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A filosofia do Direito

15/11/2007 às 00:00
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A palavra direito vem do latim directum, que significa aquilo que é reto, que está de acordo com a lei. Nasceu junto com o homem, que é um ser eminentemente social. Tem por finalidade regular as relações humanas, para assegurar as condições de equilíbrio da coexistência dos seres humanos e da vida em sociedade.

Os fenômenos da natureza, sujeitos às leis físicas, são imutáveis, pois fazem parte do mundo do ser, enquanto que o mundo jurídico se caracteriza pela liberdade na escolha da conduta, razão por que é a ciência do dever ser.

Filosofia, segundo a etimologia grega, quer dizer amor ou estudo da sabedoria. Assim, Φιλοσοφία = φιλία + σοφία (philosophia = philía + sophía). Os estudiosos dizem que essa definição é usada em razão da modéstia da palavra (philia tés sophías), uma vez que ela é a própria sabedoria. Assim filosofia é σοφία (sophía) ou sabedoria perfeita, a priori, que é o conhecimento pelas causas e, na verdade, pelas últimas causas, através da luz natural da razão.


Gustav Radbruch e o jusnaturalismo

Amtigona é uma tragédia da Grécia antiga (1), um dos dramas clássicos mais admirados, que tem como heroína Antígona, filha de Édipo e Jocasta. A intriga da história começa com uma alusão à guerra dos Sete contra Tebas, na qual os dois irmãos de Antígona, Etéocles e Polinices, se confrontam em lados opostos. Ambos morrem no campo de batalha, mas aos olhos de Creonte, tio deles, Polinices é considerado traidor de Tebas e, por isso, não lhe são concedidas honras fúnebres.

A heroína de Sófocles (496 a.C.- 406 a.C.) tem a função de estabelecer a justiça dentro da polis e, para isso, infringe as leis estabelecidas pelo rei.

Ela recusa-se a cumprir a ordem de Creonte e, considerando tratar-se de um dever sagrado dar sepultura aos mortos, desrespeita a ordem do soberano e realiza os rituais fúnebres a que o irmão tem direito. Devido a esse ato de piedade, Antígona é condenada à morte pelo rei de Tebas e encarcerada viva no túmulo dos Labdácidas, de quem descende. A ação impiedosa do rei será punida no final da tragédia. Ao tomar conhecimento da morte de Antígona, Hémon, filho de Creonte e noivo de Antígona, suicida-se. Por conseqüência desse ato, Eurídice, mãe de Hémon, decidir morar eternamente no Hades.

A figura de Antígona é de desprendimento do mundo, um mundo corrupto, em decadência. Por isso Antígona sabe que a morte é a atitude mais digna, porque só assim poderá cumprir o seu dever de dar sepultura ao irmão e também porque deixará de viver num mundo impuro, onde entram em conflito a lei dos deuses com as leis da terra.

Sófocles havia criado os seus caracteres inspirado no ideal de conduta dos homens. Humanizou a tragédia e fez dela o modelo imortal da educação. Assim, Antígona eleva-se a uma grandeza humana pelo aniquilamento da sua própria felicidade terrena e da sua existência física e social. O drama de Sófocles gira em torno da imposição política que pesa sobre o espírito individual na interioridade silenciosa do ser.

A mensagem apresentada em Antígona, de Sófocles, permeou toda a tradição ocidental e encontrou em nossos dias um representante de prestígio, que é Gustav Radbruch (1878-1949). Para ele, no seu jusnaturalismo, uma lei só é válida se for justa.

Na Alemanha de Hitler, em 1932, Gustav Radbruch perdeu a sua cátedra. Em seu livro sobre a filosofia do direito (2), diz que, onde a justiça não é sequer perseguida e onde a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada pelas normas do direito positivo, a lei não somente é direito injusto, mas em geral também carece de juridicidade.

Diante dessas afirmações de Gustav Radbruch e do comportamento de Antígona, são aprovadas as intenções elevadas e humanitárias do jusnaturalismo e das leis que os deuses puseram no coração dos homens. Mas o que é justiça? O que é justo e injusto? Esse, o problema de fundo do jusnaturalismo e, ao mesmo tempo, a sua cruz.


O realismo jurídico de Friedrich Carl von Savigny a Roscoe Pound

Para o realismo jurídico, o direito não se baseia em um ideal de justiça nem se funde com os ordenamentos jurídicos constituídos. O direito surge daquela realidade social onde os comportamentos humanos fazem e desfazem as normas da conduta. Direito não é norma justa ou válida, mas sim a regra eficaz que emerge da vida vivida.

Alguns nomes integram essa corrente de pensamento: Friedrich Carl von Savigny (1779-1861), Georg Friedrich Puchta (1798-1846), Hermann Kantorowicz (1877-1940), Eugen Ehrlich (1862-1922) e Philipp von Heck (1858-1943).

Friedrich Carl von Savigny e Georg Friedrich Puchta foram representantes daquele romantismo jurídico, que vê no espírito do povo e no direito consuetudinário as fontes primárias do direito.

Em seu trabalho sobre a luta pela ciência do direito (3), Hermann Kantorowicz sustenta que, ao lado do direito estatal, existe com igual valor o direito livre, isto é, o direito produzido pela opinião pública dos membros da sociedade, pelas sentenças dos juízes e pela ciência jurídica.

Para Eugen Ehrlich, na sua fundamentação da sociologia do direito (4), o centro da gravidade do desenvolvimento do direito está na própria sociedade e constitui erro aquilo em que muitos acreditam, ou seja, que todo o direito é produzido pelo Estado com suas leis.

Representante principal da escola de Tübingen, Philip von Heck quis contrapor à jurisprudência dos conceitos a jurisprudência dos interesses (5), onde as leis são consideradas como as resultantes dos interesses de caráter material, nacional, religioso e ético, que se enfrentam em toda a comunidade jurídica e lutam por ser reconhecidos.

Recentemente, quem mais defendeu essa corrente de pensamento foi Oliver Wendell Holmes, Jr (1841-1935), jurista americano e juiz da Corte Suprema dos Estados Unidos (6), que rejeitou o tradicionalismo jurídico dos tribunais e introduziu uma interpretação evolutiva do direito, como se pode ver em algumas de suas célebres frases (7).

Ao lado de Oliver Wendell Holmes, Jr, não se pode esquecer Roscoe Pound (1870-1964), talvez o maior filósofo americano do direito. Nas suas (8) interpretações de história jurídica, sustentou que se deve pensar o direito não como um organismo que cresce por causa e por meio de algumas propriedades a ele inerentes, mas sim como um edifício construído pelos homens, a fim de satisfazer aspirações humanas.

Outro realista jurídico americano foi Jerome New Frank (1889-1957). Em suas obras (9), considerava que o desejo da certeza do direito equivale ao desejo infantil do pai, ou seja, os que procuram a certeza do direito tentam satisfazer os desejos infantis, encontrando precisamente no direito um sucedâneo do pai.


Hans Kelsen: ser, dever ser e a ciência dos valores

O jusnaturalismo reduz a validade da justiça pois, no curso da história, é difícil encontrar o seu critério absoluto. Por outro lado, vemos leis juridicamente válidas, eficazes e aplicadas, mas que são consideradas injustas pela consciência de grupos e indivíduos. O realismo limita a validade à eficácia, mas nem sempre ela é acompanhada da validade. A essas duas correntes contrapõe-se o positivismo jurídico, que tenta manter distintas a justiça, a validade e a eficácia do direito.

Hans Kelsen (1881-1973) orienta-se para o estudo científico do direito positivo. Em outras palavras, a justiça das normas reduz-se ao fato de que elas são fixadas por quem tem a força para fazê-las respeitar. Assim, o príncipe é criador de justiça.

Para ele o que constitui o direito é a sua validade jurídica, que se qualifica por sua coatividade. Justiça é problema da ética, mas o problema jurídico é o problema da validade das normas.

Autor de muitas obras (10), Hans Kelsen foi professor na Universidade de Viena, de 1919 a 1929, onde esteve em contato com os pensadores neopositivistas. Juntamente com eles, distingue entre juízo de fato e juízos de valor, assegurando que a ciência não está em condições de pronunciar juízos de valor nem autorizada para isso.

Em seu livro, onde aborda a doutrina pura do direito (11), pode-se ler que ela procura responder à pergunta "o que é e como é o direito", mas não "como deve ser ou como se deve produzir o direito". O aplicador do direito propõe-se e procura resolver problemas relativos à natureza e à função do direito.


Sanção, norma jurídica e norma fundamental

Uma norma jurídica atribui uma conseqüência a uma condição. A conseqüência é a sanção e a condição é o ilícito. Só que o ilícito não é tal em si mesmo nem o é pelo fato de ser uma ação proibida por uma ordem. A ação é ilícita, quando a ela é atribuída uma sanção.

Assim, toda a norma contém dois aspectos. Dado indivíduo deve observar determinada conduta (o dever ser da norma). Outra pessoa deve exercer uma sanção, no caso de ser violada a primeira norma. Ela (não se deve roubar) só será válida se a segunda (será punido) relacionar uma sanção.

A obra de Hans Kelsen foi de grande valia para entender o que é e como funciona o direito. O positivismo jurídico anda de braços dados com o relativismo: não se diz o que é justo e o que é injusto; deixa-se livre a nossa consciência. Em sua última aula em Berkeley, em 17/05/1952, Hans Kelsen confessou abertamente não ter respondido à pergunta crucial: o que é a justiça?

Disse ele: "A minha única desculpa é que, a esse respeito, estou em ótima companhia: teria sido muita presunção fazer crer (...) que eu teria podido alcançar êxito onde falharam os pensadores mais ilustres. Conseqüentemente, não sei e não posso dizer o que é a justiça, aquela justiça absoluta que a humanidade procura. Devo me contentar com uma justiça relativa. Assim, posso dizer apenas o que é a justiça para mim. Como a ciência é a minha profissão e, portanto, a coisa mais importante de minha vida, a justiça é para mim aquele ordenamento social sob cuja proteção pode prosperar a busca da verdade. A ‘minha’ justiça, portanto, é a justiça da liberdade, a justiça da democracia, em suma, a justiça da tolerância".

Na Itália, foram escritos interessantes trabalhos nas pegadas de Hans Kelsen, da autoria de Norberto Bobbio (1909-2004) e de Uberto Scarpelli (1924-1993).


Reflexão final

Não será este o momento de voltar ao ideal de Antígona? A confissão de Hans Kelsen, na sua última aula, vai ser ainda objeto de muitos estudos por parte dos juristas e dos sociólogos, isto é, ainda vai dar muito pano para mangas.

Uma coisa porém é certa. Da lei derivam os deveres e os direitos. Se o dever (officium) exprime a obrigação ou necessidade moral de fazer ou de omitir algum coisa, o direito implica a idéia de direção, compreendida como um mandamento ou ordem de razão (jus, de jubeo, mandar).

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Talvez seja o caso de pensar que o direito seja aquilo que é objeto próprio da justiça, como queria Antígona. E é a justiça quem obriga a dar a cada um o que lhe é devido, ou seja, aquilo a que ele tem direito. Nos dizeres de Tomás de Aquino (1221-1274), justiça é a virtude que consiste na firme e constante vontade de dar a cada um o que é seu (justitia est habitus secundum quem aliquis constanti et perpetua voluntate ius suum unicuique tribuit – S. th. II-II 58, 1).

Não seria talvez esse conceito o de Kelsen: a justiça da liberdade, a justiça da democracia, em suma, a justiça da tolerância?


N O T A S

1. Sophocles An Interpretation, Winnington-Ingram, R. P Cambrigde University Press, 1980, pp.91-149.

2.Rechtsphilosophie, Studienausgabe, herausgegeben von Ralf Dreier und Stanley L. Paulson, C. F. Müller, 2. Aufl., Heidelberg 2003 .

3.Der Kampf um die Rechtswissenschaft –Baden-Baden; Nomos-Vderl.Ges., 2002, 1 und 2. Tsd. Nachdr. Ider Ausg. Heidelberg.Winter,1906, 1 Aufl.

4.Fundamental Principles of the Sociology of Law (1936). For convenience of access to those texts of Ehrlich which are most likely to be available in university law libraries today, see quote from the English translation of the Grundlegung der Soziologie des Rechts (1913) in the Harvard Series of Modern Sociology (Ehrlich, E, Fundamental Principles of the Sociology of Law (1936) ) and translate from the reprint version of Die juristische Logik (1966).

5.Heck, Philipp von (1858-1943) 1891 o. Prof. der Rechte in Greifswald, 1892 in Halle/Saale, 1901-1928 in Tübingen (deutsches, bürgerliches und Handelsrecht), 1911/12 Rektor. Jurist, Professor in Halle, Tübingen 2 Briefe an W.; Halle 20.8.1901, Tübingen 12.11.1911.

6.Holmes, Oliver Wendell (1995). The Collected Works of Justice Holmes (S. Novick, ed.). Chicago: University of Chicago Press. ISBN 0-226-34966-7.

7.Holmes, Oliver Wendell quotations: Lawyers spend a great deal of their time shoveling smoke. To obtain a man´´s opinion of you, make him mad. The greatest thing in this world is not so much where we are, but in what direction we are moving.

8.Roscoe Pound, Interpretations of Legal History (1923).Hardcover, Peter Smith Pub Inc, ISBN 0844613606 (0-8446-1360-6) Hardcover, Wm Gaunt & Sons, ISBN 0912004509 (0-912004-50-9).

9.Frank published many influential books, including Law and the Modern Mind. Law and the Modern Mind. Pp. xvii, 362. New York: Brentano´´s, Inc., 1930. He argues for ‘legal realism’ and emphasizes the psychological forces at work in legal matters. His other major work, Courts on Trial (1949), Princeton: Princeton University Press, stressed the uncertainties and fallibility of the judicial process.

10.Hans Kelsen, Main Problems in the Theory of Public Law (Hauptprobleme der Staatsrechtslehre), 1911, Allgemeine Staatslehre (1925) , Vom Wesen und Wert der Demokratie (1929), Pure Theory of Law (Reine Rechtslehre), (1934), General theory of Law and State (1945), General Political Theory (Allgemeine politische Theorie), Peace Through Law (Chapel Hill, NC, 1944).

11.Pure Theory of Law (Reine Rechtslehre 1934) - Berkeley, Calif.: University of California Press, 1967),

12.Aquino, Tomás de, Summa theologiae. In:__________Opera omnia. Disponível em:http:/www.httphhttp:tp://www.corpusthomisticum.org/ipoera.

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Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. A filosofia do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1597, 15 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10638. Acesso em: 29 mar. 2024.

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