10. POSSE EM CONFRONTO COM A PROPRIEDADE
A posse que não seja a do próprio dono da coisa vive em constante tensão com o direito de propriedade. A posse é protegida desde seu nascedouro até mesmo quando o possuidor esteja de má-fé, ou seja, quando saiba que a coisa é de titularidade de outrem. As únicas posses que nosso direito não protege são as havidas de modo clandestino ou violento, senão depois de cessar a clandestinidade ou a violência (CC, art. 1.208). Nessas hipóteses, há posse, mas o direito a rejeita, em virtude de ser viciada sua causa. A posse há de ser pública, conhecida, além de não resultar de esbulho pela violência. Tampouco constitui posse a detenção da coisa que derive de atos de permissão ou tolerância do possuidor da coisa, seja ele dono, titular de direito real ou mero possuidor.
Pode parecer estranho que se proteja a posse contra o proprietário da coisa. Assim é porque a inércia deste afronta o princípio da função social da propriedade, pois é do interesse social que seja útil. A utilidade da coisa repercute não só em benefício do proprietário, mas também do conjunto da sociedade, agregando valor e ampliando o uso. Nesse sentido é que a Constituição (art. 182) sanciona com várias consequências negativas o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, indo do parcelamento ou edificações compulsórios, ao imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo e à desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública.
O confronto entre a posse e a propriedade atinge seu ponto mais agudo com a usucapião, que resulta na extinção do direito de propriedade anterior no mesmo instante em que a posse insurgente se converte em novo direito de propriedade sobre a mesma coisa. Cada sistema jurídico estabelece os requisitos, notadamente temporais, para a incidência da usucapião. Pode haver variedade de hipóteses de usucapião, para atender a determinadas situações, como ocorre no sistema jurídico brasileiro. A divergência maior radica na natureza da sentença judicial que reconhece a usucapião. Em alguns sistemas jurídicos a sentença é constitutiva; antes dela não se consuma a usucapião. No sistema jurídico brasileiro a sentença produz efeitos meramente declarativos, isto é, declara o que já ocorreu no mundo dos fatos e no mundo do direito, sem nada acrescentar para a aquisição da propriedade pelo possuidor usucapiente. No mundo dos fatos, comprova-se que a posse foi contínua – sem interrupção, nem oposição do proprietário ou de terceiro - e que o termo final do tempo exigido em lei foi alcançado. No mundo do direito, houve a concretização do suporte fático previsto na norma legal (continuidade da posse, mais tempo) com a incidência desta, convolando-se o suporte fático em fato jurídico, cujo efeito relevante é o direito de propriedade que se adquiriu e foi assim declarado na sentença. O art. 1.238 do Código Civil fixa os dois momentos, o primeiro o da aquisição da propriedade, “independentemente de título e boa-fé”; o segundo, o requerimento ao juiz para que assim o “declare por sentença”.
A valorização da posse em face da propriedade, como tendência do legislador, também se observa no abandono pelo Código Civil de 2002 da oposição da exceção da propriedade (exceptio proprietatis). Não mais existe a seguinte regra da legislação anterior (CC-1916, art. 505) que permitia ao titular do direito de propriedade se opor à pretensão do possuidor mediante a exceção de seu título de propriedade, que presumia a posse: “Não se deve, entretanto, julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio”.
A usucapião produz profundo golpe no direito de propriedade. No confronto com esta, a posse sai vencedora. Os fatos (posse continuada sobre a coisa, sem interrupção ou oposição, mais tempo) são suficientes para extinguir o direito subjetivo simbolicamente mais forte em nosso direito, o de propriedade. Pouco importa a antiguidade do título e sua sucessão por gerações, quando desafiado pela posse que redundou em usucapião.
11. CONCEPÇÕES LEGAIS BRASILEIRAS DA POSSE
A palavra “posse” é polissêmica, no sistema legal brasileiro. Pode ser empregada no sentido de: a) situação de fato ou poder de fato, que ainda não ingressou no mundo direito; b) de conjunto de direitos e deveres como efeitos de sua entrada no mundo jurídico.
Do sistema legal brasileiro surgem não apenas uma, mas duas definições essenciais e complementares da posse de coisas:
A posse é o exercício de poderes de fato que corresponde ao exercício dos poderes inerentes à propriedade.
A posse é legitimação própria do direito de usar e possuir a coisa.
A primeira definição legal é relativa à posse em geral. A posse, enquanto exercício fático de algum dos poderes inerentes à propriedade, permanece no mundo dos fatos; é fato do mundo dos fatos. Todavia, quando é violada ou corre o risco de ser violada, ingressa no mundo do direito, como fato jurídico merecedor da proteção possessória que o ordenamento lhe confere. Também converte-se em fato jurídico quando é objeto de negócio jurídico ou em virtude da sucessão hereditária. A posse não pode ir além, como poder fático, do que, como poder jurídico, poderia ir o poder contido na propriedade.
A segunda definição é da posse autônoma, como direito subjetivo próprio, quando a Constituição e a lei dispensam a correlação com a propriedade. A definição legal dada pelo Código Civil limita-se à posse correlacionada à propriedade. Mas não abrange a posse autônoma, que, por ser independente da propriedade, já é fato jurídico, de onde promana o direito subjetivo. Quando a posse é autônoma, como nos exemplos das terras dos índios ou da legitimação da posse registrada decorrente de demarcação urbanística, ela já ingressa no mundo do direito como fato jurídico, por força de lei. Nessas hipóteses é correto dizer-se direito de posse.
Tanto em uma quanto em outra definição não há de se cogitar do elemento intencional (animus). Na primeira capta-se a facticidade do exercício de poderes e não de atos de poderes; na segunda, é a lei que confere diretamente a legitimação. Tampouco faz sentido, para elas, o recurso ao comportamento como se dono fosse (corpus). O exercício fático parcial de poderes, correspondentes a determinados poderes jurídicos, conduzem à posse de outros direitos reais, distintos da propriedade, ou à posse derivada de relações negociais, também distinta. Na posse autônoma, não há correspondência com os poderes de proprietário.
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