4. PASSAGEM FORÇADA
Todo aquele que é titular de imóvel encravado em outro ou que tenha necessariamente de passar por outro imóvel para alcançar as vias públicas de circulação ou os espaços públicos, ou para se chegar à fonte de água, tem direito à passagem forçada. Esse direito não se confunde com a servidão de passagem, pois esta pode ser instituída ainda que não seja caminho necessário. A passagem forçada, típico direito de vizinhança, é limitação ao direito de propriedade. Funda-se, segundo Caio Mário da Silva Pereira9, no princípio da solidariedade social, com origem no direito medieval. A pretensão a que o vizinho suporte a passagem é imprescritível.
O direito de passagem existe por força de lei, não necessitando de registro para que produza seus efeitos. Os requisitos são:
(1) Falta ou perda de acesso a via pública, nascente de água ou porto;
(2) constrangimento ao vizinho para que assegure a passagem;
(3) pagamento de indenização ao vizinho.
A passagem forçada é suportada pelo imóvel, através do qual o caminho necessariamente se dá, de acordo com condições e cultura do lugar. Ainda que o imóvel beneficiado com a passagem forçada seja circundado por outro ou por outros imóveis, o titular do imóvel que a suporta não pode se valer dessa circunstância para negá-la, pois o critério é o que a lei determina: sofre o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem. É o critério da utilidade e do menor custo para ambas as partes. Se o caminho ainda não existir, terá seu rumo fixado pelo juiz, que se valerá, se preciso for, de perícia. A oposição ou a dificuldade postas pelo vizinho caracterizam ilícito, qualificado como abuso do direito, fazendo nascer a ação. Por ser limitação legal ao direito de propriedade, mister se faz a prova de sua necessidade.
Numa era em que a técnica da engenharia dominou a natureza, a noção de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela motivação do instituto da passagem forçada, que deita raízes na supremacia do interesse público; juridicamente, encravado é o imóvel cujo acesso por meios terrestres exige do respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra a função social sem inutilizar o terreno do vizinho, que em qualquer caso será indenizado pela só limitação do domínio (STJ, REsp 316.336). O Código Civil de 2002 abandonou o requisito do imóvel encravado no outro, optando pela inexistência ou perda de acesso a via pública, nascente ou porto.
Esclarece o enunciado 88 das Jornadas de Direito Civil, do CJF/STJ: o direito de passagem forçada também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica. Na mesma direção, tem sido decidido que cabe a passagem forçada quando o acesso à via pública seja perigoso ou insuficiente. Essa interpretação extensiva da norma legal é a que melhor realiza a função social da propriedade. Porém, se o proprietário ou possuidor tem servidão de caminho por outro imóvel, presume-se não precisar do acesso forçado. Tampouco basta, para se reconhecer o direito de passagem forçada, a comodidade em se encurtar a distância entre o imóvel e a via pública, ou a mera tolerância do vizinho; a necessidade há de ser provada.
Se a perda de acesso resultar de alienação parcial e divisão de um imóvel, se constrangerá à passagem uma das suas partes, sem agravamento para a situação de terceiros. O titular da parte que ficou com o acesso, será constrangido a permitir a passagem ao titular ou possuidor da parte que o perdeu. Essa situação ocorre, com frequência, quando se extingue condomínio comum, pela divisão entre os ex-condôminos; nem sempre é possível divisão cômoda que permita o acesso a via pública a todas as partes resultantes. Se não houver explicitação da passagem, esta será determinada judicialmente.
O imóvel (primeiro), cuja parte foi alienada a terceiro, poderia já utilizar passagem forçada sobre terreno do vizinho (segundo). A alienação da parte do primeiro imóvel não pode agravar a situação do segundo imóvel, que já suportava a passagem forçada. O titular do segundo imóvel não está obrigado a tolerar nova passagem forçada. O rumo permanecerá o mesmo, ainda que o adquirente tenha de passar, também, pela parte restante do primeiro imóvel.
É admissível que o caminho tradicionalmente utilizado pelo titular do imóvel como passagem forçada possa ser modificado, se não causar prejuízo ou agravar a passagem. Tal ocorre quando o titular do imóvel que suporta a passagem forçada necessita ocupar o rumo utilizado, ou parte dele, para construção de obras ou para expansão de suas atividades. A mudança do rumo deve contemplar idênticas condições de passagem para se alcançar a via pública.
O direito à passagem forçada pode ser acidental e temporário, quando o acesso a via pública é obstruído, sem culpa do titular do imóvel. Exemplifique-se com inundação de rio ou queda de barreira, impedindo o acesso tradicionalmente utilizado. O direito de passagem perdurará até que o acesso originário possa ser reutilizado, em condições normais.
O direito à passagem forçada não é gratuito. O que a obtiver deverá indenizar o titular do imóvel que tiver de suportá-la. Não é indenização para expropriação, pois o trecho utilizado não se transfere para a titularidade de quem a utiliza. É indenização pela limitação da propriedade. A hipótese é de responsabilidade pela indenização do uso. A indenização será fixada por acordo mútuo ou pelo juiz, podendo ser paga de uma só vez, ou em parcelas ou mediante renda. Ainda que a perda do acesso tenha causa que possa ser imputável ao titular do próprio imóvel, persiste o direito à passagem forçada. O Código Civil de 2002 não reproduziu norma da legislação anterior, que previa o pagamento em dobro da indenização, se a perda fosse por culpa do interessado. O exercício da pretensão à passagem forçada não depende de prévia oferta do valor da indenização, pois esta é um direito do vizinho que suporta a limitação, podendo exercê-lo ou não.
5. PASSAGEM DE CABOS E TUBULAÇÕES
Além do trânsito ou passagem forçada de pessoas, a lei prevê tipo específico de passagem permanente de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos por imóveis, para fins de transmissão de energia, gás ou meios de comunicação. As relações jurídicas decorrentes não são exclusivamente de direito civil, pois há interferências do direito público administrativo. São requisitos:
(1) Dever de tolerância da passagem das instalações pelos imóveis particulares;
(2) Utilidade pública dos serviços que os utilizam;
(3) Demonstração de que a transmissão fora do imóvel é impossível ou excessivamente onerosa;
(4) Indenização.
Superada a fase da concepção absolutista da propriedade, tem-se como indeclinável o dever de tolerar que sobre o imóvel passem meios de transmissão de fontes e serviços essenciais à vida contemporânea. As instalações podem passar pelo espaço aéreo, ou sobre o solo ou pelo subterrâneo do imóvel, não se contendo nas instalações subterrâneas, pois a alusão a estas feita pelo Código Civil não as restringe.
Trata-se de limitação à propriedade, que não se confunde com desapropriação. O imóvel permanece sob a titularidade do proprietário, mas sujeito a restrição de uso, que é o de suportar a passagem das instalações e de não criar dificuldades ou riscos a suas finalidades. Algumas, como os cabos aéreos de transmissão de energia, não impedem que atividades agrícolas continuem sob eles; outros trazem potencial de risco maior, com vedação de edificações, como os condutos de gás.
As empresas titulares dos meios de transmissão, ainda que regidas pelo direito privado, prestam serviços públicos autorizados, fiscalizados ou concedidos pela administração pública. Os trajetos pelos imóveis são definidos pela administração pública competente, ou pela própria empresa, quando recebe delegação de competência para isso. Não pode o proprietário contestá-los ou indicar outros rumos, que julgue mais convenientes. Pode, no entanto, demonstrar em juízo que a passagem fora de seu imóvel se faz possível e menos onerosa, pois a lei (CC, art. 1.286) abriu essa possibilidade, quando alude que o dever de tolerância é exigível “quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa”. Pode, igualmente, exigir que a instalação seja feita de modo menos gravoso no imóvel, se possível for e assim demonstrar. Depois de feitas as instalações, pode exigir que sejam removidas para outro local do imóvel, ficando sob seu encargo as despesas correspondentes. Pode, por fim, exigir obras de segurança, se as instalações oferecerem grave risco, tais como cercados, redes de proteção, construção de coberturas.
Embora não haja desapropriação da área a ser utilizada, o dever de utilizar a passagem das instalações e a restrição ao uso correspondente do imóvel importam o pagamento de indenização compatível. O valor da indenização deve levar em conta a desvalorização que sofrerá o imóvel, como um todo, as limitações e restrições ao uso e o dano emergente no local da passagem. As instalações apenas poderão ser feitas após o pagamento da indenização, fixada amigável ou judicialmente, segundo os critérios adotados para desapropriação.
6. ÁGUAS E VIZINHANÇA
As águas, potáveis ou servidas, que atravessam imóveis vizinhos impõem disciplina que previnam ou resolvam conflitos entre os respectivos titulares, proprietários ou possuidores. Não se trata de servidão, mas sim de direito de vizinhança, direito dependente, contido no direito de propriedade, correspondente à limitação que sofre, em seu conteúdo, o direito de propriedade do imóvel vizinho. A lei (CC, art. 1.288) pressupõe a existência de desníveis de solos, porque as águas seguem a gravidade, qualificando-se os imóveis vizinhos em superiores e inferiores. Interessa saber até que ponto os titulares dos imóveis inferiores e, eventualmente, superiores têm de suportar o curso dessas águas ou, ante a crescente escassez, a falta ou redução delas, por fatos imputáveis aos titulares dos demais imóveis. O dever de não impedir o curso natural é dever de vizinhança.
Em matéria de águas, as intercessões entre o direito privado e o direito público são intensas. As águas públicas integram o domínio da União ou dos Estados membros (CF, arts. 20. e 26), não sendo reguladas pelo direito civil. A Constituição deixou pouco para o domínio privado das águas, pois o art. 26. inclui entre os bens dos Estados membros “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”. A regulação do uso das águas particulares ou das águas públicas pelos particulares, além das normas de direito civil, compreende o que dispõe o Código de Águas (Decreto nº 24.643, de 1934, com força de lei) e a Lei nº 9.433, de 1997, sobre a outorga de uso dos recursos hídricos. Esta última lei estabelece (art. 1º) que a água é um bem público de uso comum, sem qualquer ressalva, o que importa dizer que ninguém pode se apropriar de águas nascentes, correntes ou subterrâneas para seu uso exclusivo e privativo, sem outorga pública.
O titular do imóvel superior não pode realizar obras ou serviços que impeçam ou reduzam, injustificadamente, o fluxo das águas, em prejuízo do titular do imóvel inferior, que delas também necessita. Se fizer obras para facilitar o escoamento, deverá proceder de modo que não piore a condição anterior do outro. Não pode o titular do imóvel superior desviar as águas que corriam para dois ou mais imóveis e as deixar correr para um ou alguns, nem mudar a direção agravando a situação do imóvel inferior.
O titular do imóvel inferior não pode impedir ou reduzir, injustificadamente, o fluxo natural das águas que descem do imóvel superior, sejam elas pluviais ou de nascentes. Não pode construir obras que façam com que as águas retornem ao imóvel superior, tais como barragens com esse propósito, ou fazê-las voltar para a parte mais baixa do imóvel superior, além de estar obrigado a permitir que o titular do imóvel superior entre em seu imóvel para executar serviços de conservação e manutenção, de modo a que o fluxo natural não seja comprometido. Este é o dever legal de escoamento.
Só há dever de escoamento das águas do fluxo natural; não assim se as águas que descerem forem acumuladas artificialmente pelo titular do imóvel superior, como as provenientes de poços, ou encanadas, ou decorrentes de obras de irrigação, ainda que tenham sido utilizadas para suas atividades ou lazer. O titular do imóvel inferior poderá exigir que essas águas sejam desviadas, além de indenização pelos danos causados. Porém, se este tiver obtido algum beneficiamento das águas assim recebidas, a indenização será reduzida nessa exata medida.
As águas pluviais, ou seja, as que procedem imediatamente das chuvas, de acordo com o Código de Águas, pertencem ao dono do imóvel onde caírem diretamente, mas não lhe é permitido desperdiçá-las em prejuízo dos outros imóveis que delas possam aproveitar, sob pena de indenização aos respectivos proprietários, ou desviá-las de seu curso natural, sem consentimento expresso dos que esperam recebê-las. O direito ao uso das águas pluviais é imprescritível.
Ninguém pode poluir as águas que não consome, com prejuízo de terceiros, máxime quando estes forem possuidores de imóveis inferiores. Segundo o Código de Águas (art. 110), os trabalhos para a salubridade das águas serão executados à custa dos infratores, que, além da responsabilidade criminal, se houver, responderão pelas perdas e danos que causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentos administrativos. Regra conexa do Código Civil (art. 1.291) estabelece que as águas “que poluir” o titular do imóvel superior deverão ser por este recuperadas, ressarcindo os danos sofridos pelos titulares dos imóveis inferiores, se não for possível a recuperação ou o desvio do curso artificial das águas. Não há direito a poluir, em desafio ao art. 225. da Constituição. As duas regras hão de ser interpretadas conjugadamente, ou seja, ninguém pode poluir as águas e se o fizer responde pelos deveres de indenização dos danos materiais e morais causados aos prejudicados, de recuperação das águas e de desvio do curso artificial das águas, além de responder administrativa e criminalmente.
É assegurado ao titular de qualquer imóvel (superior ou inferior) o direito de construir barragens e açudes. As obras podem ter a finalidade de represamento de águas pluviais ou particulares correntes. As barragens e açudes devem conter as águas nos limites do imóvel do titular. Se os ultrapassar, deverá indenizar os danos sofridos pelos vizinhos, deduzindo-se os que estes passaram a ter de efetivo proveito, em homenagem ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa. A dedução leva em conta apenas o benefício sob a ótica do titular cujo imóvel foi invadido pelas águas, e não de quem fez o represamento. As águas podem não provocar qualquer benefício, se destruir, por exemplo, plantações. A invasão das águas é fato objetivo, que independe de demonstração de culpa.
A lei assegura “a quem quer que seja” o direito de construir canal ou aqueduto através de imóveis alheios, para receber águas, observados os seguintes requisitos:
(1) pagamento de prévia indenização;
(2) finalidades de atendimento das primeiras necessidades da vida, ou de escoamento de águas supérfluas, ou de drenagem de seu terreno;
(3) não causar prejuízos consideráveis à agricultura ou a indústria dos titulares dos imóveis onde deva passar o canal.
Sem a prévia indenização ao ou aos proprietários prejudicados, não pode iniciar a construção do canal. A indenização deve ser ajustada entre as partes; se não houver acordo, decidirá o juiz sobre o valor. O pagamento da indenização não tem finalidade expropriatória, mas sim de compensação pela limitação da propriedade; a faixa do imóvel por onde passar o canal continuará sob titularidade do dono respectivo. Para Pontes de Miranda, rigorosamente não é de indenização que se trata, mas sim de composição de interesses, diante da inevitabilidade do entrechoque dos direitos10. Primeiras necessidades dizem respeito ao consumo humano dos que vivem e trabalham no imóvel interessado e à manutenção básica das atividades pecuárias ou agrícolas. As águas supérfluas são as de captação natural que excedem as necessidades das atividades desenvolvidas no imóvel; não são assim consideradas as águas servidas, que devem ser absorvidas no próprio terreno ou canalizadas para a rede pública de coleta e saneamento, quando houver. A drenagem do terreno pantanoso ou alagadiço só autoriza a canalização pelo terreno vizinho se não for possível ser feita e absorvida a água no mesmo terreno, ou não forem viáveis processos de enxugo, além de estar em conformidade com a legislação ambiental. O proprietário de uma nascente não pode desviar-lhe o curso, se esta servir para abastecimento da população (Código de Águas, art. 94). O usuário do canal ou aqueduto tem o direito e o dever de conservá-los e mantê-los em condições adequadas, para suas finalidades e para evitar riscos de danos aos proprietários em cujos imóveis atravessem.
O prejuízo do proprietário em cujo imóvel atravessa o canal é objetivo e pressuposto. “Isso não significa prescindir da demonstração probatória, mas corresponde, isto sim, à possibilidade de superação dos meandros subjetivos circunscritos à culpa ou ao dolo”11.
Ao proprietário prejudicado com o canal ou aqueduto cabe, além da indenização prévia:
(1) direito ao ressarcimento pelos danos futuros, em virtude infiltração ou irrupção das águas, independentemente da conservação da obra, ou de sua deterioração;
(2) direito de exigir do proprietário beneficiário que a canalização seja subterrânea, quando atravessar áreas edificadas, pátios, hortas, jardins e quintais. Pode, por exclusão, ser superficial quando atravessar áreas agrícolas;
(3) direito de compensação pela desvalorização da área remanescente, notadamente quando se tornar inaproveitável;
(4) direito de exigir que a canalização seja feita de modo menos gravoso no imóvel onde deva atravessar;
(5) direito de remoção da canalização para outro lugar, assumindo as despesas decorrentes;
(6) direito de exigir obras de segurança, se a canalização oferecer grave risco.
O direito ao canal ou aqueduto, em virtude de sua natureza de limitação à propriedade para satisfação de interesses particulares, apenas existe para as finalidades explicitadas na lei, não sendo admissível para outras, inclusive para fins de expansão de atividades. A lei (CC, art. 1.293) não alude às finalidades de agricultura ou indústria. Há entendimento, todavia, estampado no enunciado 245 das Jornadas de Direito Civil, do CJF/STJ, de que a norma legal não exclui a possibilidade de canalização forçada pelo vizinho, com prévia indenização aos proprietários prejudicados.
Terceiros podem se utilizar das águas canalizadas, que sejam consideradas supérfluas, ou seja, não necessárias às finalidades do beneficiário. Nessa hipótese, será devida indenização a ser compartilhada pelo proprietário beneficiário e o proprietário prejudicado. Estabeleceu a lei, como parâmetro, a importância equivalente às despesas que seriam necessárias para condução das águas retiradas por terceiros, se elas chegassem ao destino. A preferência para utilização das águas supérfluas é a do proprietário ou possuidor prejudicado pela canalização.