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A exclusão por trás do riso.

Uma análise sobre o direito ao trabalho da pessoa com deficiência no Brasil e o freak show

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30/10/2023 às 19:43
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Trabalho na Construção da Dignidade Humana

A trajetória histórica da pessoa com deficiência é extremamente marcada pela exclusão e discriminação, a elas eram comumente negados direitos civis básicos, direito a liberdade, direito a um trabalho digno, e até mesmo o direito a vida. O “Circo dos Horrores”, que ocorria em espetáculos circenses e feiras de exibição, apesar de ser uma forma discriminatória de trabalho era uma alternativa para a pessoa com deficiência de custear sua existência sem ter que pedir esmolas.

Ao olharmos com a visão social de hoje há uma repulsa desse tipo de exposição, enxergamos como uma forma degradante e discriminatória de trabalho, porém, para as pessoas com deficiência da época era uma oportunidade de trabalho e de inserção social. O filme Freaks exemplifica esse tipo de situação, uma vez que fora filmado com artistas de circo que trabalhavam na época da mesma maneira que o filme retrata, fazendo shows para exibir suas deficiências.

Koo Koo, A Garota Pássaro, portadora da Síndrome de Seckel, após ser afetada pela síndrome foi levada a um asilo sendo liberada para um diretor de circo para representar em seu espetáculo. As irmãs siamesas Daisy Hilton e Violet Hilton que representaram no filme também na época apresentavam-se em diversas turnês pelos Estados Unidos, fazendo shows de canto de dança. Johnny Eck, o homem que não possuía as pernas, se apresentava em diversos espetáculos, chegando a tocar piano, pintar quadros e até conduzir locomotivas (L.M.A, 2010).

Nota-se que diferente da visão que possuímos hoje, as pessoas com deficiência que participavam do circo se viam como artistas, elas possuíam a autonomia e a independência de desempenhar uma profissão, o que na época já significava muito para esse grupo. A partir daí identificamos no filme que ainda que o trabalho no circo fosse discriminatório ele proporcionava à pessoa com deficiência um meio de subsistência autônomo, sem a dependência da piedade alheia.

Exercer um trabalho significa possuir um papel dentro da sociedade, e acaba por abrandar a realidade de desigualdade e discriminação desse grupo que ao logo da história esteve condenado a exclusão. Utilizar o trabalho como meio de inserção social da pessoa com deficiência foi uma prática aprimorada com o tempo e cada vez mais debatida no âmbito nacional e internacional por essa ser um requisito para a preservação e construção da dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, faz-se necessário expor e esclarecer o conceito de dignidade da pessoa humana, por ser de extrema relevância para o tema, como segue:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais (SARLET, 2006, p. 62).

O direito de possuir e exercer um trabalho é verdadeiramente importante para que o ser humano construa meios dignos de vida dentro do convívio social. A nossa própria Constituição Federal de 1988 prevê, logo em seu primeiro artigo, um Estado Democrático de Direito que possui como fundamento a dignidade humana e os valores sociais de trabalho.

(...) os Direitos Humanos advém de uma série de desrespeitos cometidos pelo próprio homem, seja ele representado um Estado ou por suas próprias forças, e de uma luta constante para a garantia destes direitos inerentes ao ser humano. Todavia, o que se questiona até os dias de hoje é como fazer com que estas proteções sejam realmente seguidas, tendo em vista que por mais protegido que seja o homem, ele ainda é o grande alvo das violações. Por isso, abordaremos a seguir a questão da eficácia destes direitos e o que tem sido feito para que o homem esteja mais protegido” (CARDOSO, 2012, p.35)

Além disso, é de rigor reconhecer que o direito ao trabalho não se vincula apenas à dignidade da pessoa humana, mas também ao direito de liberdade e igualdade. Quanto a isso a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 prevê em seu artigo XXIII, 1:

Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

Essa Declaração teve sua aprovação após a 2ª Guerra Mundial, um momento em que a comunidade internacional passou a olhar com maior preocupação e zelo para as minorias, como o grupo de pessoas com deficiência. Tal documento busca a igualdade entre os homens consagrando princípios fundamentais da ordem jurídica internacional (LARAIA, 2009).

Ainda nesse sentido no cenário internacional, gradativamente foram promulgadas declarações que enfocassem especificamente o portador de deficiência, a exemplo da Declaração de Direitos do Deficiente Mental promulgada em 1971 e a Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência promulgada em 1975.

A Declaração de Direitos do Deficiente Mental deu abertura ao processo de reforma psiquiátrica no âmbito mundial, a medida que buscou proteger o deficiente mental de exploração, abusos e tratamentos degradantes, além de ter seu texto contrario à politica manicomial vivenciada mundialmente.

A Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência além de definir o termo “pessoas deficientes”11 prevê a garantia da igualdade e o respeito à dignidade dessas pessoas, conforme segue seu artigo terceiro:

3 - As pessoas deficientes têm o direito inerente de respeito por sua dignidade humana. As pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quanto possível.

O respeito à dignidade da pessoa com deficiência trata-se de um elemento muito amplo que, com já dito abrange também o direito ao trabalho. Possuir a oportunidade de exercer uma atividade não discriminatória que contemple as habilidades próprias do trabalhador propicia ao portador de deficiência autonomia financeira e autorrealização.

Este talvez seja o ponto principal, o resgate do papel do trabalho: seu potencial de elemento significativo, seja na auto realização, seja na configuração da autoestima, seja na independência econômica, na autonomia, no prazer presente no processo e no produto, na sensação de aceitação e “pertencimento” (AMARAL, 1992).

Verifica-se que a relevância do direito ao trabalho e emprego para as pessoas com deficiência vai além da questão financeira e da mera inclusão no sistema de consumo ela tem papel fundamental no respeito à dignidade da pessoa.

Tal questão também foi tema da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2006, ratificada no Congresso Nacional em 9 de julho de 2008 através do Decreto Legislativo nº 186 de 2008, que em seu artigo 27 trata especificamente dessa matéria. Além da Organização das Nações Unidas a Organização Mundial do Trabalho também passa gradativamente a se voltar ao portador de deficiência objetivando tutelar seus direitos trabalhistas. Desta volta temos de relevância para o tema as Convenções de nº 111, nº 117, nº159 todas da OIT.

A Convenção de nº 111 da OIT e a Convenção de nº 117 da OIT, assim como as declarações da ONU também fala do tratamento igualitário com enfoque na igualdade de oportunidade e de tratamento em matéria de emprego ou profissão objetivando a proteção contra qualquer tipo de discriminação.

A Convenção de nº 159 da OIT tem matéria específica sobre a Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas com Deficiência. Essa Convenção foi ratificada no Brasil em 18 de maio de 1990 e promulgada através do Decreto n. 129, de 22 de maio de 1991 e prevê as politicas de reabilitação profissional e emprego para as pessoas com deficiência10 de modo a objetivar a promoção de oportunidades de emprego para as pessoas deficientes no mercado regular de trabalho.

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O Brasil, através de sua Constituição Federal de 1988, absorve os preceitos fundamentais previstos na ordem jurídica internacional de modo a buscar a igualdade e a inclusão social das pessoas com deficiência.

Quanto à habilitação e reabilitação13 para o trabalho e emprego tratada na A Convenção de nº 159 da OIT, o artigo 203 da nossa Lei Maior cuida especificamente do tema com o objetivo expresso de promover a integridade da pessoa com deficiência à vida comunitária.

Assim, mais uma vez o próprio ordenamento jurídico expõe a necessidade da garantia ao trabalho para a promoção da igualdade social e para o respeito da dignidade da pessoa com deficiência. Dessa forma vai se construindo o processo gradual de inclusão da pessoa com deficiência no ambiente laboral, por vezes através de políticas de incentivo à contratação, outras vezes impondo percentuais de profissionais categorizados como “pessoas com necessidades especiais” – PNE. Ao criar situações que permitam fazer com que essa figura “extraordinária” se torne comum, ordinária, o direito laboral garantiria que exercessem suas atividades com naturalidade.

Nessa perspectiva, assim como o atual ordenamento jurídico interno e internacional já pacificam, o filme Freaks já em 1930 demonstrava a importância do trabalho para a dignidade da pessoa com deficiência, e para a sua inclusão social. O Circo dos Horrores ainda que fosse uma atividade degradante, se mostrava uma oportunidade de trabalho, e isso por si só já muito significava para a pessoa com deficiência12.

Promover o direito ao trabalho e emprego dignos às pessoas com deficiência demonstra- se uma alternativa para discriminação e a exclusão que ainda hoje esse grupo encontra-se sujeito.


Obstáculos à Inclusão Trabalhista da Pessoa com Deficiência

Resta claro que o trabalho possui essencial lugar na inclusão social e no respeito a dignidade da pessoa com deficiência. Sobre isso, conforme anteriormente demonstrado o próprio ordenamento jurídico internacional e interno já busca regulamentar formas de propiciar melhores modos de habilitação e reabilitação da pessoa com deficiência para o trabalho.

Ocorre que entre a regulamentação e a efetivação da norma há um grande distanciamento e isso nos traz a realidade brasileira atual, onde há diversos obstáculos na realidade fática a serem ultrapassados para a efetiva inclusão trabalhista da pessoa com deficiência.

Conforme o último Censo do IBGE de 2010 23,9% da população brasileira possui algum tipo de deficiência, entre visual, auditiva, motora e mental ou intelectual, o que representa um número total de mais de 45 milhões de pessoas. Dentro desse expressivo número 24, 9% possuem entre 15 e 64 anos e desses a maioria encontram-se aptos a exercer algum tipo de trabalho (incluindo empregado, estagiário e aprendiz).

Porém, dizer que a maioria das pessoas com deficiência está apta a exercer algum tipo de trabalho não significa dizer que o mercado de trabalho esteja apto a recebê-las, e é nessa via que se encontram os empecilhos para a inclusão.

O mercado de trabalho, devido aos fatores históricos já expostos, é moldado à um grupo “padrão” de pessoas. Desta volta, as vagas fornecidas no mercado de trabalho são preparadas para receber pessoas com perfis que se encaixem a elas.

Na nossa atual realidade, é o empregado quem deve se moldar aos padrões postos pela empresa e não o contrário. Esse fator dificulta a inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho à medida que ela, ainda que qualificada e habilitada para o trabalho, não se inclui no “padrão normativo” imposto pela empresa.

Nesse sentido, para que ocorra a efetiva inserção da pessoa com deficiente no mercado de trabalho o Brasil adota o sistema de cotas em sua legislação, de acordo com a Lei nº 8.213/91 artigo 93. Conforme essa previsão legal, a empresa que contiver em seu quadro 100 (cem) ou mais funcionários estará obrigada a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com funcionários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência habilitadas.

Há ainda a punição penal de 2(dois) a 5(cinco) anos de reclusão e multa para quem negar ou obstar emprego, trabalho ou promoção à pessoa em razão de sua deficiência, imposta pelo artigo 8º, III, da Lei nº 7.853/89 (redação dada pela Lei nº 13.146/2015).

Desse modo, a legislação em seu papel impositivo alcançou avanços quanto à matéria de inclusão trabalhista da pessoa com deficiência e isso se faz cada vez mais crescente, em contrapartida na realidade fática as mudanças sociais relativas às pessoas com deficiência caminha em vagarosos passos.

A obrigação legalmente imposta não consegue suprimir a dificuldade que o mercado de trabalho possui em absorver essas pessoas frente a dificuldades fáticas. Isso se dá por diversos fatores, dentre eles a competitividade exacerbada no mercado de trabalho, as taxas em geral baixas de oferta de emprego no setor formal, e principalmente pela falta de informação dos empregadores acerca da deficiência (NERI, 2002).

Para que as empresas disponham tempo e capital em prol da efetivação da acessibilidade é necessário que ocorra um melhor esclarecimento em relação às pessoas com deficiência, para existir iniciativa da parte dos empregadores em relação a contratação deles e não apenas o cumprimento de uma imposição legal.

Apesar de estar a legislação cada vez mais inclusiva, o empregador ainda possui uma ideia discriminatória à influencia do modelo médico acerca da deficiência (OLIVEIRA, 2009).

Desta volta, ainda que exista a obrigação de contratar pessoas com deficiência, elas acabam sendo tratadas com descrédito por parte da empresa, sendo reservadas a elas atividades menos complexas. Nesse sentido:

Assim, o modo como os empregadores vão interpretar a deficiência irá determinar o foco da sua atenção em relação ao tipo de trabalho que vai ser proporcionado ao seu portador. Lamentavelmente, ainda se observam aspectos de descréditos em relação à real capacidade das pessoas com deficiência para o trabalho. Tanto é que as funções que elas têm tido oportunidade de assumir são aquelas de natureza mais simples e que exigem pouca qualificação profissional (TANAKA, 2005).

Fornecer oportunidade de integração ao ambiente de trabalho, de forma a contemplar profissionalmente as pessoas com deficiência esbarra também na questão da acessibilidade, que por sua importância possui previsão constitucional expressa nos artigos 227, §2º15 e 24416.

A acessibilidade, aqui entendida como desenho universal, extrapola o mero conceito legal dado pelo artigo 3º, I, da Lei nº 13.146/15 17. Ela vai além da simples eliminação de barreiras arquitetônicas, atingindo as barreiras atitudinais de comunicação e transporte. Um ambiente laboral com acessibilidade deve propiciar ao deficiente integração, autonomia, mobilidade e respeito no ofício exercido (BUENO, 2006).

Logo, o que se vê é que não há uma efetiva adequação da empresa em relação ao empregado com deficiência, e sim o contrário, o que desemboca na não existência de uma efetiva inclusão e acessibilidade que possibilite a integração do deficiente com seu espaço de trabalho.

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Sobre a autora
Bianca Reitmann Pagliarini

Graduando em Direito, na Faculdade de Direito e Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAGLIARINI, Bianca Reitmann. A exclusão por trás do riso.: Uma análise sobre o direito ao trabalho da pessoa com deficiência no Brasil e o freak show. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7425, 30 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106765. Acesso em: 11 mai. 2024.

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