Resumo: O ICMS é a principal fonte de arrecadação das unidades federativas. Todavia, trata-se de um imposto com uma legislação extremamente complexa, pois cada Estado atribui a ele suas próprias regras. Assim, como consequência, diversas empresas recolhem ICMS a mais ou a menos do que é devido. Desse modo, quando o valor recolhido é menor, este é corrigido por meio dos autos de infração, porém, quando é maior, teoricamente, seria a repetição do indébito. Entretanto, devido à discussão sobre a transferência do ônus, pautada no famoso artigo 166 da Código Tributário Nacional, atualmente, nem a empresa e nem o consumidor final conseguem reaver os valores recolhidos indevidamente, ficando esses, então, no cofre do poderoso Estado. Portanto, o estudo realizado neste trabalho tem o intuito de demonstrar a incompatibilidade de tal artigo com a Constituição Federal de 1988 e as discrepâncias da jurisprudência do STJ.
Palavras-chave: ICMS; repetição do indébito; art. 166; estorno do débito.
INTRODUÇÃO
O ICMS – Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e a Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – está previsto na nossa Carta Magna no artigo 155, II, sendo de competência dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre tal. Nesse âmbito, cabe evidenciar que esse tributo é de extrema importância para os entes federativos, uma vez que chega a representar cerca de 80% da arrecadação (SABBAG, 2017, p. 1539).
Assim, conforme previsto na Lei Complementar 87/96, conhecida como Lei Kandir, podem ser sujeitos passivos do ICMS aqueles que realizem operações habituais de circulação de mercadoria. Logo, empresas de toda a cadeia de consumo podem recolher ICMS, desde a indústria até o varejo (MAZZA, 2019, p. 673).
Sob esse prisma, torna-se imperativo explicitar que, por se tratar de um imposto estadual, cada Unidade Federativa prevê suas alíquotas e suas formas de tributação para o ICMS, conforme os costumes e as necessidades de cada região, tendo como base, sempre, o princípio da seletividade. Sendo assim, as alíquotas de ICMS no Paraná são totalmente diferentes das alíquotas de Santa Catarina, o que, como consequência, aumentam significativamente a complexidade de se recolher o valor correto.
Nessa senda, partindo dessa premissa, uma empresa varejista pode pagar um valor de ICMS menor do que deveria ou, ainda, maior do que aquele previsto na legislação. Assim, quando ocorre o recolhimento menor, a Receita Estadual de cada Estado está apta para agir e cobrar tais valores, normalmente, por meio do Auto de Infração, com multa e juros. Por outro lado, no caso de eventual pagamento indevido, seja por qualquer motivo, disciplina o art. 165 do CTN que o sujeito passivo, ou seja, o contribuinte tem direito à restituição:
Art. 165. O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos:
I - cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido;
II - erro na edificação do sujeito passivo, na determinação da alíquota aplicável, no cálculo do montante do débito ou na elaboração ou conferência de qualquer documento relativo ao pagamento;
Contudo, no caso de o recolhimento ICMS ser maior que o devido, atualmente, não há muito o que ser feito, pois as empresas varejistas ficam impossibilitadas de restituírem ou compensarem tais valores em sua escrita fiscal, justamente, pelo disposto no artigo 166 desse códex. Assim, esses valores acabam indo para os cofres públicos de forma totalmente indevida, enriquecendo o Estado sem justa causa, já que esse não pode cobrar nem mais e nem menos tributos dos sujeitos passivos, mas, somente a quantia exata, conforme dispõe o artigo 150 e seguintes da Constituição Federal de 1988.
Portanto, este trabalho busca responder se é constitucional ou inconstitucional o artigo 166 do CTN quando, mesmo que de forma indireta, impossibilita a restituição ou a compensação de ICMS recolhido de forma indevida aos cofres públicos. Ademais, pretendemos, também, ampliar o debate acadêmico sobre esse tema pouco estudado, a fim de informar a sociedade sobre casos concretos em que o “interesse público” se sobressai ao privado.
BREVE HISTÓRICO SOBRE A RESTITUIÇÃO DE TRIBUTOS “INDIRETOS”
O professor Ricardo Lobo Torres (2014, p. 32) afirma que antes mesmo da edição do Código Tributário Nacional, nossa suprema corte já havia sumulado entendimento no sentido de restringir à restituição de impostos indiretos: “Súmula 71 - Embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto”. Tal súmula foi aprovada na sessão plenária de 13/12/1963, demonstrando o entendimento de que as empresas que recolhem de forma indevida o imposto não tem o efetivo reembolso, por essa razão, não haveria legitimidade para restituir tal valor, já que causaria enriquecimento ilícito.
Pouco tempo depois, em dezembro de 1969, a Súmula 71 foi complementada pela Súmula 546: “Cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte "de jure" não recuperou do contribuinte "de facto" o "quantum" respectivo”. Nesse meio tempo (1967), passou a vigorar o CTN, com o famoso artigo 166.
Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.
Nesse sentido, é interessante mencionar que o anteprojeto do CTN, datado de 1954, de autoria de Rubens Gomes de Souza, não condicionava a repetição de quaisquer tributos. Porém, com a insistência da Fazenda Pública, com argumentos nem sempre plausíveis, o texto foi alterado para esse que temos ainda hoje (ANDRADE e FRIDMAN, 2021, p. 246).
Assim, sobre o contexto histórico da positivação da impossibilidade de se restituir tributos considerados “indiretos”, Brandão Machado (1984, p. 100) tece seus comentários.
“Em lugar de eliminar a origem dos atos irregulares, educando ou corrigindo os seus autores, ou neutralizar-se a cobrança do indébito com o ressarcimento, prefere-se proteger o Tesouro Público contra a justa pretensão do contribuinte, por meio de decisões ou normas que decretam que o direito restituindo, embora não seja tributo, não pertence a quem entregou ao Estado. Também aqui prevalece o político sobre o jurídico.”
Desse modo, acerca da separação do que seriam tributos “indiretos” e “diretos”, temos que isso é uma classificação feita pela economia, mas, trazida para o âmbito jurídico, principalmente, pela jurisprudência, para expressar a repercussão financeira do tributo (BERGAMINI, 2020, p. 9).
Sob esse viés, o jurista e poeta Alfredo Augusto Becker (2007, p. 569-570) é extremamente rigoroso acerca da classificação de tributos diretos e indiretos, o que ele denomina de “simplicidade da ignorância”:
A erronia das decisões dos tribunais em matéria tributária e a irracionalidade das leis tributárias são devidas, em grande parte, à classificação dos tributos em diretos e indiretos segundo o critério da repercussão econômica. Hoje, praticamente a totalidade da doutrina condena o critério da repercussão, considerando-o absolutamente artificial e sem qualquer fundamento científico. A Ciência das Finanças Públicas e a política fiscal têm demonstrado que aquele critério repousa na simplicidade da ignorância.
[...]
Conclusão - A verdade é que não existe nenhum critério científico para justificar a classificação dos tributos em diretos e indiretos e, além disto, esta classificação é impraticável.
Na mesma esteira, Tarcísio Neviani (1983, p. 57) leciona que não existe no direito positivo brasileiro qualquer definição de tributo indireto ou direto ou, ainda, quais sejam uns e quais são os outros, cabendo essa tarefa árdua aos julgadores, cuja subjetividade reina.
Por conseguinte, para o doutor Aliomar Baleeiro (2018, p. 2284), existem somente dois tributos juridicamente “indiretos”: ICMS e IPI. Assim, aprofundando no ICMS, o jurista entende que tal presunção vem da Carta Magna, já que esse deve ser seletivo e não-cumulativo. Logo, devido a esses princípios constitucionais, passa a existir a repercussão jurídica, que pode, por sua vez, ser confundida com a repercussão econômica, mas, não necessariamente.
Não obstante, nem todos pensam dessa forma. Prova disso, é que para Machado Segundo (2018b, p. 448), a repercussão jurídica acontece somente nos casos em que se elege sujeito passivo diferente daquele que realiza fato tributável. Exemplo clássico dessa situação, é IRRF (Imposto sobre a Renda Retido na Fonte), no qual a fonte pagadora retém o valor do tributo daquele que deve o imposto, para, somente depois, recolher aos cofres públicos. Ou seja, é fácil de observar que, nesse caso, se for revogada toda a legislação do Imposto de Renda, será ilícito a fonte pagadora continuar retendo tal tributo, já no caso do ICMS, se porventura, também, for revogada, o preço dos produtos poderá continuar o mesmo.
Dessa forma, fica explícita que a repercussão do ICMS, no máximo, é meramente “econômica”, assim como quaisquer outros tributos (PIS, COFINS, IRPJ, CSLL etc). Ademais, para ficar extremamente evidente, se porventura a alíquota de ICMS da cerveja no Estado Paraná passe de 25% para 10%, os consumidores finais iriam ao supermercado esperando um preço menor da bebida, porém, nenhum supermercado seria obrigado a diminuir os preços e, ainda, acaso diminuíssem, dificilmente, seria no exato valor do ICMS desonerado. Por outro lado, em um possível caso de redução do IR retido na fonte, a fonte pagadora é obrigada a reter somente o devido e, caso não faça, quem arca com os prejuízos (trabalhador) tem meios para que isso cesse.
Portanto, no que tange a “repercussão financeira”, acaba-se confundido Economia com Direito, no qual os doutrinadores da área das finanças segregam os contribuintes em duas figuras: (1) contribuinte de direito, sendo aquele que é o contribuinte segundo a legislação (normalmente as empresas); e (2) contribuinte de fato, que é aquele adquirente da mercadoria em que, teoricamente, o imposto está embutido, logo, arca com o ônus do tributo.
Sob essa ótica, os procuradores Castro, Lustoza e Gouvêa (2015, p. 639) esclarecem muito bem a diferença entre contribuinte de direito e contribuinte de fato, também, chamado de contribuinte de jure:
Por ser o ICMS um imposto indireto, ou seja, um tributo que admite a transferência de seu encargo econômico-financeiro para pessoa diversa daquela fixada em lei como contribuinte, teremos, em muitos casos, lado a lado, as figuras dos contribuintes de fato e de direito. O contribuinte de direito é a pessoa responsável pelo recolhimento do tributo; o contribuinte de fato, por sua vez, é aquele que suporta os encargos econômicos e financeiros do tributo.
Numa operação de compra e venda de mercadoria, como o valor do ICMS está embutido no preço cobrado, teremos como contribuinte legal do imposto o comerciante e como contribuinte de fato a pessoa adquirente da referida mercadoria.
Entretanto, esse entendimento pende para a economia, pois, como exposto anteriormente, não encontra respaldo na legislação tributária positivada. Sobre isso, o doutrinador Eduardo Marcial Ferreira Jardim (2019, p. 410) assevera que, para o Direito, existe somente “contribuinte”, ou seja, aquele que ocupa o polo passivo da obrigação tributária, até porque, o que se chama de “contribuinte de fato” não pode jamais ser cobrado ou executado pela Fazenda Pública.
Sendo assim, observa-se que o entendimento disposto no artigo 166 do CTN é anterior à positivação da norma, ou seja, foi disposto em época totalmente diversa do que temos hoje. Logo, ele era utilizado para tributos alheios ao ICMS, em que existiam obrigações acessórias e uma política econômica totalmente diferente da que temos atualmente. Portanto, é substancial que toda essa questão seja revista, a fim de deslindar esse impasse.
LEGITIMIDADE ATIVA E O ENRIQUECIMENTO ILÍCITO
É fundamental trazer à baila o problema da legitimidade enfrentado pelos contribuintes que, eventualmente, recolhem ICMS a mais do que o devido. Na leitura do texto do art. 166 do CTN, a divisão fica exposta em duas partes: (1) “somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo”, e (2) “no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la”.
Nesse senda, evidencia-se que, até 2010, existia controvérsia no STJ – Superior Tribunal de Justiça – sobre se era possível o contribuinte de “fato” pedir diretamente os valores que foram recolhidos a mais, pois existiam julgados dessa natureza, asseverando que, por ter suportado o ônus, teria a legitimidade. Entretanto, com o julgamento do REsp 903.394/AL, esse caminho foi completamente alterado e definido, passando a entender que somente o contribuinte de “direito” teria a legitimidade ativa para pleitear tal devolução (SABBAG, 2017, p. 1002).
Dessa forma, a partir desse paradigmático acórdão, o STJ consolidou o entendimento que o contribuinte de fato, mesmo na hipótese do art. 166 do CTN, “não detém legitimidade ativa ad causam para pleitear a restituição do indébito”. Ou seja, concluiu que a exigência de autorização desse não o transforma em titular do direito, uma vez que não integra a relação jurídico-tributária. Nessa esfera, a única exceção, até o momento, para contribuinte de fato ser parte legitima, é quando esse for consumidor de serviços prestados por concessionárias, o que não é objeto de estudo neste artigo (PAULSEN, 2022, p. 484).
Ademais, o principal argumento do STJ para não devolução do tributo indevido ao contribuinte de “direito”, nos casos em que ele não tem autorização do consumidor final, é que o primeiro já “recuperou” o valor no preço de venda, representando um “enriquecimento sem causa”. Porém, o que pouco se fala é que o Estado também experimenta esse enriquecimento, sem nenhuma causa, ao não devolver tais valores, simplesmente, utilizando o argumento de que o interesse público deve prevalecer sobre o privado (ANDRADE e FRIDMAN, 2021, p. 253-254)
Todavia, não se pode confundir “interesse público”, com interesse do “erário público”. Este raciocínio é totalmente perverso. Repare bem, o Estado quer negar a restituição de valores indevidamente arrecadados para aplicá-los no interesse público, o que viola totalmente o art. 150 da CF/88. Além disso, trata-se de uma relação de Direito Privado, não se confundindo com Direito Tributário (público). Outrossim, é imprescindível frisar que, ao contribuinte, de “fato”, conforme assentado pelo STJ, não há qualquer relação jurídica com o sujeito ativo, logo, pouco importa o recolhimento correto do tributo ou não.
Nessa esfera, Humberto Ávila (2007, p. 29), grande expoente jurídico, chega as seguintes conclusões sobre o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular:
“Dessa discussão orientada pela teoria geral do Direito e pela Constituição decorrem duas importantes consequências. Primeira: não há uma norma-princípio da supremacia do interesse público sobre o particular no Direito brasileiro. A administração não pode exigir um comportamento do particular (ou direcionar a interpretação das regras existentes) com base nesse “princípio”. Aí incluem-se quaisquer atividades administrativas, sobretudo aquelas que impõem restrições ou obrigações aos particulares. Segundo: a única ideia apta a explicar a relação entre interesses públicos e particulares, ou entre o Estado e o cidadão, é o sugerido postulado da unidade da reciprocidade de interesses, o qual implica uma principal ponderação entre interesses reciprocamente relacionados (interligados) fundamentada na sistematização das normas constitucionais”
Ainda, Carrazza (2020, p. 481) assevera que, quando o credor é o Poder Público, este deve ser ainda mais diligente que o particular ao restituir o indébito, tudo isso, em função do Princípio da Moralidade, previsto no art. 37, da nossa Carta Magna.
Por conseguinte, ao buscar informações de outras cortes constitucionais, Machado Segundo (2013, p. 693-694) faz um comparativo com casos julgados pela CJE - Corte de Justiça Europeia em relação à legitimidade para pleitear restituição de impostos indiretos, chegando à seguinte conclusão.
A CJE nega legitimidade ao contribuinte de fato, em regra, mas a reconhece ordinariamente ao contribuinte de direito sem a exigência de prova do não repasse. Isso faz toda a diferença, pois revela a coerência da CJE, e a total incoerência do STJ. Além disso, em situações nas quais a ilegitimidade do contribuinte de fato poderia conduzir à total impossibilidade de restituição, a CJE admite essa legitimidade, em termos mais amplos que o STJ, que excepciona apenas o caso de consumidores de energia elétrica.
Assim, é mister salientar que, aqui no Brasil, o contribuinte de fato (consumidor) paga um “preço” pela mercadoria, não o ICMS. Ora, o destaque do ICMS no documento fiscal de venda é uma mera obrigação acessória para facilitar a fiscalização. Veja bem, ninguém deixa de comprar uma fruta ou produto de limpeza nos supermercados devido ao valor do ICMS, mas, sim, devido ao preço como um todo. Logo, o ICMS não tem autonomia alguma, é somente mais uma parte do preço, juntamente com outros fatores (margem de lucro, custos, despesas, outros tributos etc.). O fato é que: da perspectiva do consumidor final só existe “preço”!
Ainda, Hugo de Brito Machado Segundo (2018a, p. 223) expõe que:
“Se um comerciante fixa seu preço pensando ter de pagar um aluguel elevado, e o comprador aceita pagar esse preço e adquire a mercadoria, o fato de depois se constatar que esse aluguel não seria tão elevado, ao final, não transforma o preço pago pelos compradores das mercadorias pago em indevido, só por isso. O preço é devido, porque fora validamente pactuado, pouco importando, para isso, quais fatores levaram o comerciante a fixá-lo no patamar aceito pelo comprador. Essa aceitação, sim, é relevante.”
Assim, seguindo esse raciocínio, se algum varejista, por descuido, destaca 18% de ICMS em um produto que a legislação prevê 12%, porém, mais tarde, quando ele identifica o problema e passa, então, a tributar o valor correto a 12%, mas, ao invés de estender a correção ao produto, mantém o preço de venda idêntico, simplesmente aumentando sua margem de lucro, isso se torna uma prova de que não houve repercussão financeira? A discussão pende para o lado do absurdo, pois, qual seria o fundamento para essa decisão? Como distinguir o que é imposto e o que é lucro?
Portanto, fica claro que, quando se nega ao contribuinte de “fato” a restituição do ICMS, por ele não ter tido vínculo jurídico, nega-se, igualmente, ao contribuinte esse “direito”, com a alegação de que ele transferiu a terceiro o encargo financeiro. Isto é, a ilegalidade no próprio pagamento indevido se perpetua, o que, evidentemente, não pode ser o objetivo do intérprete e do aplicador da norma.
Nesse sentido, é sagrado que nenhuma lei excluirá da apreciação do judiciário lesão ou ameaça a direito, porém, com esse entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça, em eventual excesso de recolhimento de ICMS, nem a empresa e nem o consumidor poderão pleitear a restituição do tributo, afrontando brutalmente o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal: “XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Além disso, outra questão embaraçosa consta na segunda parte da norma do art. 166 do CTN, que alude no sentido de que todos os contribuintes que repassaram o encargo financeiro a outrem, para terem o direito da restituição de eventuais impostos recolhidos indevidamente, devem procurar cada cliente para obter “autorização” (a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, [...] no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por esse expressamente autorizado a recebê-la). Ou seja, essa exigência, evidentemente, impossibilita que o contribuinte varejista pleiteie a restituição do ICMS pago indevidamente.
A seguir, um exemplo para favorecer a compreensão da questão supracitada: uma indústria que comercializa certo produto com um supermercado, onde recolhe indevidamente ICMS e, de certo modo, repassa tal valor ao supermercado. A indústria em questão consegue identificar com clareza o documento fiscal e o cliente, podendo, assim, se for o caso, obter tal autorização expressa do supermercado. Entretanto, um contribuinte varejista que registra e declara ao fisco um vertiginoso volume de dados sobre as transações de saídas de milhares de mercadorias, realizadas diretamente ao consumidor final que, por sua vez, opcionalmente, não deseja ser identificado, acaba se tornando impossível cumprir o previsto na legislação (obter autorização).
É notório, portanto, em se tratando de operações para consumidores finais, ou seja, àqueles que não são contribuintes do ICMS, que, na maioria dos casos, não há a possibilidade de identificação de quem adquiriu a mercadoria com imposto recolhido indevidamente a mais, logo, não se pode tratar de uma norma válida.
Nesse sentido, a doutrina mais conceituada segue essa mesma inteligência:
Quando a operação mercantil é praticada com consumidor final é impossível identificá-lo, para dele obter a autorização para ingressar com o pedido de restituição do indébito. Ora, como as normas jurídicas só incidem no campo dos comportamentos possíveis (Paulo de Barros Carvalho), parece óbvio que, havendo venda a consumidor final, as exigências do art. 166 do CTN não se aplicam ao contribuinte que recolheu ICMS a maior (CARRAZZA, 2020, p. 487).
Destarte, o eminente Carrazza exterioriza seu posicionamento quanto à matéria sendo pró-contribuinte “de direito”, embasando suas disposições nos mais sublimes textos exortadores que a literatura do Direito possui. Dentre eles, o doutrinador cita o prof. Paulo de Barros Carvalho que, de maneira semelhante, defende a não aplicação da referida norma por força de sua impossibilidade de concretização no plano dos fatos. Assim, ele Deixa claro que “a região material sobre que incide o direito para governar as relações de interpessoalidade, [...], é uma e somente uma: a região da conduta possível” (CARVALHO, 2019, p. 269-270).
Sob outro enfoque, Paulo Nader (2004, p. 258), expoente doutrinário na seara das disposições introdutórias do Direito brasileiro, afirma, ao citar o jurista alemão Rudolf Von Ihering, que há uma necessidade de adequação entre a norma ora escrita pelo legislador e o caso concreto aplicável, asseverando que a “essência do Direito é a sua realização prática”, ou seja, o Direito existe para ser aplicado efetivamente na vida social.
No mesmo ínterim que Nader, Miguel Reale (2004, p. 114) disciplina que para efetivamente ser legítima e gerar efeitos, uma norma deve cumprir os requisitos de validade formal (relativo à legitimidade dos proponentes da norma e seu devido processo) e eficácia (qual seja, a efetiva aplicação da normativa escrita no caso concreto). Dessa forma, o texto doutrinário, quando transcrito, apresenta os seguintes ensinamentos:
Validade formal ou vigência é, em suma, uma propriedade que diz respeito à competência dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do Direito no plano normativo. A eficácia, ao contrário, tem um caráter experimental, porquanto se refere ao cumprimento efetivo do Direito por parte de uma sociedade, ao “reconhecimento” (Anerkennung) do Direito pela comunidade, no plano social, ou, mais particularizadamente, aos efeitos sociais que uma regra suscita através de seu cumprimento.
Nesse contexto, é assentada a noção doutrinária de que há uma efetiva necessidade de congruência entre a norma positivada e os pressupostos práticos de sua aplicação. Isso ocorre, pois a doutrina geral do Direito assevera fortemente que a eficácia é a presunção necessária para aplicação do recorte legal no caso concreto, ao passo que boa parte da doutrina especializada Direito Tributário não reconhece como eficaz a aplicação do art. 166 do CTN na concepção atualmente entendida pelos tribunais. Um exemplo é o professor Tarcísio Neviani (1983, p. 319):
“Caberia questionar situação recíproca, qual seja: se um contribuinte de imposto tido como indireto (cujo ônus, portanto, se presume, embora erroneamente, transferível a terceiro) deixa de pagar o tributo, a Fazenda Pública vai cobrar o que lhe é devido desse terceiro? É claro que não, pois ele não é contribuinte e a lei não permite à Fazenda Pública cobrar tributo de quem não o deva. Mas, pela malfadada presumida translação, o ônus financeiro desse tributo não recairia sobre esse terceiro? Sim. Mas se, apesar disto, o terceiro não pode ser sujeito passivo do tributo e, portanto, não faz parte da relação jurídico tributária, como, sem arranhar profundamente a sistemática do Direito Tributário, atribuir qualidade a esse terceiro para “autorizar” o contribuinte legal que pagou o indevido a repetir? Não há lógica nisso.”
Portanto, todos esses pontos relatados acima demonstram com clareza a impossibilidade de se obter autorização do “contribuinte de fato” e, ainda, caso obtenha, como seria essa autorização na prática? Pode-se reparar que, se de fato ocorrer a translação do ICMS, melhor dizendo, o consumidor arque com o todo o valor do imposto, seria impossível um comércio varejista procurar cliente por cliente para ter a “autorização expressa” e ingressar com a ação judicial de repetição de indébito de ICMS. Sendo assim, cristaliza-se, então, a não aplicação do art. 166 do CTN para varejistas em geral, pois, ad impossibilia nemo tenetur.