INTRODUÇÃO
O direito ao meio ambiente logrou alcançar o status jurídico de direito humano e fundamental a partir da década de 1970, notadamente com a Conferência e Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, de 1972, a nível internacional, e com sua incorporação aos ordenamentos jurídicos nacionais, como ocorreu no Brasil com a promulgação da Constituição de 1988. Adotou-se no Brasil, como alhures, um constitucionalismo ecológico de natureza antropocêntrica, ou seja, “protege-se o meio ambiente para a proteção indireta do ser humano”, das presentes e futuras gerações1.
É desse viés o ambientalismo clássico, que assevera a posse de valor intrínseco ou inerente apenas às pessoas humanas. Nas palavras de Daniel Braga Lourenço, “o ambientalismo traduz usualmente uma perspectiva moral antropocentrada – ou homocentrada -, priorizando valores e práticas que promovam os interesses, as necessidades e as demandas humanas em detrimento de outras espécies e da natureza como um todo, que, nesse sentido, possuiriam apenas valor moral instrumental”.2
O ambientalismo antropocêntrico é classificado em antropocentrismo em sentido forte, também denominado clássico, extremado ou radical, e antropocentrismo em sentido fraco ou moderado. Para o primeiro, somente o homem possui valor próprio e não há qualquer limite direto na utilização da natureza, que está à sua disposição para satisfazer suas necessidades e interesses (antropocentrismo teleológico).3 Para o último, embora também ancorado na elevação moral do homem frente aos animais não humanos e à natureza em geral, há alguns limites à utilização do mundo natural, mas sempre em vista de “aspectos relacionados aos projetos humanos”, tais como os econômicos, estéticos ou paisagísticos, científicos e de recreação.4 É dizer, há limites no uso da natureza, mas mesmo essa limitação existe em função do bem estar humano. Para esta posição, o uso excessivo da natureza é criticável, em favor de uma convivência equilibrada com o meio ambiente.5
Considerando a classificação supra, vê-se que a legislação internacional e nacional consolidada na fase que se denominou “holística” é do tipo antropocêntrica em sentido fraco ou moderado. A declaração de Estocolmo, de 1972, aduziu em seu primeiro princípio que “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar (...)”.6 O documento “Nosso Futuro Comum” (Relatório Brundtland), que estabeleceu um conceito de “desenvolvimento sustentável”, apresentado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, faz menção expressa ao fato de que “satisfazer as necessidades humanas é o principal objetivo do desenvolvimento”.7
O art. 225 da Constituição brasileira de 1988 inspirou-se nesse princípio da declaração de Estocolmo: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (...)”. Daniel Braga aviva que esse dispositivo constitucional “é usualmente interpretado no sentido de estabelecer o objetivo de equilíbrio ecológico como forma de promoção da dignidade da pessoa humana”.8 Nesse sentido, Fiorillo, para quem a Constituição Federal de 1988, em virtude da adoção da dignidade da pessoa humana como um dos seus princípios fundamentais (CF, art. 1º, III), adotou visão antropocêntrica, segundo a qual “o direito ao meio ambiente é voltado para a satisfação das necessidades humanas”.9 Essa já foi também a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no MS 22.164, de relatoria do Min. Celso de Mello, julgado em 30.10.1995:
... o direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. (...) os direitos de terceira geração, que materializam direitos de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.10
Não divergiu a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, que afirma em seu princípio 1, in verbis: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”.11 Também antropocêntrica é a definição de “desenvolvimento sustentável” do Relatório Nosso Futuro Comum (o Relatório Brundtland), de 1987 - da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento -, como sendo “aquele que atenda as necessidades humanas presentes sem comprometer o acesso das gerações futuras a esse “patrimônio” ambiental”.12
A par do reconhecimento do direito humano e fundamental ao meio ambiente, centrado na dignidade exclusiva da pessoa humana, de cunho antropocêntrico e conservacionista13, tem surgido e se imposto gradativamente um constitucionalismo ecológico propriamente dito, de caráter ecocêntrico ou biocêntrico14, pela qual os animais e mesmo a natureza passam a ser vistos como titulares de direitos fundamentais.15
Nada obstante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) tenha reconhecido o meio ambiente saudável como um direito humano com conotações tanto individuais como coletivas, na mesma Opinião Consultiva 23, de 15.11.2017, em resposta à consulta da Colômbia, também advertiu sobre a tendência de se reconhecer também a personalidade jurídica da natureza, que seria igualmente titular de direitos:
Esta Corte considera importante ressaltar que o direito ao meio ambiente saudável como direito autônomo, diferentemente de outros direitos, protege os componentes do meio ambiente, tais como bosques, rios, mares e outros, como interesses jurídicos em si mesmos, ainda que na ausência de certeza ou evidência sobre o risco às pessoas individuais. Trata-se de proteger a natureza e o meio ambiente não somente pela conexão com uma utilidade para o ser humano ou pelos efeitos que sua degradação poderia causar em outros direitos das pessoas, como a saúde, a vida ou a integridade pessoal, mas sim pela sua importância para os demais organismos vivos com quem se compartilha o planeta, também merecedores de proteção em si mesmos. Neste sentido, a Corte adverte sobre uma tendência de se reconhecer personalidade jurídica e, por isso, direitos à natureza não somente em sentenças judiciais, como também em ordenamentos constitucionais (§ 62).16
A evolução da legislação ambiental para o alcance de uma fase do tipo ecocêntrica ou biocêntrica contempla perspectivas jurídicas materiais e processuais. Há, por um lado, o reconhecimento do valor intrínseco e da dignidade dos animais não humanos e da natureza (v.g., atribuição de status jurídico de “seres sencientes” a animais não humanos), com a consequente atribuição de titularidade de direitos, ainda que como entes despersonificados, como veremos. Por outro lado, há o estabelecimento de formas e procedimentos de representação adequada dos seus interesses e direitos e o reconhecimento da capacidade processual de ser parte e da legitimidade (de animais não humanos e/ou da natureza) para reivindicação judicial em nome próprio dos seus direitos.17
O presente capítulo se dedica à busca do reconhecimento do valor inerente dos “animais não humanos” e da própria natureza, holisticamente considerada. Os debates teóricos envolvem, respectivamente, os vários tipos de biocentrismo e de ecocentrismo, sobre o que discorreremos incontinenti, além da legislação exsurgente à luz dessas reflexões.
1. A BUSCA DO RECONHECIMENTO DO VALOR INERENTE DOS “ANIMAIS NÃO HUMANOS”: OS BIOCENTRISMOS.
Os tipos de biocentrismo representam um movimento teórico e prático com pretensão de “expansão da comunidade moral para além da humanidade”.18 Admitem que todas as formas de vida carregam em si intrínseca valoração (igualitária ou não), ou que o status moral pertence somente a uma parte dos animais, com base no critério da senciência. Discorreremos, em tópicos apartados, sobre os tipos de biocentrismo.
1.1. BIOCENTRISMO IGUALITÁRIO.
O biocentrismo pode ser do tipo igualitário, segundo o qual todos os organismos vivos possuem um bem próprio objetivamente verificável e de igual valor pelo só fato de serem centros teleológicos de vida, o que, na visão de Paul Taylor, na obra Respect for Nature, publicada em 1989:
significa dizer que seu funcionamento interno, bem como suas atividades externas, são todos orientados a um determinado fim, possuindo a tendência constante de manter a existência do organismo através do tempo e de habilitá-lo exitosamente a executar aquelas operações biológicas por meio das quais reproduz sua espécie e se adapta continuamente a eventos e condições ambientais mutáveis.19
Para a perspectiva biocêntrica igualitária, o valor intrínseco dos organismos vivos independe de eventuais estados mentais relacionados ao prazer e ao sofrimento, sendo o critério baseado na vida o único não arbitrário. Isso quer significar que a senciência, que diz respeito às experiências primárias de prazer e dor, seria tão somente um dos meios possíveis para a apreensão das informações ambientais, não constituindo, em si mesma, um critério (muito menos o único) de considerabilidade moral20. Taylor reconheceu, todavia, que a suscetibilidade para a dor faz do sofrimento um mal intrínseco para os seres sencientes, não um critério que confere aos animais sencientes valor intrínseco superior aos não sencientes.21
Essa perspectiva levou Taylor a concluir que as entidades com valor próprio merecem igual consideração moral, que nenhuma espécie deve ser tida como superior, tampouco tratada como um meio para o atingimento de finalidades exclusivamente humanas, e que os agentes morais possuem um dever prima facie de promover o bem próprio de todos os organismo vivos como um fim em si mesmo.22 Os humanos, para a ética biocêntrica de Taylor, não seriam inerentemente superiores aos demais seres vivos, mas membros da “Comunidade de Vida da Terra”.23
Taylor elaborou um complexo sistema de solução de situações de conflito, mas sua ética não esteve imune a críticas. Desjardins, a propósito, pontua: “É difícil imaginar como deveríamos proceder se partíssemos seriamente do ponto de que todas as formas de vida merecem consideração equivalente”.24 Passmore, na mesma senda, adverte: “o princípio (...) de evitar lesar todas as coisas vivas (...) é excessivamente aberto e exigente. Isso hoje é bastante claro com o conhecimento científico a respeito dos micro-organismos que nos rodeiam a todo instante. Ao respirar, beber, excretar, nós matamos. Matamos pelo mero fato de estarmos vivos”. Analisando a ética tayloriana e as críticas a ela dirigidas, Lourenço concluiu:
A postulação de uma ética biocêntrica que pretenda afirmar igual valor para todos os seres vivos seria de fato tão complexa que poderia levar a impedir-nos de agir no mundo real, na medida em que, a toda fração de segundo, deveríamos estar preocupados em levar em consideração os interesses dos seres vivos envolvidos em nosso agir.25
1.2. BIOCENTRISMO NÃO IGUALITÁRIO.
O biocentrismo pode ser também não igualitário, concepção teórica que percebe todos os seres vivos como dotados de valores próprios, mas com graus distintos a depender da complexidade de cada organismo vivo. O biocentrista Gary Varner afirma a existência de uma hierarquia de valores a partir de três princípios gerais. Dentre eles, o princípio 2 afirma que “a satisfação de projetos relevantes e estruturais é mais importante que a satisfação de desejos não categóricos ou secundários”.
Lourenço, observando o sobredito princípio, concluiu que devem ser favorecidos os “interesses que traduzem projetos de vida complexos” (como os dos seres humanos plenamente capazes), com prioridade sobre os “desejos menos relevantes ou não categóricos” (experimentados por alguns animais não humanos), que, por sua vez, devem prevalecer sobre “interesses meramente biológicos” (próprios dos vegetais e alguns animais não humanos).26 O próprio Varner, entretanto, admitiu que o princípio em comento “pode ser usado para justificar o abate humanitário de animais que claramente não possuem desejos não categóricos”.27
O eticista Robin Attfield, na esteira do biocentrismo não igualitário, entende que, conquanto todos os seres vivos compartilhem capacidades relacionadas às funções de automanutenção e fisiológicas, existiriam entre eles graus de valoração intrínseca variando de acordo com a complexidade e riqueza dessas experiências. Na escala dessa valoração, interesses humanos prevaleceriam quando sopesados com interesses não humanos.28
David Schmidtz, na mesma senda, propôs que as espécies possuem várias propriedades moralmente relevantes (tais como a capacidade de crescer e se reproduzir, a senciência e a racionalidade) e que há distinções mesmo em relação a cada uma delas. Concluiu que essa realidade “faz com que a discussão sobre o fundamento do biocentrismo não seja a questão da igualdade, mas, antes, a admissão de que os bens de cada ser vivo não são, em princípio, comparáveis”. Para ele, o respeito pela natureza não exigiria igual respeito pelos seres vivos.29
Lourenço observou argutamente que o biocentrismo, igualitário ou não, propende a tratar os interesses humanos prioritariamente, “o que nos faz constatar um problema prático no discurso biocêntrico em relação à sua declarada meta de fuga do antropocentrismo”.30 O multicitado autor vaticinou que a primeira dificuldade teórica do biocentrismo “consiste em justificar a escolha pela vida, em sentido meramente biológico, como um critério válido e legítimo para a considerabilidade moral”.31
1.3. BIOCENTRISMO MITIGADO: O CRITÉRIO DA SENCIÊNCIA.
Já registramos que as posições ambientais não antropocêntricas estenderam a considerabilidade moral, até então exclusiva da humanidade, para alcançar a vida como um todo (biocentrismo, igualitário ou não). Historicamente, todavia, essa ampliação se concentrou primeiro em reconhecer os animais, ou parte deles, como sujeitos morais.
As perspectivas animalistas buscaram superar a dicotomia “animal versus pessoa humana” através da expressão “animais não humanos”, objetivando lembrar a comum origem biológica entre humanos e animais e superar o “especismo”32, termo que designa o preconceito fundado no critério de pertencimento a determinada espécie como base para tratamento desigual em situações semelhantes.33
Filósofos como Tom Regan34, sob premissas variadas, vaticinaram que ao menos parte dos animais “seriam titulares de direitos subjetivos fundamentais, entre os quais estariam os direitos à não escravização, à liberdade, à vida, à integridade física e psicológica, entre outros”.35
A inclusão dos animais na comunidade moral, todavia, exige que se perscrute se abrangeria todos ou apenas uma parte deles, havendo “um amplo predomínio da utilização do critério da senciência como norte para atribuição de valor intrínseco (ética sencientocêntrica ou pathocêntrica)”. Parte-se do princípio de que somente os seres sencientes possuiriam interesses e, por isso, seriam moralmente consideráveis.36 Nesse ponto, observa Lourenço, a ética animal “distancia-se de uma visão biocêntrica de tipo global, pois nem todas as formas de vida serão, portanto, titulares de valor intrínseco”, a exemplo dos insetos.37
A senciência é prevalentemente compreendida como a capacidade de certos animais para exprimir estados mentais minimamente conscientes, relacionados às experiências de sentir dor ou prazer. Etologistas, filósofos e cientistas partem da premissa evolucionária “para concluir que algumas espécies de animais possuem vidas mentais que são em tudo similares às nossas”38, capazes de “experimentar sensações de dor e prazer em níveis profundos, sofisticados e variados”39, suficientes para gozarem do reconhecimento de status moral, a exigir uma ampla reforma nos modos como são tratados. Lado outro, as diferenças entre humanos e animais não seriam tais a ponto de justificarem os maus tratos a eles dispensados, v.g., nos entretenimentos, na experimentação científica e nos esportes.
Sobre quais animais seriam considerados sencientes, a Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal, publicada em 7 de julho de 2012, concluiu que “o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e aves, e muitas outras criaturas, incluindo os polvos, também possuem esses substratos neurológicos”.40