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Multiparentalidade: aspectos ainda controvertidos

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A multiparentalidade permite a coexistência de parentalidades biológica e socioafetiva, mas há limites na quantidade de pais e mães? Há igualdade jurídica entre os tipos de pais?

Coexistência de parentalidades e a tese do STF de repercussão geral

O reconhecimento jurídico da coexistência de parentalidades (entendidas como relações recíprocas entre pais e/ou mães e filhos e/ou filhas) é recente em nosso direito. Quando a Constituição de 1988 admitiu o estado de filiação socioafetiva, em igualdade de condições com a filiação biológica (art. 227, § 6º), a doutrina e a jurisprudência majoritárias encaminharam-se para o entendimento de que, em se comprovando a posse de estado da filiação, esta deveria prevalecer sobre a origem biológica que não fosse acompanhada de convivência familiar efetiva. Outras decisões, no entanto, optaram pelo prevalecimento da origem biológica, para o fim de cancelamento de registro de filiação socioafetiva derivada de posse de estado ou de adoção de fato. Assim, em ambas as perspectivas, o pressuposto era a exclusividade da parentalidade (ou biológica, ou socioafetiva).

Esse quadro controvertido e conflituoso de parentalidades antagônicas foi desafiado em 2016, quando o STF, ao concluir o julgamento do RE 898.060, adotou a tese de repercussão geral nº 622, assim enunciada:

“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

Portanto, o efetivo ingresso da multiparentalidade no direito brasileiro deu-se pela via jurisprudencial, tendo como principais efeitos o reconhecimento da igualdade jurídica entre a parentalidade socioafetiva e a parentalidade biológica e a quebra do modelo binário das relações de parentalidade, em situações excepcionais.

Tal reconhecimento jurídico da multiparentalidade, haurido da aplicação direta e imediata dos princípios constitucionais às relações de família, teve como uma de suas consequências transversais a indiscutibilidade da filiação socioafetiva e seu status de igualdade em face da filiação biológica, reduzindo substancialmente os problemas decorrentes das divergências de precedência de uma sobre outra nos casos concretos.

O Tribunal fundou-se explicitamente no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), que inclui a tutela da felicidade e da realização pessoal dos indivíduos, impondo-se o reconhecimento jurídico de modelos familiares diversos da concepção tradicional. Igualmente, no princípio constitucional da paternidade responsável (CF, art. 226, § 7º), que não permite decidir entre a filiação socioafetiva e a biológica, devendo todos os pais assumir os encargos decorrentes do poder familiar e permitindo ao filho desfrutar dos direitos em relação a eles sem restrição.

Espera-se que uma tese de repercussão geral, fixada pelo STF, uniformize a interpretação constitucional, mediante o apaziguamento das divergências nos casos idênticos. Mas será que esta função prestante da repercussão geral, no caso da multiparentalidade, confirma-se ou permanece dando margem a entendimentos controvertidos, mercê das complexidades do mundo da vida familiar?


A respeito dos “casos semelhantes”

A ementa do Acordão expressamente dispõe que a Tese jurídica, acima enunciada, se aplica a casos semelhantes ao caso concreto julgado, ou seja, a coexistência de uma parentalidade biológica e de uma parentalidade socioafetiva. Assim, em princípio, a Tese não abrigaria as hipóteses de duas parentalidades biológicas (resultantes de manipulação genética) exclusivas ou de duas parentalidades socioafetivas exclusivas.

Nesse cenário de incertezas, e com o fim de demarcar doutrinariamente os lindes da multiparentalidade, entendemos que seu alcance deve ter observância e aplicação restritivas aos casos iguais ou semelhantes, ou seja, naqueles onde haja a coexistência de vínculo socioafetivo e vínculo biológicos, considerando-se a igualdade jurídica entre eles, e que correspondam à relação básica ocorrida no caso paradigma e às finalidades do enunciado da Tese 622 do STF.

Configuram hipóteses semelhantes as em que ocorram coexistência de parentalidades (não apenas paternidades) biológicas e quaisquer parentalidades socioafetivas comprovadas (ainda que não registradas ou judicialmente reconhecidas), sem a ordem do caso paradigma. Assim: paternidade(s) biológica(s) + paternidade(s) socioafetiva(s); maternidade(s) socioafetivas + maternidade(s) biológica(s); maternidade biológica(s) + maternidade(s) socioafetivas(s).

O âmbito da tese é restrito, o que torna a multiparentalidade exceção, diferentemente da exclusiva parentalidade socioafetiva ou da exclusiva parentalidade biológica, as quais permanecem como regras de atribuição da filiação, no direito brasileiro.

Colhem-se no CC de 2002 as seguintes espécies legais de filiação socioafetiva ou não biológica, em sentido amplo:

  1. Adoção de crianças, adolescentes e de adultos, sempre judicialmente (arts. 1.596 e 1.618, com envio ao ECA, que concentrou a disciplina da adoção de crianças e adolescentes);

  2. Filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, com sêmen de terceiro, desde que com prévia autorização do marido, em relação a este (1.597, V). A origem do filho, em face aos pais, é parcialmente biológica, pois o pai é exclusivamente socioafetivo, jamais podendo ser contraditada por investigação de parentalidade ulterior;

  3. Posse de estado de filiação (art. 1.605), ou filiação socioafetiva em sentido estrito, sendo esta espécie a mais exigente de prova (começo de prova por escrito, ou resultante de “veementes presunções resultantes de fatos já certos”), que tem concentrado a atenção da doutrina e da jurisprudência. As presunções “veementes” são verificadas em cada caso, dispensando-se outras provas da situação de fato

A parentalidade socioafetiva – para os fins da tese do STF - restringe-se às hipóteses de posse de estado de filiação, excluindo-se a adoção e a filiação oriunda de inseminação artificial heteróloga, como adiante demonstraremos. Também está excluída a filiação biológica que nunca foi antecedida por filiação socioafetiva.


Os “efeitos jurídicos próprios” da tese geral do Tema 622

Ante a concisão das teses dos temas de repercussão geral, as expressões amplas utilizadas são exigentes de interpretação, de acordo com os princípios e pressupostos que os inspiraram. Tal se dá com a expressão “com os efeitos jurídicos próprios”.

A análise do julgamento do caso concreto paradigma pouco contribui, até porque a decisão que o STF nele proferiu é exatamente contrária ao que estipula a tese geral, no que concerne à multiparentalidade. No caso concreto, a maioria do Tribunal, contraditoriamente, confirmou as decisões judiciais anteriores no sentido do cancelamento do registro da paternidade socioafetiva, para se fazer constar apenas a paternidade biológica.

Do núcleo da tese do Tema 622 resultam as seguintes conclusões, que nos permitem avançar nos efeitos jurídicos próprios:

  1. O reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva;

  2. A inexistência de primazia entre as filiações biológicas e socioafetivas;

  3. O caráter excepcional da multiparentalidade.

Assim sendo, em relação aos efeitos da origem genética ou biológica:

  • a) quando configurada a prévia parentalidade socioafetiva, registrada ou não, a origem genética intitula o filho a investigar a parentalidade biológica com efeitos amplos de parentesco, além do registro civil. Igualmente, pode o genitor biológico reconhecer o filho biológico, com todos os efeitos decorrentes, inclusive o do registro civil concomitante;

  • b) permanece o direito ao conhecimento da origem genética, como direito da personalidade, sem efeitos de parentesco, na hipótese de adoção, conforme previsto expressamente no art.48 do ECA, com a redação dada pela Lei n. 12.010/2009. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como a obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos. Em caso de recusa ao acesso, pode ser ajuizada ação para tal finalidade, que não se confunde com investigação de paternidade ou maternidade. A decisão do STF não implica inconstitucionalidade da norma legal que estabelece a ruptura dos vínculos familiares de origem do adotado, exceto quanto aos impedimentos matrimoniais. Vigora, no direito constitucional brasileiro, a presunção de constitucionalidade das normas legais, até que sejam declaradas inconstitucionais pelo STF;

  • c) o direito ao conhecimento da origem genética, também sem efeitos de parentesco, é assegurado ao que foi concebido com uso de sêmen de outro homem, que não o marido da mãe e com autorização deste, de acordo com o art. 1.597, V do Código Civil, desde que o dador tenha consentido nessa utilização, sem se valer da garantia de anonimato;

  • d) não há direito ao conhecimento da origem genética nem ao reconhecimento judicial da parentalidade, se a técnica de reprodução assistida utilizar materiais genéticos de dador anônimo, crioconservados em estabelecimentos especializados para inseminação artificial.

Os direitos e deveres jurídicos do filho com múltiplas parentalidades são iguais em face dos pais e avós socioafetivos e biológicos, particularmente quanto:

  • a) a autoridade parental ou poder familiar, que é exercida de modo compartilhado, em princípio, pelos pais biológicos e socioafetivos, tal como ocorre com os pais separados. Em caso de conflito entre pais biológicos e socioafetivos, como não há primazia entre eles, o juiz deve se orientar pelo princípio do melhor interesse do filho, para a tomada de decisão. Se ambos os pais forem considerados temporariamente inaptos para exercer a autoridade parental, pode o juiz determinar a guarda a algum ou alguns dos avós, biológicos ou socioafetivos, observado o melhor interesse dos netos, assegurado o direito ao contato aos demais.

  • b) a guarda compartilhada é obrigatória por lei, entre os pais, salvo se se ficar demonstrada em decisão judicial motivada que a guarda individual, ante as circunstâncias especiais, é a que mais recomendável por força do melhor interesse do filho. Essa regra é aplicável tanto para situação comum do casal de pais, quanto para a de multiparentalidade (mais de dois pais), até porque não há hierarquia entre eles. A guarda compartilhada é compatível com a preferência da moradia que o filho tem como referência para suas relações sociais e afetivas. No exemplo comum, de filho que sempre viveu com seus pais socioafetivos, a moradia deste é preferencial. O conflito deve ser arbitrado pelo juiz, de modo a que assegure o contato do filho com seus pais socioafetivos e biológicos, e com os parentes de cada linhagem, especialmente os avós.

  • c) os alimentos devem ser partilhados pelos pais socioafetivos e biológicos em igualdade de condições, em princípio. Em caso de conflito entre eles, o juiz deve considerar a partilha proporcional do valor de acordo com as possibilidades econômicas de cada um, segundo os critérios da justiça distributiva. Os alimentos devem ser fixados em valor único, para partilha entre os pais, pois o suprimento da necessidade do alimentando não depende da quantidade de devedores alimentantes, além da observância da vedação legal do enriquecimento sem causa (CC, art. 884).

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Situações complexas de multiparentalidades aparentes

O direito de família brasileiro sempre teve entre seus pilares o modelo binário de parentalidade em relação aos filhos. Segundo o padrão tradicional, o casal constituído de pai e mãe. Quando os pais não fossem casados e apenas um fosse o declarante do nascimento no registro civil, caberia a pretensão à investigação da paternidade ou maternidade em relação ao outro, se não tivesse havido o reconhecimento voluntário. Essa regra era aplicável tanto à parentalidade biológica quanto à socioafetiva.

Com a decisão do STF (ADI n. 4.277) em 2011, a união homoafetiva foi juridicamente reconhecida como entidade familiar, com igual tutela jurídica conferida às demais entidades familiares. Nessa entidade familiar, o modelo binário da parentalidade continuou, dado a que se encerra no casal de pessoas do mesmo sexo, sendo excluídas terceira ou terceiras pessoas.

A ocorrência de múltiplos pais e mães é uma realidade da vida, cuja complexidade o direito não conseguiu lidar satisfatoriamente até agora, em nenhum país do mundo. Ela é agravada com os resultados fantásticos das manipulações genéticas (por exemplo, o uso de materiais genéticos de três pessoas, para reprodução assistida).

No início, a multiparentalidade pareceu ser o caminho adequado para abrigar a parentalidade dos casais de mesmo sexo, mas tornou-se dispensável desde quando o STF admitiu que esses casais podem constituir família. Permanece sua utilidade, no entanto, para as técnicas de reprodução assistida, quando mais de duas pessoas são nelas envolvidas, a exemplo de utilização de sêmen de amigo ou conhecido para inseminação de uma ou das duas integrantes de união homoafetiva. Essas hipóteses não estão suficientemente enfrentadas pelo direito brasileiro.

A multiparentalidade tem sido ressaltada em casos julgados por nossos tribunais, incluindo o STJ, que envolvem a admissibilidade de cumulação de paternidade ou maternidade, no registro civil, em situações em que há pai ou mãe registral e se pleiteia o acréscimo do sobrenome de pai ou mãe biológicos. Ou quando o registro de pai ou mãe biológicos é acrescentado do sobrenome de quem efetivamente criou a pessoa.

Na legislação, há previsão expressa do acréscimo do sobrenome do padrasto ou madrasta, por requerimento do enteado e assentimento daqueles (“Lei Clodovil”, nº 11.924/2009), cuja anotação simbólica reflete a história de vida da pessoa. A lei é omissa quanto aos demais efeitos jurídicos, para além do parentesco por afinidade. A averbação não significa substituição ou supressão do sobrenome anterior, mas acréscimo, de modo a não ensejar dúvida sobre a antiga identidade da pessoa, para fins de eventuais responsabilidades. O acréscimo do sobrenome não altera a relação de parentesco por afinidade com o padrasto ou madrasta, cujo vínculo assim permanece, sem repercussão patrimonial, uma vez que tem finalidade simbólica e existencial. Consequentemente, não são cabíveis pretensões a alimentos ou sucessão hereditária, em razão desse fato.

A relação entre padrasto ou madrasta e enteado configura vínculo de parentalidade singular, permitindo-se àqueles contribuir para o exercício do poder familiar do cônjuge ou companheiro sobre o filho/enteado, uma vez que a direção da família é conjunta dos cônjuges ou companheiros, em face das crianças e adolescentes que a integram. Dessa forma, há dois vínculos de parentalidade que se entrecruzam, em relação ao filho do cônjuge ou do companheiro: um, do genitor originário separado, assegurado o direito de contato ou de visita com o filho; outro, do padrasto ou madrasta, de convivência com o enteado. Porém, por mais intensa e duradoura que seja a relação afetiva entre padrasto ou madrasta e seus enteados, dessa relação não nasce necessariamente paternidade ou maternidade socioafetiva em desfavor do pai ou da mãe legais ou registrais, porque não se caracteriza a posse de estado de filiação, o que igualmente afasta a multiparentalidade.

Pode ocorrer, todavia, a conversão fática do parentesco por afinidade em parentesco socioafetivo, quando gradativamente a relação entre padrasto/madrasta e seus enteados se transmuda em posse de estado de filiação, o que deve ser provado em juízo, para que se possa cogitar de conversão em parentalidade socioafetiva e multiparentalidade com suas consequências jurídicas. Ou seja, o parentesco por afinidade, próprio da família recomposta, pode se converter, ante a força dos fatos, em parentalidade socioafetiva, que passa a coexistir com a parentalidade biológica (o padrasto ou a madrasta assumem com o passar do tempo o status de pai ou mãe socioafetivos; os enteados passam a ser considerados filhos). Sem a comprovação da posse de estado de filiação, o parentesco por afinidade não pode ser tido como relação de parentalidade, conducente da multiparentalidade.

Ainda em relação à família recomposta, pode haver a perda do poder familiar dos pais, como decidiu o STJ (REsp 1106637), que reconheceu a legitimidade de padrasto para pedir a destituição do poder familiar, em face do pai biológico, como medida preparatória para a adoção unilateral da criança. Esta não é hipótese de multiparentalidade, pois a parentalidade de origem biológica foi extinta em virtude da adoção.

O namoro ou noivado não podem ensejar multiparentalidade. Assim é porque esses relacionamentos afetivos são pré-familiares, ou seja, têm o escopo de constituição de família, mas não são ainda famílias constituídas. É certo que, às vezes, ultrapassam a tênue zona limítrofe e se convertem em união estável, que é ato-fato jurídico - quando o direito desconsidera a vontade e atribui consequências ao resultado fático - e não ato ou negócio jurídico, estes dependentes de manifestação de vontade negocial consciente; porém, quando isso ocorre, não se cogita mais de namoro ou noivado, mas sim de entidade familiar própria.


Adoção e inseminação artificial heteróloga excluem a multiparentalidade

A inseminação artificial heteróloga ocorre quando o marido autoriza a utilização de sêmen de outro homem, normalmente dador anônimo, para a fecundação do óvulo da mulher. A lei não exige que o marido seja estéril ou, por qualquer razão física ou psíquica, não possa procriar. A única exigência é que tenha o marido previamente autorizado a utilização de sêmen estranho ao seu. A lei não exige que haja autorização escrita, apenas que seja “prévia”, razão por que pode ser verbal e comprovada em juízo como tal. Ressalta-se a distinção entre o pai e o genitor biológico ou dador anônimo.

A tutela legal desse tipo de concepção vem fortalecer a natureza fundamentalmente socioafetiva, e não biológica, da filiação e da paternidade, consequentemente da parentalidade. Se o marido autorizou a inseminação artificial heteróloga não poderá negar a paternidade, em razão da origem genética, nem poderá ser admitida investigação de paternidade, com idêntico fundamento, máxime em se tratando de dadores anônimos. Em virtude de suas características, que ressaltam a autonomia e a assunção definitiva da paternidade, como se pai biológico fosse, essa parentalidade socioafetiva é incompatível com a multiparentalidade.

A norma legal brasileira apenas prevê a inseminação artificial heteróloga em relação ao marido. Porém, por similitude, se a mulher for fecundada com óvulo de outra, com sêmen do marido, ter-se-á a mesma atribuição de filiação: ela e seu marido serão os pais legais do filho que vier a nascer, pois militam nessa direção as presunções de maternidade e paternidade.

Assim também, o modelo brasileiro atual da adoção (CC, art. 1.618, que remete ao ECA) é de natureza judicial e de ruptura completa dos vínculos com a família de origem (biológica ou socioafetiva), salvo para fins de impedimentos matrimoniais. Nem sempre foi assim, pois a legislação anterior admitia a adoção simples de duplo vínculo (família de origem e com o ou os adotantes).1

Tal modelo também se harmoniza com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil nessa matéria. A Convenção Interamericana sobre Conflitos de Leis em Matéria de Adoção de Menores, de 1984, promulgada pelo Decreto n. 2.429/1997, estabelece em seu art. 9º que, em caso de adoção plena, os vínculos do adotado com sua família de origem serão considerados dissolvidos, salvo os impedimentos para contrair matrimônio.

A adoção é ato jurídico em sentido estrito, de natureza complexa, pois depende de decisão judicial para produzir seus efeitos. Não é negócio jurídico unilateral. Por dizer respeito ao estado de filiação, que é indisponível, não pode ser revogada. O ato é personalíssimo, não se admitindo que possa ser exercido por procuração (art. 39 do ECA).

A cláusula de barreira impeditiva da aplicação da multiparentalidade, quando houver adoção, decorre da lei e os preceitos normativos correspondentes estão em plena vigência.

Ora, se há o desligamento com o vínculo familiar de origem, não há que se cogitar de multiparentalidade, cujo pressuposto é a necessária coexistência de vínculos legalmente admitidos (biológicos e socioafetivos).

Nesse sentido é o enunciado 111 das Jornadas de Direito Civil (CJF):

“A adoção e a reprodução assistida heteróloga atribuem a condição de filho ao adotado e à criança resultante de técnica conceptiva heteróloga; porém, enquanto na adoção haverá o desligamento dos vínculos entre o adotado e seus parentes consanguíneos, na reprodução assistida heteróloga sequer será estabelecido o vínculo de parentesco entre a criança e o doador do material fecundante”.

O Estatuto da Criança e do Adolescente instaurou uma situação peculiar, em relação a adoção. Durante o período compreendido entre o Estatuto da Criança e do Adolescente e antes do Código Civil de 2002 às regras da adoção estavam sob a égide do Código Civil de 1916. Consequentemente, as regras aplicáveis eram distintas, a depender do destinatário. Quer dizer, o Código Civil/1916 regulava a modalidade da adoção simples, dirigida aos adultos, enquanto a adoção plena, voltada para crianças e adolescentes, era regulada pelo Estatuto. Situação que permaneceu até a entrada em vigou do Código Civil de 2002, que baseado no modelo adotado pelo ECA (art.47), disciplinou que a adoção de maiores de dezoito anos também se faria mediante sentença judicial constitutiva (art. 1.623), encerrando por definitivo a distinção entre adoção simples e plena.

Para além desta exigência, a legislação civil estabeleceu outros efeitos, quais sejam: o deferimento da adoção encontra-se condicionado, à comprovação de efetivo benefício para o adotando, a adoção atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes consanguíneos, salvo quanto aos impedimentos para o casamento e a decisão confere ao adotado o sobrenome do adotante, podendo determinar a modificação de seu prenome, se menor, a pedido do adotante ou do adotado.

Posteriormente, com a Lei nº 12.010/2009, toda a matéria de adoção, inserta na legislação civil foi revogada e remetida ao ECA, que estabelece a irrevogabilidade da adoção (art. 39, § 1º) e o não restabelecimento do poder familiar dos pais naturais, diante da morte dos adotantes (art. 49).

O estado de filiação decorrente da adoção, se configura com a atribuição da condição de filho ao adotado, em relação aos adotantes. Do vínculo que resulta da inscrição no registro civil será consignado o nome dos adotantes, como pais, bem como o nome de seus ascendentes (ECA, art. 47 § 1º) conferindo ao adotado o nome de família do adotante e, a pedido de qualquer deles, faculta-se a modificação do prenome (ECA, art. 47,§ 5º).

Cabe ressaltar que a mesma cláusula de barreira concernente à adoção também se estende às chamadas adoção intuito personae. Entendem-se assim as hipóteses que dispensam a ordem do Cadastro Nacional de Adoção, bem como as hipóteses de adoção de fato (“à brasileira”), cujo fundamento encontra respaldo no mesmo princípio constitucional da igualdade da filiação.

Acresça-se que a tutela constitucional da adoção (art. 226, § 6º) é irredutível aos modelos legais anteriores, que admitiam a preservação de vínculos familiares de origem. Assim é porque o fim social da norma constitucional é o estímulo à adoção com a inserção definitiva e exclusiva da criança ou adolescente em nova família, que estaria comprometido com a preservação dos vínculos familiares anteriores.

Os vínculos jurídicos derivados da adoção e de inseminação artificial heteróloga são espécies legais de parentalidade socioafetiva. Porém, diferentemente da posse de estado de filiação (terceira espécie legal de parentalidade socioafetiva), tais vínculos são exclusivos e excludentes de multiparentalidade, por determinação legal. Assim, a única parentalidade socioafetiva que admite a multiparentalidade é a decorrente de posse de estado de filiação.


Notas

[1] Art. 378 -Os direitos e deveres que resultam do parentesco natural não se extinguem pela adoção, exceto o pátrio poder, que será transferido do pai natural para o adotivo.

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Sobre os autores
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Fabíola Albuquerque Lobo

Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito do Recife/UFPE. Integrante do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Autora de livros e artigos em revistas especializadas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo ; LOBO, Fabíola Albuquerque. Multiparentalidade: aspectos ainda controvertidos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7755, 24 set. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/105911. Acesso em: 7 out. 2024.

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