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O Projeto de Lei Complementar nº 75/03 e a afronta ao sistema jurídico

19/11/2007 às 00:00
Leia nesta página:

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar nº 75 de 2003, apresentado pelo Deputado Federal Eduardo Cunha, o qual altera o artigo 151 do Código Tributário Nacional, que dispõe acerca das causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário.

Hoje, no rol de medidas suspensivas da exigibilidade do crédito encontram-se: a moratória; o depósito do seu montante integral; as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo; a concessão de medida liminar em mandado de segurança; a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial; e o parcelamento.

O Projeto de Lei Complementar em comento modifica a redação dada aos incisos IV e V do artigo 151 do CTN, que tratam, respectivamente, da concessão de medida liminar em mandado de segurança e da concessão de medida liminar ou de tutela antecipada em outras espécies de ação judicial.

Segundo o Projeto, as tutelas emergenciais, que asseguram ao contribuinte a suspensão da exigibilidade do seu crédito tributário, passariam a ser condicionadas pela "exigência obrigatória do depósito em montante integral até o trânsito em julgado da decisão do mérito", nos exatos termos da proposta legislativa.

Conforme consta da sua exposição de motivos, o referido Projeto tem o escopo de obstar a concessão indiscriminada e escusa de liminares, a qual denomina de indústria de liminares, senão vejamos:

"JUSTIFICAÇÃO. Consagrada pelo direito consuetudinário nacional, a tutela antecipada de tributos ou contribuições municipais, estaduais ou federais vem, ao longo do tempo mostrando-se injusta e claramente lesiva aos interesses tanto do contribuinte quanto do Poder Executivo. É sabido que existe uma indústria de liminares no País, inclusive objetos de uma investigação por Comissão Parlamentar de Inquérito sobre combustíveis, onde Empresas obtém tutelas antecipadas, comercializando produtos ficam com dinheiro dos tributos e contribuintes, e ao fim essas empresas somem sem nenhuma possibilidade do Poder Público reaver esse dinheiro. O estabelecimento do depósito judicial para concessão da tutela antecipada ou liminar impedirá a sangria aos cofres públicos."

Como se verifica, o Estado busca sanar, assim, um desvio dele mesmo, "protegendo-se de si próprio" mediante a implantação de medidas restritivas de direito, mais próprias de outros tempos.

Desta forma, com o pretexto, ainda que louvável, de pôr cobro à concessão indiscriminada e escusa de liminares e assim tentar impedir, em parte, a corrupção que hoje, infelizmente, eiva parte do Judiciário, o Projeto em questão se esquece que, em contrapartida, acaba por fulminar direitos e garantias fundamentais do cidadão/contribuinte.

As causas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário estão previstas no artigo 151 do Código Tributário Nacional.

Até janeiro de 2001, no que pertine às tutelas liminares, o direito positivo fazia menção apenas à liminar em processo de mandado de segurança como causa suspensiva da exigibilidade do crédito. Com o advento da Lei Complementar nº 104/2001, restou confirmada a tendência da jurisprudência que, até então, já vinha sufragando, com apoio na doutrina dominante, o mesmo efeito suspensivo para os casos de tutelas emergenciais em outras espécies de ações judiciais. Foi incluído, assim, no rol do artigo 151 a "concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial" (Paulo de Barros Carvalho, in. Curso de Direito Tributário, 15ª ed., Ed. Saraiva: São Paulo, 2003, p. 445).

O CTN, consoante já vinha sendo admitido pelos Tribunais, passou a contemplar a possibilidade de suspensão da exigibilidade do crédito por qualquer tipo de tutela de urgência concedida pelo Poder Judiciário, em qualquer espécie de ação.

Deveras, obviamente tal previsão era até prescindível, uma vez que tal entendimento já vinha sendo adotado pela jurisprudência e, mais importante do que isso, independentemente de previsão no CTN, o Judiciário possui independência para, em nome do poder geral de cautela, conceder as medidas que entender devidas à garantia dos direitos do cidadão.

Nesse ponto, merecem transcrição os ensinamentos de Nelson Nery Jr. [01]:

"A CF 5º, XXXV prevê que nenhuma ameaça ou lesão de direito pode ser subtraída da apreciação judicial. A garantia constitucional do direito de ação significa que todos têm direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. Por tutela adequada deve-se entender a tutela que confere efetividade ao pedido, sendo causa eficiente para evitar-se a lesão (ameaça) ou causa eficiente para reparar-se a lesão (violação). ‘Pelo princípio constitucional do direito de ação, todos têm direito de obter do Poder Judiciáio a tutela jurisdicional adequada. Não é suficiente o direito à tutela jurisdicional. É preciso que essa tutela seja a adequada, sem o que estaria vazio de sentido o princípio. Quando a tutela adequada para o jurisdicionado for medida urgente, o juiz, preenchidos os requisitos legais, tem de concedê-la, independentemente de haver lei autorizando, ou, ainda, que haja lei proibindo a tutela urgente. Isto ocorre casuisticamente no direito brasileiro, com a edição de medidas provisórias ou mesmo de leis que restringem ou proíbem a concessão de liminares, o mais das vezes contra o poder público. Essas normas têm de ser interpretadas conforme a Constituição. Se forem instrumentos impedientes de o jurisdicionado obter a tutela jurisdicional adequada, estarão em desconformidade com a Constituição e o juiz deverá ignora-las, concedendo a liminar, independentemente de a norma legal proibir essa concessão’ (Nery, Princípios, n. 18,, pp. 132/133)."

Retornando à questão principal, o fato é que depósito e medida liminar, quer em mandado de segurança, quer em outras ações judiciais, sempre foram causas autônomas de suspensão da exigibilidade do crédito tributário.

Destarte, é um contra-senso condicionar-se a concessão de liminar para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário ao depósito integral do montante discutido, uma vez que a caracterização ou ocorrência de uma retira a ratio essendi da outra.

A doutrina é severa ao criticar o posicionamento de exigir-se o depósito como condição para a concessão de medidas liminares [02].

Nas palavras de Alberto Xavier [03]:

"Exigir-se o depósito como condição de concessão liminar seria transformar em cumulativos fundamentos de suspensão da exigibilidade que são claramente alternativos e, do mesmo passo, privar a medida liminar de qualquer efeito útil, pois o depósito a que se auto condiciona, já teria por si só pleno efeito suspensivo. Liminar em mandado de segurança e depósito são de convívio lógico impossível, pois ou é feito o depósito e a liminar é inútil ou ocorrem os pressupostos da liminar e o depósito perde a razão de ser".

Tal posição é inclusive adotada pelo Eg. Superior Tribunal de Justiça, conforme se depreende da ementa a seguir, in verbis:

PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA - CONCESSÃO DE LIMINAR CONDICIONADA A DEPÓSITO PARA FINS DE SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO.

1. Existentes os pressupostos para concessão de liminar em mandado de segurança, deve a mesma ser concedida para fins de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, nos termos do art. 151, IV do CTN, independentemente de depósito no montante integral. Precedentes desta Corte.

2. Recurso especial provido.

(REsp 222838 / SP, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 18.02.2002)

É precisamente contra esta enxurrada de princípios constitucionais, dispositivos legais e entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que nada o Projeto de Lei Complementar nº 75 de 2003, objeto dos presentes comentários.

Tal Projeto visa, nada mais nada menos, impedir que o cidadão/contribuinte exerça seus direitos de ação e acesso à justiça, constitucionalmente assegurados, ferindo institutos básicos do Direito Processual Civil e, por via oblíqua, também restringindo o trabalho e independência do Judiciário, afrontando a separação dos poderes, cláusula pétrea do ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que limita o exercício do poder geral de cautela inerente ao órgão judicante, condicionando a prestação jurisdicional, que se cumpre nestes casos mediante a concessão de tutelas de emergência para a suspensão da exigibilidade do crédito tributário desde que presentes os requisitos, à necessidade de depósito do montante integral do crédito.

Como se todos esses argumentos ainda não fossem suficientes, a restrição que se pretende criar com o Projeto de Lei Complementar em discussão atenta também contra o postulado básico da isonomia, já tendo se atentado para tal circunstância o saudoso Geraldo Ataliba [04]:

"A Professora Anna Maria Pimentel, cuidando das liminares, demonstrou que obter liminar é um direito público subjetivo da pessoa que se encontre nas condições constitucionalmente previstas e legalmente qualificadas. Acrescento o seguinte comentário: exigir depósito quando o depósito é uma faculdade da parte, exclusivamente de interesse da parte, do impetrante, daquele que pede a cautelar, viola, entre outros princípios constitucionais graves o princípio da igualdade, porque só as empresas ou pessoas muito abonadas é que podem tranquilamente fazer depósitos ou oferecer fiança bancária, e quem sendo pobre ou estando em dificuldades não pode oferecer o depósito, não terá direito a ver a proteção constitucional estendida ao seu direito" (g.n.)

Entretanto, queremos acreditar que tal Projeto não deva ser aprovado pelo Congresso Nacional. Ao menos é o que nos leva a crer experiência dessa natureza já vivenciada pelo legislativo.

Ocorre que o Projeto de Lei Complementar nº 77/99, que redundou na Lei Complementar nº 104/01 que alterou o Código Tributário Nacional, em sua proposta original, continha uma disposição que se assemelhava, mutatis mutandis, a esta que se pretende agora ver aprovada com o Projeto de Lei Complementar nº 75/03.

Aquele projeto pretendia acrescentar ao artigo 151 do CTN um parágrafo que estabelecia que: (i) as liminares concedidas para suspensão da exigibilidade de tributos cuja exigência tivesse por base lançamento de ofício perderiam sua eficácia decorrido o prazo de um ano da concessão, exceto se efetuado o depósito integral do crédito exigido e (ii) as liminares concedidas para suspensão da exigibilidade de tributos cuja exigência não tivesse por base lançamento de ofício (v.g. em mandados de segurança preventivos), somente teriam a capacidade de suspender a exigibilidade do tributo se acompanhadas do depósito do montante discutido na ação.

Naquela época, houve por bem a Câmara dos Deputados, por meio da Emenda Supressiva nº 12, suprimir da proposta o referido trecho, sob a seguinte justificação:

"O referido parágrafo 2º estabelece que as liminares concedidas em ação judicial terão um prazo de vigência de um ano contado data da concessão, após o que terão sua eficácia cassada. A medida só não se aplicaria nos casos em que tenha sido efetuado depósito integral do crédito exigido. Dessa forma, a pretexto de reduzir o número de liminares que são concedidas pela justiça, o governo simplesmente cria um mecanismo para extingui-las. Portanto, não se procura equacionar o problema do acúmulo de processos administrativos fiscais e de pendências judiciais, a partir de medidas voltadas para a adequação e melhoria do seu corpo técnico e jurídico. O governo busca solução mais fácil, a solução da preguiça, que nada mais é do que uma agressão aos direitos do contribuinte. Este terá que contar com a sorte para que o mérito do recurso seja apreciado no prazo máximo de um ano. Do contrário, terá que arcar com o recolhimento do crédito. A medida atenta contra direitos do contribuinte, de forma que recomendamos a sua supressão".

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Conforme bem elucida a justificativa supracitada, o Estado não procura equacionar os problemas por ele enfrentados. Cria, de outro modo, mecanismos teratológicos, no mais das vezes em detrimento do contribuinte, para atingir seus objetivos.

No caso do Projeto de Lei Complementar nº 75/03, ora sob análise, o fim colimado é a correção de um desvio de um órgão do próprio Estado, qual seja, o Judiciário (ou melhor, parte dele), fim perseguido, todavia, com meios que atentam contra o Estado Democrático de Direito, contra inúmeros princípios e dispositivos constitucionais, bem como institutos clássicos do processo civil.

É aquela velha história de uma vaca estar com carrapato e, ao invés de se procurar extrair a peste, matar a própria vaca.

Em síntese, diante de todos esses fatores, por atentar frontalmente contra o sistema jurídico, esperamos que o Projeto de Lei Complementar nº 75/03 não seja aprovado, mas, se assim o for, caberá ao Poder Judiciário proclamar tal inadequação.


Notas

01In. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante, 9ª ed., Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2006, p. 942.

02"Enfocando a questão sob o aspecto da exigibilidade do crédito tributário, Américo Lacombe destaca a contradição existente entre o procedimento usual de imposição do depósito, e a dicção do art. 151, IV do Código Tributário Nacional: "Se o depósito integral já suspende a exigibilidade do crédito, o crédito já não é mais exigido desde o momento em que se tenha o depósito, e se a medida liminar também suspende essa exigibilidade, não tem o menor cabimento o condicionamento que fazem alguns juízes, de depósito para garantia da liminar. Ou a liminar é dada sem a menor garantia, porque o juiz está convencido de que ocorrem os pressupostos necessários para dar a liminar, quais sejam, o fumus boni iuris e o periculum in mora, ou então simplesmente não dá". (...) Como se observa, tanto o depósito do tributo devido como a liminar em mandado de segurança são, individualmente, causas de suspensão de exigibilidade do tributo. A toda evidência, se o contribuinte deposita o quantum debeatur, não mais precisa da concessão de liminar, pois a exigibilidade do crédito tributário estará obrigatoriamente suspensa. Caso se leve este raciocínio às suas conseqüências extremas, condicionar-se a liminar a prévio depósito, seria como condicionar-se a liminar à comprovação de que o impetrante protocolou correta e tempestivamente, recurso administrativo com efeito suspensivo. Uma hipótese exclui necessariamente a outra. Ora, quem ingressou junto à repartição administrativa com recurso dotado de efeito suspensivo não precisa da liminar em mandado de segurança, pois seu débito já está com a exigibilidade suspensa (art. 151, III, do CTN). Assim também, quem deposita o montante integral de seu débito não mais precisa da liminar em mandado de segurança, pois já tem a suspensão de exigibilidade como implicação de lei (art. 151, II, do CTN)" (James Marins in. Direito Processual Tributário Brasileiro Administrativo e Judicial, 4ª ed., Ed. Dialética: São Paulo, 2005, p. 503/504).

03Apud Marcos Rogério Lyrio Pimenta, Mandado de Segurança e efeito das liminares in. Curso de Especialização em Direito Tributário, Editora Forense: Rio de Janeiro, 2005, p. 643.

04In. Concessão de Liminar – Depósito, Revista de Direito Tributário nº 58, p. 118

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Sobre o autor
Fernando Awensztern Pavlovsky

Juiz de Direito no Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAVLOVSKY, Fernando Awensztern. Comentários de lege ferenda.: O Projeto de Lei Complementar nº 75/03 e a afronta ao sistema jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1601, 19 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10664. Acesso em: 22 dez. 2024.

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