6. Consequências: reconhecimento da socioafetividade e da multiparentalidade (ou a possibilidade jurídica de múltiplos pais e mães)
Constata-se, positivamente, que o STF, tanto no voto condutor, quanto no voto divergente, confirmou o reconhecimento jurídico da socioafetividade. Como o julgamento em repercussão geral produz eficácia geral, de cumprimento obrigatório pelo sistema judiciário, a socioafetividade e, principalmente, a filiação socioafetiva não mais poderão ser questionadas em juízo.
Ainda que o STF não tenha utilizado a expressão “parentalidade socioafetiva”, a alusão à “paternidade socioafetiva” deve ser entendida como abrangente da maternidade socioafetiva. A exclusão da maternidade socioafetiva importaria tratamento desigual para situações equivalentes do mundo da vida, o que contrariaria os pressupostos sobre os quais o STF decidiu. Portanto, há seu reconhecimento implícito.
Outro ponto relevante é o reconhecimento de que a filiação socioafetiva não apenas se constata pela declaração ao registro público, mas também pela ocorrência no mundo da vida, notadamente pela posse do estado da filiação, cujos efeitos jurídicos independem do registro público, ao qual é atribuída função declaratória, do mesmo modo que à sentença judicial.
O direito de família brasileiro sempre teve entre seus pilares o modelo binário de parentalidade em relação aos filhos. Segundo o padrão tradicional, o casal constituído de pai e mãe. Quando os pais não fossem casados e apenas um fosse o declarante do nascimento no registro civil, caberia a pretensão à investigação da paternidade ou maternidade em relação ao outro, se não tivesse havido o reconhecimento voluntário. Essa regra era aplicável tanto à parentalidade biológica quanto à socioafetiva.
Com a decisão do STF (ADI n. 4.277) em 2011, a união homoafetiva foi juridicamente reconhecida como entidade familiar, com igual tutela jurídica conferida às demais entidades familiares. Nessa entidade familiar, o modelo binário da parentalidade continuou, dado a que se encerra no casal de pessoas do mesmo sexo, excluídas terceira ou terceiras pessoas.
Todavia, paralelamente à construção da categoria da socioafetividade, peregrinou a tese da possível tutela da multiparentalidade, rompendo o modelo binário, tanto dos casais heterossexuais quanto dos casais de mesmo sexo. Pugna pela legalidade, no direito brasileiro, de múltiplos pais e mães.
É uma realidade da vida, cuja complexidade o direito não conseguiu lidar satisfatoriamente até agora, em nenhum país do mundo. Ela é agravada com os resultados fantásticos das manipulações genéticas (por exemplo, o uso de materiais genéticos de três pessoas, para reprodução assistida).
No início, a multiparentalidade pareceu ser o caminho adequado para abrigar a parentalidade dos casais de mesmo sexo, mas tornou-se dispensável desde quando o STF admitiu que esses casais podem constituir família. Permanece sua utilidade, no entanto, para as técnicas de reprodução assistida, quando mais de duas pessoas são nelas envolvidas, a exemplo de utilização de sêmen de amigo para inseminação de uma ou das duas integrantes de união homoafetiva. Essas hipóteses não estão suficientemente enfrentadas pelo direito brasileiro.
Igualmente, a multiparentalidade tem sido ressaltada em casos julgados por nossos tribunais, incluindo o STJ, que envolvem a admissibilidade de cumulação de paternidade ou maternidade, no registro civil, em situações em que há pai ou mãe registral e se pleiteia o acréscimo do sobrenome de pai ou mãe biológicos. Ou quando o registro de pai ou mãe biológicos é acrescentado do sobrenome de quem efetivamente criou a pessoa.
Na legislação, há previsão expressa do acréscimo do sobrenome do padrasto ou madrasta, por requerimento do enteado e assentimento daqueles (“Lei Clodovil”, nº 11.924/2009), cuja anotação simbólica reflete a história de vida da pessoa. A lei é omissa quanto aos demais efeitos jurídicos, para além do parentesco por afinidade. A averbação não significa substituição ou supressão do sobrenome anterior, mas acréscimo, de modo a não ensejar dúvida sobre a antiga identidade da pessoa, para fins de eventuais responsabilidades. O acréscimo do sobrenome não altera a relação de parentesco por afinidade com o padrasto ou madrasta, cujo vínculo assim permanece, sem repercussão patrimonial, uma vez que tem finalidade simbólica e existencial. Consequentemente, não são cabíveis pretensões a alimentos ou sucessão hereditária, em razão desse fato.
O namoro ou noivado não podem ensejar multiparentalidade. Assim é porque esses relacionamentos afetivos são pré-familiares, ou seja, têm o escopo de constituição de família, mas não são ainda famílias constituídas. É certo que, às vezes, ultrapassam a tênue zona limítrofe e se convertem em união estável, que é ato-fato jurídico - quando o direito desconsidera a vontade e atribui consequências ao resultado fático - e não ato ou negócio jurídico, estes dependentes de manifestação de vontade negocial consciente; porém, quando isso ocorre, não se cogita mais de namoro ou noivado, mas sim de entidade familiar própria.
A relação entre padrasto ou madrasta e enteado configura vínculo de parentalidade singular, permitindo-se àqueles contribuir para o exercício do poder familiar do cônjuge ou companheiro sobre o filho/enteado, uma vez que a direção da família é conjunta dos cônjuges ou companheiros, em face das crianças e adolescentes que a integram. Dessa forma, há dois vínculos de parentalidade que se entrecruzam, em relação ao filho do cônjuge ou do companheiro: um, do genitor originário separado, assegurado o direito de contato ou de visita com o filho; outro, do padrasto ou madrasta, de convivência com o enteado. Porém, por mais intensa e duradoura que seja a relação afetiva entre padrasto ou madrasta e seus enteados, dessa relação não nasce paternidade ou maternidade socioafetiva em desfavor do pai ou da mãe legais ou registrais, porque não se caracteriza a posse de estado de filiação, o que igualmente afasta a multiparentalidade, salvo se houver a perda do poder familiar dos pais, como decidiu o STJ (REsp 1106637), que reconheceu a legitimidade de padrasto para pedir a destituição do poder familiar, em face do pai biológico, como medida preparatória para a adoção unilateral da criança.
A decisão do STF provocou verdadeiro giro de Copérnico. Até então, no conflito entre parentalidade socioafetiva e origem genética, esta não podia prevalecer sobre aquela (notadamente nos casos de “adoção à brasileira”), máxime quando o móvel fosse patrimonial ou econômico, notadamente participar da sucessão de genitor biológico afortunado. A rejeição a essa pretensão já tinha sido objeto de antigo precedente do STF, em 1970, tendo sido relator o Min. Aliomar Baleeiro8. Doravante, as discussões sobre a origem biológica e a força desta para afastar a parentalidade socioafetiva perderam consistência.
Por ser tema de repercussão geral, não pode ficar adstrito ao caso concreto. Destarte, têm-se como abrangidas as hipóteses de mãe e pai socioafetivos registrados, aos quais se pode acrescentar a mãe biológica, ou o pai biológico ou ambos, o que resultará, eventualmente, em três ou quatro pais, no total.
Do núcleo da tese jurídica geral, nesse julgamento do STF, resultam as seguintes conclusões, que nos permitem avançar nos efeitos jurídicos próprios:
O reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva;
A inexistência de primazia entre as filiações biológicas e socioafetivas;
A admissão da multiparentalidade;
A parentalidade socioafetiva – para os fins da tese - restringe-se às hipóteses de posse de estado de filiação, excluindo-se a adoção e a filiação oriunda de inseminação artificial heteróloga. Também está excluída a filiação biológica que nunca foi antecedida por filiação socioafetiva.
Assim sendo, em relação aos efeitos da origem genética ou biológica:
a) quando configurada a prévia parentalidade socioafetiva, registrada ou não, a origem genética intitula o filho a investigar a parentalidade biológica com efeitos amplos de parentesco, além do registro civil. Igualmente, pode o genitor biológico reconhecer o filho biológico, com todos os efeitos decorrentes, inclusive o do registro civil concomitante;
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b) permanece o direito ao conhecimento da origem genética, como direito da personalidade, sem efeitos de parentesco, na hipótese de adoção, conforme previsto expressamente no art.48 do ECA, com a redação dada pela Lei n. 12.010/2009: O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como a obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos. Em caso de recusa ao acesso, pode ser ajuizada ação para tal finalidade, que não se confunde com investigação de paternidade ou maternidade. A decisão do STF não implica inconstitucionalidade da norma legal que estabelece a ruptura dos vínculos familiares de origem do adotado, exceto quanto aos impedimentos matrimoniais. Vigora, no direito constitucional brasileiro, a presunção de constitucionalidade das normas legais, até que sejam declaradas inconstitucionais pelo STF;
c) o direito ao conhecimento da origem genética, também sem efeitos de parentesco, é assegurado ao que foi concebido com uso de sêmen de outro homem, que não o marido da mãe e com autorização deste, de acordo com o art. 1.597, V do Código Civil, desde que o dador tenha consentido nessa utilização, sem se valer da garantia de anonimato;
d) não há direito ao conhecimento da origem genética nem ao reconhecimento judicial da parentalidade, se a técnica de reprodução assistida utilizar materiais genéticos de dador anônimo, crioconservados em estabelecimentos especializados para inseminação artificial.
Os direitos e deveres jurídicos do filho com múltiplas parentalidades são iguais em face dos pais socioafetivos e biológicos, particularmente quanto:
a) à autoridade parental ou poder familiar, que é exercida de modo compartilhado, em princípio, pelos pais biológicos e socioafetivos, tal como ocorre com os pais separados. Em caso de conflito entre pais biológicos e socioafetivos, como não há primazia entre eles, o juiz deve se orientar pelo princípio do melhor interesse do filho, para a tomada de decisão.
b) à guarda compartilhada, entre os pais separados ou divorciados, salvo se se ficar demonstrada em decisão judicial motivada que a guarda individual, ante as circunstâncias especiais, é a que mais recomendável por força do melhor interesse do filho. Esse regra é aplicável tanto para situação comum do casal de pais, quanto para a de multiparentalidade (mais de dois pais), até porque não há hierarquia entre eles. A guarda compartilhada é compatível com a preferência da moradia que o filho tem como referência para suas relações sociais e afetivas. No exemplo comum, de filho que sempre viveu com seus pais socioafetivos, a moradia deste é preferencial. O conflito deve ser arbitrado pelo juiz, de modo a que assegure o contato do filho com seus pais socioafetivos e biológicos, e com os parentes de cada linhagem, especialmente os avós.
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c) aos alimentos, que devem ser partilhados pelos pais socioafetivos e biológicos em igualdade de condições, em princípio. Em caso de conflito entre eles, o juiz deve considerar a partilha proporcional do valor de acordo com as possibilidades econômicas de cada um, segundo os critérios da justiça distributiva. Os alimentos devem ser fixados em valor único, para partilha entre os pais, pois o suprimento da necessidade do alimentando não depende da quantidade de devedores alimentantes, além da observância da vedação legal do enriquecimento sem causa (CC, art. 884). Os avós, tanto os biológicos quanto os socioafetivos apenas são obrigados aos alimentos em caráter complementar, distribuídos de acordo com as possibilidades econômicas de cada um. Como o dever de alimentos na linha reta de parentesco é ilimitado, o filho com múltiplos pais e avós pode se obrigar a todos eles. Na hipótese de a mãe estar separada tanto do pai biológico quanto do pai socioafetivo, o filho poderá reclamar alimentos tanto a um quanto a outro, de acordo com as possibilidades econômicas de cada um.
d) à sucessão hereditária legitima, que deve ser assegurada ao filho de pais concomitantes biológicos e socioafetivos, em igualdade de condições. Aberta a sucessão de cada um deles é herdeiro legítimo de quota parte atribuída aos herdeiros de mesma classe (direta ou por representação), imediatamente, em virtude da saisine. A igualdade entre filhos de qualquer origem é princípio cardeal do direito brasileiro, a partir da Constituição, incluindo o direito à sucessão aberta. Os limites dizem respeito às legítimas dos herdeiros necessários de cada sucessão aberta e não ao número de pais autores das heranças. O filho será herdeiro necessário tanto do pai socioafetivo, quanto do pai biológico, em igualdade de direitos em relação aos demais herdeiros necessários de cada um; terá duplo direito à herança, levando-o a situação vantajosa em relação aos respectivos irmãos socioafetivos, de um lado, e irmãos biológicos, do outro, mas essa não é razão impediente da aquisição do direito.
Os efeitos da tese jurídica do STF alcançam os casos já julgados definitivamente, pois há largo entendimento sobre a relativização da coisa julgada nas relações de família e em matéria de estado civil, que operaria segundo a regra rebus sic stantibus.
A tese jurídica do STF, em termos tão gerais, é positiva em seus inegáveis avanços, notadamente quanto ao reconhecimento jurídico constitucional da parentalidade socioafetiva, mas não se pode negar que também é fator de agravamento de litigiosidade, notadamente por motivações patrimoniais, apesar do sopesamento dos efeitos jurídicos próprios, como acima indicado, pois a variedade de circunstâncias é difícil de ser por ela inteiramente atingida.
Notas
2 VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 21, maio 1979, passim.
3 LOBO, Paulo Luiz Neto. Repersonalização das relações familiares. O direito de família na Constituição de 1988. Carlos Alberto Bittar (Coord.). São Paulo: Saraiva, p. 53-82, 1989.
4 FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
5 LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 2009.
6 Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Afeto, ética, família e o novo Código Civil Brasileiro. Rodrigo da Cunha Pereira (Coord.). Belo Horizonte: Del Rey , p. 505-530, 2004.
7 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 231.
8 RTJ n. 53/131.