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O dano moral ambiental difuso.

Objeções à interpretação civilista adotada em precedente do STJ

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INTRODUÇÃO

A história do desequilíbrio ambiental caminha junto com a tensão entre o interesse público e o privado. Os direitos de terceira geração nasceram justamente no bojo de uma teoria de superação desta dicotomia, a partir da identificação da existência de interesses públicos subjacentes ao exercício de alguns direitos individuais.

Em um dos lados do conflito, destaca-se uma corrente de pensadores e magistrados apegados à tradição civilista baseada em ideologias herdadas do liberalismo político clássico, que defende uma concepção absoluta das liberdades individuais e da propriedade privada.

O desenvolvimento da sociedade, entretanto, exigiu a previsão de um novo tipo de liberdades, chamadas de objetivas ou positivas, atribuídas a determinados grupos sociais, notadamente minorias e pessoas menos favorecidas economicamente, de modo a limitar o exercício arbitrário e prejudicial da autonomia individual, no escopo conduzir a sociedade na direção de um ideal cada vez mais igualitário.

Com a evolução da teoria dos direitos fundamentais e da consciência humana de maneira geral, foi identificada ainda outra categoria de direitos, de caráter altamente abstrato, com a função de proporcionar a qualidade de vida e o bem-estar de toda humanidade. Entre estas garantias fundamentais cita-se o direito ao desenvolvimento, à paz e à autodeterminação dos povos e, particularmente, ao meio ambiente propício à vida.

Esta esfera difusa de direitos veio permear, de maneira transversal, as duas categorias anteriores com um regime de deveres jurídicos voltados para o atendimento de interesses universais, impondo uma necessária conformação de direitos individuais e coletivos como a propriedade, a economia e o trabalho a exigências de cunho global.

Acontece que a referida abstração e universalidade inerentes ao direito ambiental dificulta sobremaneira o entendimento pela sociedade – e aqui queremos destacar a sociedade brasileira – da necessidade e da importância deste direito, quando em confronto com interesses jurídicos individuais afetos à realização de desejos pessoais, materiais e imediatos dos seres humanos.

Com efeito, se o homem, particularmente o brasileiro, em seu atual estágio de percepção, encontra dificuldades na compreensão dos aspectos materiais do problema ambiental, mesmo sendo atingido de forma cada vez mais intensa e freqüente pelas intempéries climáticas e outros desequilíbrios naturais, imagine-se a reação deste povo – e aqui incluo o chamado "senso comum teórico dos juristas" de que fala Luis Alberto Warat [01] – ao se deparar com a possibilidade jurídica de responsabilização por danos ambientais imateriais, extrapatrimoniais.

O presente texto se propõe a lançar luzes sobre esta questão, a qual já conta com regulamentação legal, mas que ainda encontra barreiras à sua aplicação pelo Judiciário por motivos hermenêuticos, seja devido à ausência de uma formação ambiental da maioria dos magistrados, seja pela opção deliberada de alguns operadores por adotar uma interpretação liberalista dos direitos humanos.


1 A NATUREZA DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE

Para que se possa chegar a uma interpretação razoável dos conflitos jurídicos ambientais, torna-se necessário conhecer a natureza do direito ao meio ambiente, para que se possa, basicamente, saber do que estamos falando. Como dissemos alhures, trata-se de um direito humano fundamental de terceira geração.

Os direitos fundamentais de terceira geração representam uma nova depuração da idéia de liberdade, na eterna busca da resolução equilibrada da equação consistente na dicotomia livre desenvolvimento individual e livre desenvolvimento coletivo. Esta categoria de direitos pôde ser obtida a partir do refinamento da consciência jurídica sobre os liames dentro dos quais a autonomia privada deveria ser exercida de modo não prejudicial à sociedade, vista agora como aldeia global.

Sobre a definição desta nova categoria de direitos, é interessante considerar a concisa exposição de Juliana Santilli: "Terceira dimensão, em virtude de sua natureza metaindividual, difusa e coletiva, tratando-se de um ‘direito de solidariedade’, que não se enquadra nem no público, nem no privado" [02] (grifo nosso).

Enquanto superação da visão de que a ação humana pertence ou à esfera pública ou à privada, a percepção de que todos têm direito ao ambiente ecologicamente equilibrado, como condição essencial à vida, representa uma aquisição evolutiva da cultura jurídica em geral, fato que veio inclusive a ser reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal [03].

A questão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – Direito de Terceira Geração – Princípio da Solidariedade – O direito a integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao individuo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. (grifos nossos).

O princípio do equilíbrio ecológico, consagrado no art. 225 da Constituição Federal e pedra fundamental da ciência jurídica ambiental brasileira, irradia seus efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, oferecendo uma nova semântica à interpretação dos direitos individuais, da dignidade da pessoa humana, da atividade econômica e da propriedade, os quais doravante devem ser conformar às exigências desta esfera mais abrangente de deveres jurídicos.

Neste sentido, o princípio do equilíbrio, na visão de Édis Milaré [04], e interpretado de acordo com o art. 60, §4º, IV, da Constituição Federal, "é, sem dúvida, o princípio transcendental de todo o ordenamento jurídico ambiental, ostentando, a nosso ver, o status de verdadeira cláusula pétrea".

O Tribunal Federal da 1ª Região [05] tem adotado raciocínio consoante com as premissas cristalizadas na decisão da Corte Suprema, no sentido da necessidade de adequar o exercício da primeira esfera de direitos correspondentes às chamadas liberdades negativas em favor da promoção de uma liberdade relativa e adaptada aos ideais sociais de igualdade e, agora, também de solidariedade.

"PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. TUTELA ANTECIPADA. RISCO AO MEIO AMBIENTE. POSSIBILIDADE DE DANO IRREVERSÍVEL. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. PROVIMENTO DO AGRAVO.

1. Na disciplina da Constituição de 1988, a interpretação dos direitos individuais deve harmonizar-se à preservação dos direitos difusos e coletivos.

2. A preservação dos recursos hídricos e vegetais, assim como do meio ambiente equilibrado, deve ser preocupação de todos, constituindo para o administrador público obrigação da qual não pode declinar.

3. Se há suspeitas de que determinada autorização para exploração de área considerável de recursos vegetais está eivada de vício, o princípio da precaução recomenda que em defesa da sociedade não seja admitida a exploração da área em questão, pois o prejuízo que pode ser causado ao meio ambiente é irreversível.

4. A irreversibilidade do dano potencial não autoriza a concessão de tutela antecipada.

5. Provimento do recurso." (grifo nosso)

Portanto, para ser construída uma razoável interpretação do direito ambiental como um todo e, neste caso, para o enfrentamento do problema da indenização por prejuízos decorrentes de danos morais difusos, é importante ter-se em mente, primeiro, que o direito ao ambiente possui natureza difusa, ou seja, seus titulares são indeterminados e, segundo, que constitui direito humano fundamental de todos, devendo a autonomia privada se conformar aos ditames das normas ambientais.

A doutrina considera, hodiernamente, que o direito fundamental ao meio ambiente é uma extensão ou uma projeção do próprio direito à vida. Identificou-se, a partir de um esforço hermenêutico, uma conexão entre o art. 225 e o art. 1º, III, da Constituição, a partir da observação de que, além do direito à vida, o ser humano necessita de qualidade de vida, que faz com valha a pena viver e confere dignidade à pessoa humana [06].


2 AS RAÍZES DA INTERPRETAÇÃO CIVILISTA DO DIREITO À INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL DIFUSO AO MEIO AMBIENTE

Certo é que o direito não brota da mera liberalidade do legislador, mas que antes de sua positivação encontra-se já em estado de latência da vida social. O fenômeno jurídico, segundo Eros Roberto Grau [07], é um aspecto da vida em sociedade, uma linguagem ou discurso do todo social, recebendo nesta condição a influência do modo de vida de cada grupo, seus costumes e sua moralidade. Encontra-se já pressuposto na estrutura social antes de ser direito moderno, ou seja, positivo. Isto significa dizer que, antes de ser uma ordenação de princípios e regras deontológicas expressas, o direito é um elemento cultural.

Assente esta constatação, no contexto de um mundo marcado pela cultura capitalista, onde se destacam valores como materialismo e o imediatismo, torna-se difícil o reconhecimento e a compreensão de conceitos como solidariedade, bens imateriais e ética das futuras gerações, os quais encontram-se na contramão da lógica individualista inerente à sociedade moderna ocidental.

O sistema jurídico, enquanto nível do sistema social, absorveu estas características e valores culturais da sociedade principalmente através do direito civil, o qual encontra suas raízes profundas no Direito Romano, principalmente através na noção de propriedade como o jus utendi, fruendi et abutendi, tradição esta que foi reforçada pelo liberalismo político da Revolução Francesa, que resultou na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e pelo capitalismo nascente da Revolução Industrial.

Em ambos os momentos, seja na Roma Antiga ou em Europa do final século XVIII, não havia qualquer suspeita de que os recursos naturais eram limitados e de que a ação humana poderia causar desequilíbrios na natureza capazes de provocar as conseqüências desastrosas que ora se avizinham.

Porém, embora a realidade atual seja diferente e o Código Civil de 2002 apresente sinais de harmonização à tendência de constitucionalização do direito em geral, expressa, por exemplo, na função social dos contratos e na adequação da propriedade ao meio ambiente, ainda permanecem concentrados na mentalidade popular e dos operadores do direito alguns valores e verdades incompatíveis com o contexto social atual.

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Valores como a propriedade absoluta, o individualismo e o caráter econômico dos bens da vida, continuam a fazer parte daquilo que Luis Alberto Warat [08] denomina de "senso comum teórico dos juristas", conceito assim explicado pelo jurista:

(...) "senso comum teórico dos juristas" (SCTJ) designa as condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do direito. Trata-se de um neologismo proposto para que se possa contar com um conceito operacional que sirva para mencionar a dimensão ideológica das verdades jurídicas.

Através deste conceito o autor se refere a práticas, falas, retóricas e escritos reproduzidos no dia-a-dia forense, de forma mais ou menos consciente, como se fossem verdades, embora sejam reflexo mais da ação de ideologias difundidas no sistema jurídico do que propriamente manifestações de um saber científico produzido no escopo de orientar a práxis. Segundo o mesmo Warat:

Quando a vigilância lógico-conceitual é invocada em nome de uma ordem de relações políticas, produz um exorcismo semiológico o qual impede a detectação dos efeitos políticos de um discurso. No mesmo sentido, podemos dizer que as regras epistemológicas tornam-se marcas sagradas, que roubam das relações conceituais a sua função referencial, tornando-as abertas aos efeitos do poder. [09]

No que tange especificamente à ciência do direito ambiental, forçoso é reconhecer que muitos dos operadores do direito, e notadamente os juízes, podem ser enquadrados na categoria cunhada por Warat, fato que até pode ser justificável, por tratar-se de um aspecto da ciência jurídica recentemente descoberto e teorizado, surgido como um dos produtos da nova sociedade pós-Segunda Guerra Mundial: comucativa, globalizada, complexa, tanto quantitativa quanto qualitativamente.

Deste modo, a tendência ainda hoje predominante é a prevalência de direitos individuais e interpretações privatistas sobre as concepções transindividuais e públicas, por serem as primeiras idéias mais sedimentadas no espírito dos operadores e na cultura jurídica em geral. Uma destas interpretações é a idéia de que o dano moral possui natureza intrinsecamente individual. Esta afirmação será aprofundada mais adiante.

O que se pretende, por hora, é explicitar aquelas ideologias políticas que, presentes na linguagem jurídica e perpetuadas por falsos discursos lógico-racionais, acabam por dificultar a interpretação e a aplicação do direito ambiental. Entre elas incluem-se o individualismo e a concepção civilista de propriedade e liberdade econômica.


3 O DANO MORAL AMBIENTAL DIFUSO E O PRECEDENTE DO STJ

A reparação por danos morais ambientais difusos é cada vez mais corriqueiramente pleiteada em ações civis públicas pelo país, seja de autoria do Ministério Público, do IBAMA, ou de outras entidades e autoridades competentes. O pedido possui fundamento no art. 1º da Lei nº 7.347/85, que disciplina a ação civil publica:

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)

I - ao meio-ambiente; (...)

Da análise da doutrina especializada, representada por Luciane Gonçalves Tessler [10], observa-se que o pleito não é desprovido de razoabilidade. Segundo a autora:

O ressarcimento do dano deve recompor todo o prejuízo sofrido pelos titulares do direito lesado. A consagração do princípio da reparação integral, em matéria ambiental, obriga o poluidor não apenas a recuperar in natura o bem lesado, mas a responder por todas as demais perdas sociais que do dano decorreram.

Porém, esta possibilidade legal tem sido classificada de esdrúxula e guerreada com veemência pelos infratores ambientais. O principal argumento contra a indenização por dano moral ambiental difuso pode ser resumido na ementa do seguinte julgado do Supremo Tribunal de Justiça [11]:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. DANO MORAL COLETIVO. NECESSÁRIA VINCULAÇÃO DO DANO MORAL À NOÇÃO DE DOR, DE SOFRIMENTO PSÍQUICO, DE CARÁTER INDIVIDUAL. INCOMPATIBILIDADE COM A NOÇÃO DE TRANSINDIVIDUALIDADE. INDETERMINABILIDADE DO SUJEITO PASSIVO E INDIVISIBILIDADE DA OFENSA E DA REPARAÇÃO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.

Com base neste precedente, tem sido sustentada a necessária vinculação da reparação por danos morais à existência de dor, de sofrimento psíquico, os quais possuiriam caráter necessariamente individual, o que tornaria, em tese, o dano moral incompatível com a indeterminabilidade dos sujeitos passivos de quaisquer direitos difusos.

Concorda-se que a noção de dano moral remeta à existência de sofrimento psíquico, o qual só pode ocorrer no espírito de cada ser humano e, portanto, possui caráter individual. Mas disso não decorre que para haja indenização por danos morais o sujeito passivo deva ser necessariamente individualizado.

Se for correta interpretação esposada pela Primeira Turma do STJ, podemos afirmar com segurança que o artigo 1º da Lei nº 7.347/85 é um completo despropósito, uma vez que o dispositivo prevê expressamente a possibilidade de responsabilização por danos morais causados ao meio ambiente, o qual possui natureza difusa. Não nos parece, entretanto, que seja assim.


4 OBJEÇÕES AO ARGUMENTO CIVILISTA CONTRA A RESPONSABILIZAÇÃO POR DANOS MORAIS AMBIENTAIS DIFUSOS

Ao buscar-se, tanto a vontade da lei quanto a do legislador, não resta dúvida de que a intenção legal é a responsabilização. A exigência de prova de sofrimento e dor individual é tão descabida quanto desnecessária in casu, além de espelhar uma incompreensão do que sejam direitos fundamentais de terceira geração e da ética inerente à conservação ambiental.

A degradação ambiental envolve, de um lado, prejuízos objetivos, como a erosão da biodiversidade, extinção de espécies, distúrbios climáticos, obstrução dos serviços ecológicos prestados pelos diferentes ecossistemas e, de outro, prejuízos subjetivos, consubstanciados, por exemplo, na destruição de potenciais conhecimentos científicos e tradicionais associados à biodiversidade e, ainda, a diminuição da qualidade de vida da população em escala local, regional e global. Não é outro o entendimento da doutrina brasileira:

Veja-se que o dano ambiental em sentido amplo é um dano extrapatrimonial, que atinge o valor constitucional posto no art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988, que refere que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, indispensável à sadia qualidade de vida. Daí que o direito humano fundamental à qualidade de vida é de natureza imaterial e somente será ressarcido se reconhecida a dimensão extrapatrimonial do ambiente. [12] (grifo nosso)

Em última análise, tais prejuízos extra-patrimoniais serão lamentados, sentidos e sofridos até mesmo por pessoas que ainda não nasceram, pelas futuras gerações (CF/88, art. 225). Seria impossível trazer aos autos provas do sofrimento individualizado e da dor destas pessoas, as quais ainda não possuem nomes ou número no cadastro de pessoas físicas.

Partindo da compreensão da chamada ética das futuras gerações inaugurada pela Constituição de 1988, resta claro o equívoco subjacente à exigência de individualização do sofrimento de qualquer pessoa in concreto. Percebe-se, portanto, a orientação civilista que permeia a decisão do STJ, que ignora que a reparação ambiental não é um interesse privado, não havendo por isto a necessidade de dividir-se a indenização entre particulares.

O Tribunal adotou, neste caso, a lógica inerente ao direito civil para interpretação de uma questão ambiental. Porém, a questão exigiria uma interpretação sistêmica do ordenamento jurídico constitucional-ambiental-civil. Como ensina Juliana Santilli, na interpretação dos conflitos socioambientais, devemos buscar a unidade axiológico-normativa que permeia da legislação brasileira, através de sua leitura sistêmica:

A orientação socioambiental presente na Constituição não se revela pela leitura fragmentada e compartimentalizada dos dispositivos referentes à cultura, ao meio ambiente, aos povos indígenas e a função socioambiental da propriedade, e sim por uma leitura sistêmica e integrada do todo: o que alguns chamariam de uma leitura holística, que não percebe apenas as partes, mas a unidade axiológico-normativa presente no texto constitucional. [13]

Mostra-se precipitada, neste contexto, a conclusão de que a noção de sofrimento psíquico individual seria incompatível com a natureza indeterminada dos titulares do direito difuso ao ambiente. Isto porque o fato de não haver preocupação na determinação de cada titular prejudicado com os danos ambientais não significa que não existam, mas sim que não há necessidade de individualizá-los.

Um argumento civilista que poderia, racionalmente, ser levantado em favor da individualização seria a necessidade de se promover o pagamento da indenização a uma pessoa específica. Entretanto, a previsão do fundo fluido de que trata o art. 13 da Lei nº 7.347/85, por si só, é suficiente para desconstruir esta tese. Seria mesmo injusto com a humanidade atribuir-se a uma única pessoa ou grupo determinado uma indenização decorrente de danos ambientais difusos pelo simples fato – repetirei quantas vezes preciso for – de o meio ambiente ser direito de todos.

Por outro ângulo, adotando-se linha argumentativa diversa, pode-se dizer que não existem mais dúvidas, atualmente, de que a degradação ambiental têm causado sérios abalos morais em toda a humanidade, a qual hoje vive assolada pelo stress, pelo aquecimento global, pela poluição, pelo medo de catástrofes naturais etc. Existem milhões de pessoas por todo o mundo lutando pela preservação do meio ambiente; existem hoje, no mundo, milhares de vítimas de catástrofes ambientais, como tsunami, o efeito estufa, a falta de água e a destruição das florestas; existem centenas de populações tradicionais, indígenas e quilombolas cujo modo de vida (cultura) depende essencialmente da existência de biodiversidade e do bom funcionamento dos ciclos naturais.

A vista desta realidade, e a partir da leitura do art. 334 do Código de Processo Civil, pode ser defendida a tese de que o sofrimento destas pessoas com crimes e danos ambientais é público e notório e, portanto, independe de prova, nos termos do aludido dispositivo legal. Mesmo porque seria impossível trazer aos autos a prova do sofrimento de todos estes indivíduos isoladamente.

O direito contemporâneo cada vez mais reivindica o aprimoramento da interpretação institucional em questões relativas ao meio ambiente, uma vez que as normas ambientais alcançam praticamente todos os outros ramos do direito, como o trabalhista, o administrativo, o comercial, o econômico e, também, o civil.

Uma vez que o fenômeno socioambiental só pode ser compreendido através de um exame contextual, sistêmico, holístico do ordenamento jurídico e da realidade fática, devido à complexidade e transversalidade que lhe é inerente, faz-se imperioso rejeitar as interpretações parciais, fragmentadas, civilistas e individualistas.

Por isto, a priori, a análise do direito civil brasileiro poderia ensejar a conclusão de que o dano moral exigiria a individualização do ofendido. Mas um exame sistêmico do ordenamento que incluísse a consideração das disposições constitucionais referentes à ética das futuras gerações, à função social da propriedade, ao poder de polícia ambiental e à prevalência do interesse público sobre o privado revelariam que tal requisito não se sustenta quando a questão é de direito ambiental.

É necessário que o Judiciário aguce a sua sensibilidade e amplie sua consciência para entender a essência da questão ambiental. Devido ao contexto cultural em que o direito moderno se desenvolveu, o sistema absorveu a cultura individualista e capitalista da sociedade ocidental, mentalidade esta que constitui, em grande parte, a própria causa da crise ambiental que o mundo atravessa hodiernamente.

Com toda certeza, assim como deve ser definitivamente afastada a dicotomia consistente na privatização dos lucros e socialização dos danos ambientais, a indenização por danos ambientais morais não deve ser individualizada, mas socializada e globalizada, ou senão porque seria incluída a responsabilidade por danos morais na legislação atinente à ação civil pública, que é essencialmente um meio processual de defesa de direitos coletivos e difusos? Caso fosse verdadeira a interpretação civilista esposada pelo STJ, o art. 1º da Lei nº 7.347/85 seria totalmente despropositado.

Tanto se justifica esta conclusão que também o Código de Defesa do Consumidor previu a indenização por danos morais, demonstrando que inexiste a incompatibilidade apontada no precedente citado. Repise-se que tanto o direito do consumidor quanto o direito ambiental possuem natureza difusa, ou seja, titularidade indeterminada. Veja-se o CDC, in verbis:

"Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(...)

VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais, morais, individuais, coletivos e difusos; (...)"

Importa salientar, por derradeiro, que a interpretação do STJ não é inteiramente reconhecida no Judiciário. Neste sentido, há decisão judicial proferida pela Desembargadora Relatora Raimunda T. de Azevedo, da 2ª Câmara Cível, na Apelação Cível 2001.001.14586, interposta pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro contra Artur da Rocha Mendes Neto. A Excelentíssima Magistrada condenou o réu ao plantio de 2.800 mudas, ao desfazimento da obra irregular e ao pagamento de 200 salários mínimos a título de danos morais ambientais:

(...) A condenação imposta com o objetivo de restituir o meio ambiente ao estado anterior não impede o reconhecimento de reparação do dano moral ambiental.

(...)

Uma coisa é o dano material consistente na poda de árvore e na retirada de sub-bosque cuja reparação foi determinada com o plantio de 2.800 árvores. Outra é o dano moral consistente na perda de valores pela coletividade." (citado do livro Direito Ambiental na Sociedade de Risco, José Rubens Morato Leite et al., 2ª ed. pg. 300).

Um exame acurado da afirmação de que a indenização por danos morais é incompatível com a natureza difusa do direito ambiental revela que esta parece ser mais uma daquelas verdades puramente ideológicas apontadas pelo célebre Luis Alberto Warat, espelhando uma concepção individualista que dificulta a compreensão do cerne da questão ambiental.

A dedução do STJ não possui amparo legal ou mesmo doutrinário que a sustente, exceto o liberalismo político e econômico presente na tradição civilista que resiste em admitir a internalização econômica dos prejuízos ambientais de forma integral.

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Sobre o autor
João Carlos Bemerguy Camerini

Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), advogado em Santarém/PA e assessor jurídico da Terra de Direitos, Organização de Direitos Humanos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMERINI, João Carlos Bemerguy. O dano moral ambiental difuso.: Objeções à interpretação civilista adotada em precedente do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1576, 25 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10573. Acesso em: 2 nov. 2024.

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