégio conferido aos créditos alimentícios, na prática, resultou em verdadeiro tiro no pé. Digo na prática, porque o legislador constituinte não é tão ingênuo, nem tão maldoso ao ponto de conferir um presente de grego aos credores alimentícios, que já estavam e continuam morrendo na fila dos precatórios.

Parece claro que a regra do § 2º do art. 100 da Constituição Federal, que autoriza o seqüestro de dinheiro do Poder Público "exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência", não deve ser interpretada literalmente.

Esse preceito, que vem de Constituições anteriores, quando não existiam duas filas distintas de ordens cronológicas, há de ser interpretado à luz da realidade atual.

Hoje, para saber se houve ou não preterição no direito de precedência impõe-se, à toda evidência, o cotejo entre as duas listas de credores que compõem as ordens cronológicas de credores alimentícios e credores comuns. Do contrário, os credores alimentícios, titulares de privilégio constitucional, só seriam pagos depois de esgotada a fila de precatórios de credores comuns. E sabemos que essa fila jamais acabará, porque novos credores da espécie estão nela ingressando, aos milhares, todos os anos.

Pois bem, depois, de mais uma década de posicionamento em prejuízo dos credores alimentícios, o E. Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu o primeiro seqüestro de verbas alimentícias contra o Município de Santo André, por preterição no direito de precedência em relação às ordens cronológicas números 2/98, 6/99, 10/99, 7/99 e 8/00, em virtude dos pagamentos feitos ao primeiro décimo dos precatórios comuns mais novos.

Essa r. decisão salutar, de inegável alcance jurídico, político, administrativo e moral, que serviria para colocar um ponto final no mau comportamento de prefeitos e governadores, desprovidos de senso humanitário, que vêm ignorando os milhares de credores alimentícios, que estão morrendo na fila de precatórios, teve uma vida bem curta.

O STF, por decisão do eminente Min. Joaquim Barbosa, sustou o cumprimento do seqüestro determinado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o conhecido fundamento do "impacto econômico" da medida deferida e sob a alegação de que em se tratando de duas ordem diferentes de precatórios, o pagamento de um não implica quebra da precedência da ordem cronológica do outro tipo de precatório.

Dentro dessa linha de raciocínio, poder-se-ia dizer que se a fila de precatórios alimentícios ficasse congelada por 99 (noventa e nove) anos, enquanto a outra fila de precatórios comuns fosse andando ao logo desse período de quase um século, não haveria que se cogitar de quebra do direito de preferência. Como dificilmente alguém consegue sobreviver por mais de 99 anos, a sentença condenatória proferida contra a Fazenda Pública, para pagamento de verba de natureza alimentícia, já nasceria desprovida de eficácia, isto é, representaria exatamente um nada.

Não é por outra razão que o culto Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Celso Limongi, na brilhante decisão que ordenou o seqüestro assim se expressou em sua parte final:

"Registre-se, por fim, lamentavelmente, as Faculdades de Direito e as Escolas de Magistratura não se preocupam tanto em ministrar cursos multidisciplinares, com predominância do conteúdo humanístico. Para bem aprender a realidade que o cerca e, assim, poder julgar melhor e com justiça, o juiz precisaria ser auxiliado pelas ciências sociais. Dessa forma, necessitaria o julgador de conhecimento de economia, sociologia, psicologia, filosofia e até de contabilidade, para aferir o impacto das suas decisões, por exemplo, nos cofre públicos, no meio ambiente, no seio de uma pessoa jurídica ou de uma família. Em suma, o direito é o instrumento para a concepção da Justiça, que, no caso, se expressa pelo deferimento do seqüestro."

Para encerrar, os governantes que armam bombas de efeito retardado não têm o direito de reclamar do "impacto" causado pelo estrondo, quando a bomba explode em suas mãos.

Ironicamente, créditos líquidos e certos, resultantes de condenações judiciais são sempre "impagáveis", ao passo que outros créditos, resultantes de contratos administrativos celebrados com empreiteiras diversas, alguns de duvidosa legalidade, são prontamente pagos, sem necessidade de intervenção do Judiciário. Em outras palavras, paga-se o que o governante quer, não importando os dispositivos legais ou constitucionais, nem as decisões da Justiça, visto que ela própria, não raras vezes, vem dispensando o seu cumprimento.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Decisões boas já nascem com prazo certo de vida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1574, 23 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10556. Acesso em: 26 abr. 2024.

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