6. Informações Amparáveis: Os Chamados Dados Sensíveis
Ao se falar na tutela de um direito de não saber, é comum que um universo de possibilidades surja à mente. Pode-se pensar, por exemplo, de um direito a não ser informado sobre o resultado de uma partida desportiva que não se pôde acompanhar em tempo real. Ou, ainda, do direito que protege o consumidor de não ser perturbado através de ligações, mensagens ou e-mails com informações publicitárias das quais não requereu. Nada obstante essas e outras múltiplas hipóteses de que se possa cogitar, o direito de não saber que aqui se tem por exame refere-se, em síntese, às “informações relativas às pessoas e seus patrimônios”.19
Portanto, é válido compreender o tipo de vínculo entre informação e indivíduo capaz de identificar os casos em que uma informação poderá ser considerada pessoal, sendo merecedora da tutela da privacidade. Recorre-se novamente à preciosa análise de Danilo Doneda:
“Uma determinada informação pode possuir um vínculo objetivo com uma pessoa, revelando algo sobre ela. Este vínculo significa que a informação refere-se às características ou ações desta pessoa, que podem ser a ela atribuídas em conformidade com a lei, como no caso do nome civil ou do domicílio, ou então, às informações provenientes de seus atos, como os dados referentes ao seu consumo, informações provenientes de suas manifestações (...)”.20
É possível se dizer, portanto, que dados pessoais são aqueles que, propriamente ditos, trazem elementos que identificam (ou capazes de identificar) uma pessoa.21 Confira-se, nessa direção, a definição atribuída ao termo pelo art. 5º, I, da Lei nº 13.709/2018, cujo texto foi objeto de amplo debate público promovido pelo Ministério da Justiça, em parceria com o Observatório Brasileiro de Políticas Digitais do Comitê Gestor da Internet no Brasil:
“Art. 5º: Para os fins desta Lei, considera-se: I - dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável”.
A prática do direito à intimidade e o controle de informações, entretanto, fizeram desenvolver uma categoria mais específica de dados, nomeadamente, os dados sensíveis, os quais consistiram em “determinados tipos de informação que, caso sejam conhecidas e processadas, prestar-se-iam a uma potencial utilização discriminatória ou particularmente lesiva e que apresentaria maiores riscos potenciais que a média, para a pessoa e não raro para uma coletividade” (Danilo Doneda)22.
Mais uma vez, vale-se do conceito trazido pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD):
“Art. 5º: Para os fins desta Lei, considera-se: II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;
Desse modo, a interpretação do direito à intimidade do indivíduo, a incluir, nessa condição, o direito de não saber, deve se estender então às situações em que presentes dados sensíveis de sua titularidade, capazes de representar a sua essência como pessoa humana.
Ou seja: não será todo e qualquer compartilhamento de informação à revelia de seu destinatário que poderá ensejar a violação à intimidade do individuo. Em regra, serão merecedores da tutela do direito tão somente aquelas informações pessoais consistentes em dados sensíveis – que, por sua própria natureza, possuem elevado potencial de ensejar ações discriminatórias –, sem se deixar de reconhecer que há situações nas quais tal discriminação poderá ocorrer com informações que não se enquadrem em tal categoria e, ainda, que a utilização dos chamados dados sensíveis pode também ocorrer com fins legítimos e em observância da lei.23
7. Limitações Delineadas Pelo STJ: Análise dos Fundamentos Invocados no REsp Nº. 1.195.995
A doutrina, ainda que acanhada, já se mostra receptiva a essa mais recente manifestação do direito à privacidade. O desafio reside, no entanto, em seu acolhimento pelos tribunais pátrios, os quais dispensam tratamento ainda muito embrionário ao assunto. Nesse sentido, o maior e principal obstáculo a ser vencido refere-se à superação dos conflitos que se suscedem nos casos práticos entre o direito fundamental da intimidade, manifestado no direito de não saber, e nas diversas garantias constitucionais com que ele se defronta.
Nesse cenário é que se buscará avaliar se, amparado na cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana, é possível a defesa da autodeterminação informativa do indivíduo – refletida no seu direito de não saber – frente os mais diversos casos práticos que diariamente se manifestam. O trabalho não tem, contudo, a pretensão de esgotar a multiplicidade de eventos nos quais é possível se considerar dessa vertente máxima do direito à intimidade. Seu escopo consiste na análise crítica das principais limitações apresentadas pelos tribunais pátrios ao debater o assunto, buscando-se, com isso, desenvolver um referencial para a diversidade de futuras e novas questões que venham a surgir em que aplicável o tema.
Toma-se para análise, então, o caso responsável por levantar a discussão em âmbito nacional (REsp nº. 1.195.995), no qual ocorreu a divulgação da existência de enfermidade a paciente que não requereu sua investigação (acima mencionado)
Em seu julgamento, por maioria, firmou-se o entendimento de que a suposta existência de um direito do indivíduo de não saber que é portador do vírus HIV é subrepujada por “um direito maior, qual seja, o direito à vida, o direito à vida com mais saúde, o direito à vida mais longeva e saudável”.24 Enfatizou-se, ademais, a preponderância do interesse público, sob a ótica da saúde pública, em face do direito à intimidade, considerando-se que a doença em comento era infectocontagiosa. Nesse diapasão, asseverou o Ministro Massami Uyeda que “todo direito deve ser exercido com responsabilidade, dentro de um contexto social, sob pena de se verificar o abuso de tal direito”. Por fim, considerou que, ao intentar ação de reparação, o paciente agiu muito proximamente ao que se considera como intenção de beneficiar-se de sua própria torpeza. Nada obstante os prestigiosos argumentos suscitados no acórdão, reserva-se agora a eles especial atenção.
7.1. Melhor interesse do indivíduo
Primeiramente, deve se questionar em que medida a informação da existência de doença, cujo exame não foi requerido pelo paciente, lhe será benéfica à saúde.
De fato, é apenas com o conhecimento da doença que será oportunizada ao paciente a possibilidade de um tratamento médico, razão pela qual “a informação correta e sigilosa sobre seu estado de saúde não teria o condão de afrontar a sua intimidade, na medida em que lhe proporcionou a possibilidade de proteger direitos fundamentais de grande relevância”.25
No entanto, deve-se atentar ao fato de que as pessoas reagem de modos distintos à existência de uma doença. Seu conhecimento, para uns, significará o imediato início de um tratamento médico ou a pronta submissão a uma intervenção cirúrgica. Para outros, no entanto, poderá consistir em profundo abalo psicológico e considerável queda na qualidade de vida.
Caberia ao intérprete, assim, reconhecer que determinadas decisões devem ser reservadas à esfera íntima e privada do ser humano, sob pena de violação do princípio da dignidade da pessoa humana. Ninguém é mais apto do que o próprio indivíduo para definir o que é capaz de representar maior ou melhor interesse para a sua vida. “Não se garantiria a dignidade de alguém obrigando-o a tomar conhecimento de uma doença contra a sua vontade, em prol de um suposto interesse público” (Chiara de Teffé e Juliana Chediek).26
A indagação ganha força, ainda, em se tratando de doença para a qual não há cura conhecida. Assim é porque se diz que não há ninguém mais apto a decidir o valor e impacto desse conhecimento do que o próprio indivíduo sobre o qual recaia a condição. Nessa direção é a colacação de Stefano Rodotà:
“Considerando o que se pode ou se deve saber, percebe-se que estão em questão modelos culturais bastantes diferentes entre si. O conhecimento deve ser considerado como um valor absoluto? Quais são os efeitos de uma revelação integral e precoce do “destino biológico”? Um “excesso” de conhecimento não pode se revelar como um limite à autonomia e, logo, à livre construção da personalidade? Vale a pena ao menos recordar que Hans Jonas chama nossa atenção para a “necessidade do acaso”, dizendo que o direito de não saber “pertence inseparavelmente à liberdade existencial”. Já no chamado Relatório Benda, a propósito da doença de Huntington, observou-se que, “para uma pessoa, o saber-se portadora de uma doença mortal e incurável pode se tornar um peso tão grande a ponto de abatê-la. Não se pode excluir, por outro lado, que o conhecimento da doença que a acometerá possa motivá-la a uma vida especialmente intensa; e o conhecimento poderá também induzi-la a não transmitir suas características hereritárias à geração seguinte”.27
Dizer, portanto, que o conhecimento da enfermidade que acomete o indivíduo lhe será efetivamente benéfico à saúde poderá consistir em falaciosa argumentação. Considerada a complexidade das caracteríticas que, em conjunto, definem a personalidade de um indivíduo, não é possível prever a repercussão que a comunicação da propensão ou existência de determinada doença causará em sua vida.28
Outrossim, oportuno ressaltar que a Constituição Federal não reserva tratamento privilegiado à vida em face de outros direitos individuais, tais quais a igualdade, a segurança e a própria liberdade – a qual abrange a liberdade informativa do indivíduo. Em verdade, o texto constitucional reservou papel prioritário à dignidade da pessoa humana, alçada a fundamento da República já no primeiro artigo da Constituição Federal, a demonstrar sua magnitude e proteção. “Assim, nem a liberdade, nem a vida, nem quaquer dos direitos individuais recebe proteção absoluta. São protegidos apenas enquanto e na medida em que se dirige à promoção da dignidade humana”.29
Pode-se afirmar, assim, que não há um “direito à vida mais longeva”, que deverá prevalecer sobre outros direitos individuais. O que há de se valorizar é, na promoção da dignidade humana, a persecução da construção da individualidade do indivíduo, a quem caberá ponderar acerca da importância da produção e conhecimento de uma informação particular à sua vida. A compreensão desta, então, não deve se limitar apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, mas sim na sua concepção biográfica mais compreensiva.30
7.2. Interesse coletivo e anseios sociais
O acórdão foi também forte no argumento do interesse coletivo.31 A solidariedade social pode ser assim compreendida como uma força de instrumentos voltandos à garantia de uma existência digna comum a todos. Consistiria, em verdade, na reciprocidade com a qual cada indivíduo deve orientar suas escolhas, colocando-se, de alguma maneira, no lugar do outro.32
Assim é que, considerando tratar-se no caso em questão de doença infectocontagiosa (a qual, portanto, poderia ser transmitida a outros), “defende-se que o princípio da solidariedade social teria plena aplicação à hipótese, pois ao tomar conhecimento da doença o autor poderia (e deveria) agir com maior precaução, evitando a contaminação de terceiros”.33
É de se observar, no entanto, que o argumento fundamenta-se em mera expectativa que, com frequência, não refletirá a prática comum. A despeito de se compreender que, uma vez ciente de sua condição, o cuidado será uma consequência esperada, nada impede que a atitude seja diametralmente oposta. Ou seja, que, assomado pela ciência de enfermidade para a qual não requereu investigação (da qual possivelmente não suspeitava), passe o indivíduo a proceder com atos despidos de quaisquer compromissos com a saúde pública, mais irresponsáveis, inclusive, do que aqueles adotados antes de seu conhecimento.
Recorda-se, ademais, que os tratamentos de saúde não são obrigatórios. Logo, dispõe o enfermo da prerrogativa de permanecer doente e, se assim preferir, adotar condutas que coloquem em risco a saúde de outros indivíduos (ainda que por isso possa vir a responder civil ou criminalmente no futuro, discussão que aqui não cabe). Veja-se, nesse sentido, a crítica feita por Caitlin Mulholland:
“O fato de a doença ser infecto-contagiosa, por outro lado, não é justificativa para informar o paciente, na medida em que não se presume que o desconhecimento da doença signifique necessariamente a difusão da doença. No caso de HIV/AIDS nem sequer há a obrigatoriedade de informação às autoridades sanitárias e médicas da contaminação com o intuito de resguardar a coletividade. Isso se dá justamente para proteger a privacidade da pessoa que é portadora de doença estigmatizante. Ademais, da mesma forma que existem pessoas sãs que não tomam precauções para evitar a exposição a doenças infecto-contagiosas, existem pessoas doentes que tomam inúmeras precauções para evitar que elas próprias sejam instrumentos para a difusão de doenças. Não se pode afirmar que o conhecimento a respeito de ser uma pessoa portadora de doença infecto-contagiosa irá evitar que a doença se propague. Não é o fato da pessoa ter desconhecimento a respeito de sua condição de saúde que gere fundamentalmente uma falta de cuidado com a sua saúde e a de outros”.34
Contra essa ponderação, afirma-se que, em casos como esse, ainda que o paciente que foi informado decida continuar a colocar em risco a saúde de terceiros, tratar-se-ia de caso excepcional, considerando-se não ser essa a atitude a se esperar de um indivíduo que se depare com tais condições. Nas palavras de Lucas Miotto Lopes:
“Note que no caso do HIV trata-se de uma doença incurável e que não há método de prevenção infalível de modo que uma pessoa contaminada expõe, em maior ou menor grau, outras ao risco em todas as circunstâncias em que tem relações sexuais ou realiza transfusões de sangue, ou compartilha seringas e afins. Ao dar o direito de não saber a essa pessoa, acaba-se tirando a possibilidade de ela tomar certos cuidados e a possibilidade de ela avisar potenciais parceiros sexuais sobre os riscos prováveis que correm, ainda que sejam baixos. Sendo assim a existência de pessoas que saibam que são portadores de doenças contagiosas e não se protegem ou se tratam não é um contraexemplo à tese de que nesses casos deve-se informar. O que se busca proteger ao informar é a mera possibilidade de a pessoa escolher não transmitir a doença e de tomar cuidados”.35
Desse modo, a despeito desse caro direito fundamental que agora se tem sob exame, afigura-se mais uma vez necessária a análise da efetividade prática que a sua preponderância será capaz de causar nos mais diversos e distintos casos práticos que venham a surgir, tendo em vista seus desdobramentos sobre o sujeito titular e terceiros considerados.
7.3. Própria torpeza
No julgamento do Recurso em comento, asseverou o Ministro Massami Uyeda que:
“não se afigura permitido, tampouco razoável, que o indivíduo, com o desiderato inequívoco de resguardar sua saúde, após recorrer ao seu médico, que lhe determinou a realização de uma série de exames, vir à juízo aduzir justamente que tinha o direito de não saber que é portador de determinada doença, ainda que o conhecimento desta tenha se dado de forma involuntária. Tal proceder aproxima-se, em muito, da defesa em juízo da própria torpeza, não merecendo, por isso, guarida do Poder Judiciário”.36
O argumento da própria torpeza, expresso no consuetudinário corolário nemo auditur propriam turpitudinem allegans (ou seja, “ninguém pode ser ouvido ao alegar a própria torpeza”), se refere à impossibilidade da adoção de uma conduta posterior que incompatível com uma atitude anteriomente adotada. Quer-se, com isso, impedir a prossecução de comportamentos contraditórios pelo indivíduo.37 Assim sendo, considerou o Ministro que, para o caso em apreço, o paciente, que buscou os serviços do centro de saúde com vistas à realização de diversos exames médicos (hemograma, creatina, glicemia jejum, glicemia pós-prandial, Hb, glicosilada, Ácido úrico, colesterol total e frações, triglicérides, gama GT, Glicoproteína Ácida, T4 livre, TSH, anti HCV e HBSAG), agiu com comportamento contraditório ao reclamar indenização pela ciência de enfermidade para a qual não requereu investigação.
Nada obstante a colocação do Ministro, é de se questionar até que ponto a realização de um exame médico pode implicar o desejo intrínsico do paciente de ter ciência das mais diversas naturezas de enfermidade que poderiam lhe acometer. Com esse tipo de fundamentação, poderia se inferir, em regra, que, no momento em que se adentrasse um centro hospitalar para investigação de uma única doença, estaria o hospital autorizado a realizar toda a sorte de exames possíveis com o material colhido, agindo dentro dos limites legais caso informasse exclusivamente ao paciente a existência de um resultado positivo. Inequívoco, no entanto, que se trataria de manifesta violação ao direito da intimidade do indivíduo que, ainda que não tenha manifestado o desejo expresso de não ter conhecimento de determinada doença, efetivamente não requereu fosse realizado exame para sua investigação. Nas palavras de Caitlin Mulholland:
“devemos considerar que a pessoa que busca a realização de exames médicos, visando resguardar a sua saúde, não é, via de regra, pessoa com conhecimento técnico e que, portanto, reconhece no pedido médico a dúvida técnica quanto ao diagnóstico. Não há como saber, a priori, o que levou o médico a não requerer a realização de exame Anti-HIV. Mas o fato de não ter sido um exame requisitado gera ao paciente uma expectativa de que não haveria questionamentos, por parte de seu médico – um técnico, frise-se –, quanto à contaminação por este tipo de vírus. Portanto, não se pode alegar que houve conduta torpe por parte do paciente, na medida em que ao recorrer ao médico para resguardar a sua saúde a intenção era pesquisar a existência de outras doenças que não aquela identificada no exame não requerido”.
Ademais, ressalte-se que, no caso em destaque, o exame requerido pelo paciente consitia na investigação da infecção de seu organismo pelo vírus HCV – transmissor da Hepatite C – o qual, por acaso, possui formas de transmissão similares às do vírus HIV – causador da AIDS. Nesse caso, parece pouco mais razoável a presunção – não a constatação, há de se frisar – do interesse do indivíduo de ser informado acerca da doença (ainda que forte o argumento de que, se de fato existisse o interesse, haveria requisição expressa para realização também daquele exame). Contudo, insta indagar: o mesmo ocorrerá nas hipóteses em que, requerido exame para averiguação de doença considerada “simples”, e o paciente informado da existência de enfermidade de risco elevado à saúde? Ou, ainda, nos casos em que o exame requisitado referia-se à doença para a qual existe tratamento, ao passo que, para a enfermida da qual foi informado, não há cura conhecida – registre-se ser esse o caso do julgado ora em análise.38
Diz-se, então, que essa complexidade de cenários demontra que o argumento da torpeza do indivíduo deve também ser avaliado, ao menos, levando-se em conta as características do caso concreto, capazes de evidenciar o real interesse do indivíduo em casos como o presente – relativos à revelação de dados genéticos e enfermidades à revelia de seu titular.
7.4. Nexo de causalidade
Por fim, há de se analisar o derradeiro argumento empregado pelo acordão para considerar a ausência de violação à intimidade do paciente no julgado sob exame. Considerou o Ministro Massami Uyeda, em seu voto, inexistir nexo causal entre a conduta adotada pelo hospital e o dano alegado pelo paciente, uma vez tratar-se de informação correta e sigilosa transmitida unicamente a seu titular. Veja-se, nesse sentido, trecho de seu voto, bem como do voto-vista do Ministro Sidnei Beneti, que acompanhou a divergência:
“Nos dias atuais, é verdade, com os avanços dos medicamentos correlatos e a descoberta prematura da doença, o indivíduo acometido pelo vírus HIV pode ter uma maior expectativa de vida, mais saudável e digna. No caso dos autos, diversamente, o exame efetuado pelo HOSPITAL ALBERT EINSTEIN não contém equívoco, o que permite concluir que o abalo psíquico suportado pelo ora recorrente não decorre da conduta do Hospital, mas sim do fato de o recorrente ser portador do vírus HIV, no que o Hospital-recorrido, é certo, não possui qualquer responsabilidade”.39
“Aos fundamentos constantes do Voto-divergente e em consideração à elevada qualidade jurisdicional dos posicionamentos da E. Relatora, bem como em respeito às partes e a seus E. Advogados, ajunta-se: a) Não houve divulgação do exame errado a ninguém, salvo ao próprio paciente, de forma que não há como imaginar a dor de repercussão negativa (...)”.40
Desse modo, asseveraram os Ministros que o sofrimento pelo qual pretendia o indivíduo se ver compensado não teve origem na ciência da existência da doença, ou seja, na violação do seu direito de não saber, mas sim na sua própria existência, na sua condição de portador.
Em posição oposta, considerou a Ministra Nancy Andrighi que “não prospera o fundamento do acórdão recorrido de que não há nexo causal entre conduta e dano, pois esse decorre da violação do direito à intimidade do recorrente e não da existência da doença”.41 É esse também o entendimento de Caitlin Mulholland:
“O abalo psíquico ou dano moral decorrente da violação de direito à intimidade do paciente se deu de forma necessária por conta da conduta do laboratório. É claro que a informação é verídica, mas o dano, qual seja, o conhecimento de informação não requerida, se liga causalmente à conduta do laboratório. O dano não é a tristeza decorrente do conhecimento do paciente ser portador de vírus HIV. O dano se caracteriza pela violação de intimidade do paciente pela divulgação de informação não requerida. Não se está a discutir se o conhecimento da contaminação com vírus HIV gera dor ou sofrimento. Está a se afirmar que a divulgação de informação não requisitada gera a violação da intimidade da pessoa. A relação agora não é mais negativa, no sentido de impedir que outros acessem minhas informações, mas positiva, no sentido de não ter a pessoa a obrigação de ter o pleno conhecimento de sua situação de saúde”.42
Conforme bem destaca a autora, não pretende o indivíduo se ver compensado pela contaminação do HIV, e sim pela violação de sua dignidade em um de seus mais importantes substratos, qual sejam, o direito à intimidade, no momento em que fora informado da existência de doença da qual não requereu exame.43
Ora, bastaria a seguinte reflexão: para os defensores da inexistência de nexo de causalidade, diz-se que o dano provocado no indivíduo, oriundo do abalo então sofrido, teve origem na conduta do agente transmissor da doença, e não na do agente comunicador de sua existência. Conclui-se, assim, que eventual ação de reparação, na qual se examinaria a responsabilidade do sujeito causador do dano, deveria ser oferecida em face do agente transmissor.
No entanto, em hipótese diversa, na qual o desejo do indivíduo de não saber refira-se à informação de natureza distinta, a construção engendrada parece não colher. Imagine-se um caso ilustrativo em que um casal, desde muito, é sabedor da possibilidade de existência de parentesco entre si, mas, com vistas a evitar qualquer abalo em sua relação, decide não querer confirmar tal desconfiança. Após anos de matrimônio bem vividos, contudo, são informados por um terceiro de que, conforme as suspeitas, além de dividir laços matrimoniais, marido e mulher compartilham também de relação cosanguínea. Nesse exemplo, questiona-se: eventual ação de reparação deveria ser oferecida em face do agente responsável pelo parentesco entre o casal? Seus pais, no caso de marido e mulher serem primos?
Parece, assim, equivocada a assertiva de que o abalo teria origem apenas na existência da doença (ou do parentesco, para o exemplo acima), e não também de sua ciência. Não se pretende afastar, absolutamente, o fato de que a contaminação por si só é capaz de gerar sofrimentos no indivíduo. Nada obstante, afigura-se igualmente necessário considerar da possibilidade de dano oriundo especificamente da violação da autodeterminação informativa do indivíduo que é informado à sua revelia. São, em verdade, danos distintos, que não se confundem.