INTRODUÇÃO
Relativamente recente no direito processual brasileiro, o acordo de não persecução penal – inserido pela Lei 13.964/19 – ainda desperta polêmicas em alguns aspectos relacionados a sua aplicação.
Um desses debates é sobre a possibilidade de rejeição da denúncia pelo Juízo ante o não oferecimento do acordo de não persecução penal pelo Ministério Público. É o que se pretende abordar neste artigo.
O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
O acordo de não persecução penal surgiu no direito brasileiro, inicialmente, por meio de iniciativa do Conselho Nacional do Ministério Público, com a edição da Resolução 181, de 07 de agosto de 2017.
Pouco tempo depois, entrou em vigor o artigo 28-A, da Lei 13.964/19, estabelecendo os requisitos atualmente vigentes para o oferecimento do acordo. É o que estabelece o referido artigo:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:(...)
Segundo a referida a lei, portanto, os requisitos para a proposta do acordo são:
• confissão da prática do crime;
• infração penal sem violência ou grave ameaça à pessoa;
• pena mínima inferior a 4 (quatro) anos;
• não ser o caso de transação penal;
• não ser o agente reincidente e não haver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;
• não ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores à prática da infração penal em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e
• não se tratar de crime praticado no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino;
Preenchidos tais requisitos, surge para o investigado/acusado/réu a viabilidade de acordo de não persecução penal perante Ministério Público. A pergunta que se faz neste artigo é: presentes os requisitos legais, pode o Ministério Público deixar de oferecer o acordo? E, uma vez não oferecido, pode o magistrado rejeitar a denúncia por ausência de condição de procedibilidade?
O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL COMO CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE.
Uma primeira corrente defende que o oferecimento ou não do acordo de não persecução estaria inserido dentro do âmbito de discricionariedade do Ministério Público. A única forma de controle do não oferecimento do acordo pelo promotor de justiça seria de alçada do próprio Ministério Público, por meio do recurso previsto no parágrafo 4º do art. 28-A, CPP, que prevê a remessa dos autos para órgão superior do próprio órgão acusador.
Essa posição, de certa forma, foi recentemente validada pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do agravo regimental em recurso especial nº 2.047.673/TO, de relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que o “oferecimento ou não da proposta de ANPP não é condição de procedibilidade da ação penal a ensejar a rejeição da denúncia”1.
Apesar da decisão da 5ª Turma, a questão está longe de estar pacificada.
Recentemente, a 16ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão relatado pelo Desembargador Marcos Alexandre Coelho Zilli, entendeu em sentido diverso.
De acordo com o Desembargador – professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo – o “uso do modo de justiça consensual não é opção fundada no absoluto poder dispositivo das partes. Em realidade, é antecedente lógico e necessário do uso do modo disputado de justiça”. Ainda, segundo o professor, nos casos em que os requisitos legais estão previstos, “a etapa consensual é obrigatória” e “a recusa injustificada ao uso dos meios consensuais – despenalizadores e não estigmatizantes – deve ser alvo de controle judicial”2.
No mesmo sentido foi a decisão da 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça Paulista que manteve decisão de primeira instância que havia rejeitado denúncia pelo não oferecimento do acordo de não persecução penal3.
No caso, o Ministério Público havia oferecido denúncia por tráfico de drogas (art. 33, Lei 11.343/06), mas o Juízo vislumbrou, de plano, a possibilidade de aplicação da causa de diminuição do parágrafo 4º do artigo 33, Lei 11.343/06, o que tornaria cabível o ANPP4.
Em hipóteses como tais, em que presentes objetivamente os requisitos para oferecimento do ANPP, caso não seja oferecido, deverá a denúncia ser rejeitada pelo Poder Judiciário em razão de ausência de interesse de agir, conforme bem pontuado pelo Des. Marcos Zilli, no acórdão supracitado: “Não haverá interesse de agir necessidade - no uso da via disputada, enquanto não esgotada a possibilidade do uso da via consensual. Logo, o interesse de agir do órgão acusador na promoção da ação penal vincula-se, igualmente, ao esgotamento do interesse primário do Estado no uso da justiça consensual. Nessa quadratura, o controle judicial posta-se como impedimento ao exercício da ação penal, seja pela via da rejeição liminar (art. 395 do CPP), seja pela via do trancamento da ação penal, reconhecendo-se, dessa forma, o constrangimento ilegal pela inobservância das políticas criminais de harmonização dos espaços de intersecção entre o modo consensual e o modo disputado de realização de justiça”
Ou, ainda, conforme o Des. Heitor Donizette de Oliveira: “ao constatar que a recusa foge das hipóteses legais, o magistrado não pode quedar-se inerte e silente, validando recusa imotivada, sendo necessário reconhecer a ausência de justa causa para propositura da ação penal, nos moldes da decisão impugnada”.
A justa causa, como há muito ensina o professor e jurista Afrânio Silva Jardim5: “é suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado. Tal lastro probatório nos é fornecido pelo inquérito policial ou pelas peças de informação, que devem acompanhar a acusação penal, arts. 12, 39, § 5°, e 46, § 1° do CPP.”
Dessa forma, entende-se que o não oferecimento do acordo de não persecução penal, embora seja um poder-dever do Ministério Público (conforme entendimento do STJ no já mencionado AgRg no REsp n. 2.047.673/TO), não pode ser ato insindicável pelo Poder Judiciário sob pena de afronta à garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional6 (art. 5º, XXXV, CF) e do próprio devido processo legal7 (art. 5º, LIV, CF).
CONLCUSÃO.
Após breves considerações sobre o tema, a conclusão deste artigo é que o oferecimento do acordo de não persecução penal nas hipóteses em que presentes os requisitos legais é condição de procedibilidade da ação penal. Assim, caso não oferecido o acordo nessa hipótese, deve o judiciário rejeitar a denúncia, por falta de justa causa e de interesse processual. A atuação do Judiciário, neste caso, é corolário da inafastabilidade do controle jurisdicional e da garantia do devido processo legal.
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“PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ART. 28-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. LEI 13.964/2019. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. NÃO OFERECIMENTO. PODER-DEVER DO MINISTÉRIO PÚBLICO. FUNDAMENTAÇÃO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE DA AÇÃO PENAL. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. PRECEDENTES. AGRAVO NÃO PROVIDO.
1. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido de que compete ao Ministério Público avaliar, fundamentadamente, se é cabível, no caso concreto, propor o acordo de não persecução penal, razão por que o referido negócio jurídico pré-processual não constitui direito subjetivo do investigado.
2. O oferecimento ou não da proposta de ANPP não é condição de procedibilidade da ação penal, a ensejar a rejeição da denúncia, nos termos do art. 395, II, do CPP.
3. Hipótese em que, após o oferecimento da denúncia, o magistrado intimou o promotor de justiça para esclarecer o não oferecimento da ANPP, oportunidade em que, após a cota ministerial, concluiu pelo preenchimento dos requisitos legais pelo acusado, rejeitando a denúncia, e determinou a remessa dos autos ao órgão superior do Ministério Público, nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP.
4. Não apresentada a proposta de ANPP, cabe ao magistrado tão somente apreciar a admissibilidade da denúncia e, caso recebida a peça acusatória e realizada a citação, o acusado terá ciência da recusa ministerial em propor o acordo, podendo, na primeira oportunidade, requerer ao juízo a remessa dos autos ao órgão de revisão do Ministério Público.
5. Agravo regimental não provido” (STJ, AgRg no REsp n. 2.047.673/TO, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 28/2/2023, DJe de 6/3/2023).︎
TJSP, 16ª Câm. Dir. Criminal, Rese nº 0000781-42.2021.8.26.0695, Rel. Des. Marcos Alexandre Coelho Zilli, j. 26/11/21.︎
“Recurso em sentido estrito – Tráfico de entorpecentes Negativa de propositura de acordo de não persecução penal – Posição institucional - Rejeição da denúncia por ausência de justa causa - Elementos indiciários apontando para a prática de tráfico privilegiado - Não hediondez do tráfico privilegiado Ausência de impedimento legal – Decisão mantida Recurso da acusação NÃO PROVIDO” (TJSP, 12ª Câm. Dir. Criminal, Rese nº 1504864-70.2021.8.26.0228, Rel. Des. Heitor Donizete de Oliveira, j. 17/02/22).︎
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Recentemente, aliás, o STF decidiu pelo cabimento do ANPP para casos de tráfico privilegiado: “10. Uma vez denunciadas pelo crime do art. 33, caput, c/c art. 40, inc. I, da Lei nº 11.343, de 2006 (tráfico de drogas transnacional), as pacientes, de fato, não faziam jus ao benefício, o qual se tornou possível, porém, ante o reconhecimento, no título condenatório, da incidência da causa de diminuição do § 4º do art. 33 da Lei de Drogas. 11. Conforme estabelecido no § 1° do art. 28-A do CPP, para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput do artigo (4 anos), são levadas em consideração as causas de aumento e diminuição aplicáveis à espécie. Nesses casos, para se chegar à menor pena possível, em abstrato, deve-se considerar a fração que menos aumente a pena (no caso, 1/6), assim como a que mais a diminua (2/3). 12. Na espécie, observa-se que o tráfico de drogas tem pena mínima de 5 anos de reclusão. Aplicando-se a majorante da transnacionalidade e o redutor do tráfico privilegiado, nos moldes descritos acima, chega-se a quantum inferior a 4 anos. 13. Ao contrário do que se concluiu no STJ, entendo não ser vedada a consideração da mencionada causa de diminuição na aferição da pena mínima em abstrato, pelo fato de não ter sido descrita na denúncia, até porque o magistrado sentenciante, após a análise do conjunto probatório produzido na instrução criminal, pode concluir pela aplicação do redutor (como, de fato, o fez) quando preenchidos seus requisitos. 14. Não se cuida de acordo “de não recebimento de denúncia”, mas, sim, de não persecução penal, que se perpetua durante o curso do processo-crime. Nesse sentido, o art. 3º-B, inc. XVII, do CPP (também incluído pelo Pacote Anticrime), ao prever que cabe ao juiz de garantias “decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação”, indica, a contrario sensu, a possibilidade de celebração do acordo na fase processual, competindo ao magistrado atuante nessa fase a apreciação do feito para respectiva homologação” (STF, STF, HC 225.993, Rel. Min. André Mendonça, decisão monocrática, j. 11.07.2023).︎
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo: 1 JARDIM, Afrânio Silva. Ação Penal Pública, Ed. Forense: Rio de Janeiro, 1998︎
Cf. lembra Carlos Alberto Carmona, a inafastabilidade do controle jurisdicional visa resguardar o cidadão de abusos cometidos pelo próprio Estado: “Os abusos a que se visava coibir mediante a vedação à imposição de limitações ao âmbito de apreciação do Poder Judiciário foram cometidos não por particulares, mas sim pelo próprio Estado em sua versão autoritária. O intuito do dispositivo sob foco é o de criar garantia aos particulares, protegendo-os de limitações abusivas pelo Estado” (in Constituição Federal Comentada / Alexandre de Moraes ... [et al.] ; [organização Equipe Forense]. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018, p, 155).︎
Cf. Guilherme de Souza Nucci, o devido processo legal trata-se de “espectro de garantias fundamentais para que o Estado apure e constate a culpa de alguém, em relação à prática de crime, passível de aplicação de sanção. Eis por que o devido processo legal coroa os princípios processuais, chamando a si todos os elementos estruturais do processo penal democrático, valendo dizer, a ampla defesa, o contraditório, o juiz natural e imparcial, a publicidade, dentre outros, como forma de assegurar a justa aplicação da força estatal na repressão aos delitos existentes” (Curso de Direito Processual Penal, 19ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 59.︎