ART. 166 E A PROVA DIABÓLICA
Além de tudo já descrito acima, restam dois entraves postos pelo entendimento jurisprudencial que são praticamente insuperáveis e impossibilitam a restituição ou a compensação do ICMS recolhido indevidamente. O primeiro é o ônus da prova, no qual, em qualquer sistema judiciário impoluto, a Fazenda Pública, que teoricamente seria a “parte ré” no pleito, é quem deveria provar que o imposto foi efetivamente transferido ao consumidor e não ao contrário. Outro ponto fundamental é qual “prova” seria capaz de demonstrar a não transferência desses encargos, já que se trata de uma “repercussão jurídica”?
Sobre isso, Becker (2007, p. 572) é bastante coerente acerca da premissa de que somente alguns tributos repercutem pela sua “natureza” e forma de provar tal repercussão:
Simplicidade da ignorância: Por sua própria natureza alguns tributos repercutem e outros não. O raciocínio baseado nesta premissa é ingênuo e denuncia superficialíssima noção do fenômeno da repercussão, porque todos os tributos repercutem. Noutras palavras, os fatores decisivos da repercussão econômica do tributo são estranhos à natureza do tributo e determinados pela conjuntura econômico-social. Além disso, a previsibilidade da repercussão econômica e a constatação dos resultados efetivos da repercussão alcançam-se por aproximação ainda distante e nebulosa, mediante utilização de princípios financeiros extremamente complexos e cujos resultados ainda são de natureza macroeconômica.
De natureza semelhante, Hugo de Brito Machado Segundo (2017, p. 386), pesquisador incansável do tema, coleciona julgados da Corte de Justiça Europeia no sentido de que, por ser matéria de defesa, o ônus da prova coube fisco. Nesse sentido, um dos paradigmas é o julgamento C-147/01, em que o tribunal confirmou que o ônus da prova de eventual enriquecimento sem causa da empresa seria da Fazenda Pública e não do contribuinte. Ademais, ainda frisou que não necessariamente o repasse do tributo nos preços significaria a ausência de prejuízos a serem reparados por meio da repetição do indébito, pois, “ainda que o imposto tenha sido completamente integrado no preço praticado, o sujeito passivo pode sofrer prejuízos associados à diminuição do volume das suas vendas”.
Logo, é indiscutível que, embora seja muito difícil provar a ocorrência desse “repasse”, é ainda mais difícil, ou mesmo impossível, provar a inocorrência dele. Mais uma vez: trata-se aqui de prova impossível. Semelhantemente, o ex-ministro do STF Aliomar Baleeiro ensina:
Sendo objeto de pagamento indevido, não tem o contribuinte o ônus de lhes demonstrar a inexistência de translação. Tal prova é dificílima, em muitos casos impossível, sujeitando-se a uma série de variáveis econômicas. Cabe, pois, à Fazenda que, ilegal ou inconstitucionalmente, recebeu pagamento sem causa, demonstrar que o solvens não tem legitimidade para pleitear a restituição ou interesse, por não ter suportado o encargo (BALEEIRO, 2018, p. 2290).
Dessa forma, sendo o ônus de provar do contribuinte de “direito”, o que seria tal prova? Em um caso hipotético, houve o recolhimento efetivo de 18% de ICMS em certo produto, porém, sem qualquer destaque de tributo no documento fiscal. Assim, após certo período, é julgado inconstitucional o ICMS de 18% sobre aquele item, levando a tributação para 0%, sendo assim, todo o recolhimento é considerado indevido, cabendo, então, restituição. No caso, devido ao não destaque no documento fiscal, seria uma “prova” de que não houve transferência do encargo financeiro?
Ora, a pergunta pode parecer grosseira, mas, seguindo a “lógica” das jurisprudências do STJ poderia ter razão, assim como aconteceu no REsp nº 1.009.518/RS, já que uma das bases utilizadas em diversos julgados é o destaque no documento fiscal. Isto é, por mais absurdo que pareça, uma simples obrigação acessória pode fazer a diferença em uma eventual restituição de ICMS. Nesse cenário, não é difícil perceber que o art. 166 “presenteia” aqueles que descumprem as obrigações acessórias com a restituição dos impostos indiretos. Em contrapartida, aqueles que cumprem a legislação estritamente são penalizados em favor do “interesse público”.
Essa conjuntura anormal para a legislação tributária ocorreu no Estado de Santa Catarina, na qual, em 30 de dezembro de 2021, a Lei nº 18.319/2021 foi publicada no Diário Oficial, que, basicamente, revogava a redução na base de cálculo que resultava em percentual de 7% de ICMS para o produto “leite esterilizado longa”. Tal revogação produziu efeitos a partir de 1º de abril de 2022, majorando a carga tributária dessas mercadorias para 17% nas vendas para consumidores finais.
Nesse contexto, devido ao clamor social, os legisladores e o governador de Santa Catarina repensaram a alteração e, então, foi sancionada a Lei nº 18.368/2022, publicada no DOE em 09 de maio de 2022, em que adicionava mais uma vez o “leite esterilizado longa vida” na cesta básica, com a redução na base de cálculo, resultando nos 7% de ICMS novamente. O fato inusitado é que tal alteração na legislação produziu efeitos retroativos a 1º de abril de 2022.
Todavia, não serão abordados neste trabalho os possíveis problemas em relação à Lei de Responsabilidade Fiscal ou acerca da retroatividade da lei tributária no tempo. O foco é demonstrar que o art. 166 do CTN, nesse fato ocorrido, com a interpretação dada pelo STJ, fez com que a alteração legislativa beneficiasse somente os infratores. Ou seja, premiou quem descumpriu obrigações tributárias, seja principal ou acessória.
Em efeitos práticos da alteração legislativa e do entendimento atual da jurisprudência nacional, pode-se observar duas hipóteses esdruxulas: supermercadista, seguindo a legislação vigente à época, efetuou suas vendas aos consumidores, destacando 17% de ICMS em abril de 2022. Logo, partindo da premissa que o empresário adicionou esse montante de 10% (diferença de 7% para 17%) no preço do leite, o produto que custava R$5,00 passou a custar R$5,60, conforme quadro abaixo:
mês do fato gerador |
custo + margem de lucro |
percentual de ICMS |
valor do ICMS |
preço final ao consumidor |
---|---|---|---|---|
mar/22 |
R$4,65 |
7% |
R$0,35 |
R$5,00 |
abr/22 |
R$4,65 |
17% |
R$0,95 |
R$5,60 |
Sendo assim, durante do mês de abril de 2022, os consumidores que compraram naquela loja pagaram R$5,60 pelo leite e receberam suas notas fiscais com o destaque de 17%, tudo devidamente declarado e escriturado. No mês seguinte, seja por qualquer motivo, o supermercadista não realizou o pagamento do ICMS referente à competência 04/2022, consequentemente, com o passar do tempo tal valor em aberto se tornou uma CDA (Certidão de Dívida Ativa) e, desse modo, iniciou-se a execução fiscal.
Entretanto, como posteriormente a alíquota do leite voltou a ser 7%, com efeitos retroativos a 1º de abril de 2022, o contribuinte atentamente embargou a execução, alegando que nem todo aquele valor era devido, já que foi declarado 17%, porém, realmente só devia 7%. Teoricamente, seguindo a lógica das jurisprudências postas até aqui, esse valor foi repassado ao consumidor final, cujo comerciante deveria repassar ao fisco todo valor de ICMS “embutido no preço da mercadoria”, mas, por incrível que pareça, não é assim que o tribunal entende.
A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que, por não ser uma repetição ou compensação de ICMS, tal diferença pode ser abatida da dívida, já que ainda nem foi paga ao fisco.
TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. EXIGÊNCIA DE PROVA DE NÃO-REPERCUSSÃO DO TRIBUTO INDIRETO. ART. 166 DO CTN. INAPLICABILIDADE.
1. Os tributos indiretos, que permitem a transferência do gravame tributário a terceiro, são objeto da restrição imposta pelo art. 166 do CTN, na hipótese de restituição de indébito.
2. Sem embargo, outra situação inteiramente diversa é a busca, pelo contribuinte, de diminuição ou exclusão de tributo indireto na CDA, em sede de embargos à execução. Em casos desta jaez, a jurisprudência desta Corte pacificou-se pela não-aplicabilidade do art. 166 do CTN.
Recurso especial da em empresa contribuinte provido.
TRIBUTÁRIO. TAXA SELIC. COBRANÇA DE TRIBUTO ESTADUAL. POSSIBILIDADE.
1. O parágrafo primeiro do art. 161 do CTN é nítido. É uma norma supletiva. A existência de legislação em sentido diverso afasta sua aplicação.
2. In casu, noticia a FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO que existe a Lei Estadual n. 10.175/98, que prevê a aplicação da taxa Selic.
Corrobora, por conseguinte, a exigência do art. 161, § 1º do CTN.
Recurso especial da Fazenda estadual provido.
(REsp n. 863.372/SP, relator Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 3/10/2006, DJ de 17/10/2006, p. 280.)
Em caso semelhante, o voto do saudoso Teori Zavascki foi muito claro, afirmando que:
A comprovação da ausência de repasse do encargo financeiro correspondente ao tributo, nos moldes do art. 166 do CTN e da Súmula 546/STF, somente é exigida nas hipóteses em que se pretende a compensação ou restituição de tributos. No caso concreto, não há cogitar de tal exigência, já que a pretensão dos embargantes não é a de obter restituição de tributo, mas apenas de reduzir o valor que lhe são exigidos em sede de execução fiscal.
(REsp 847396/SP; 2006/0090061-9 Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI (1124) Órgão Julgador T1 – PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 17.8.2006 Data da Publicação/Fonte DJ 31.8.2006 p. 287)
É exatamente isso, caso o comerciante pague ICMS em dia, o valor excedente não pode ser repetido, agora, em casos de não pagamento, o excesso pode ser abatido da dívida em eventual cobrança. A norma do art. 166 do CTN só favorece aqueles que descumprem obrigações tributárias.
Uma segunda hipótese é a do comerciante que, por descuido ou proposital, não altera o percentual de ICMS na emissão da nota fiscal, porém calcula o novo valor do ICMS considerando 17% e altera o preço do leite para R$5,[60].
Nesse caso, a compra foi realizada pelo consumidor ao preço de R$5,60 e houve o recolhimento dos 17% de ICMS. Porém, no documento fiscal, o destaque foi somente de 7%, pois houve erro no preenchimento, considerando a alíquota efetiva do mês anterior.
Mais uma vez, por incrível que pareça, o STJ tem julgado favorável casos semelhantes. Na decisão abaixo, de relatoria da Ministra Eliana Calmon, um caso em que o contribuinte de direito de ISS não destacou o imposto na nota fiscal serviu como prova inequívoca de que não houve o repasse do tributo no preço do serviço.
TRIBUTÁRIO - PROCESSO CIVIL - ISS - AÇÃO DECLARATÓRIA CUMULADA COM REPETIÇÃO DE INDÉBITO - APRECIAÇÃO APENAS DA LEGITIMIDADE PARA A AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO - OMISSÃO - NULIDADE - - REPERCUSSÃO JURÍDICA DO TRIBUTO - INEXISTÊNCIA - LEGITIMIDADE DO CONTRIBUINTE DE DIREITO.
[...]
3. Na hipótese, restou comprovado por prova pericial a ausência de destaque do tributo na nota fiscal da prestação de serviço, de modo que se afasta a restrição contida no art. 166 do CTN quando o prestador não repassou o tributo no preço do serviço, assumindo o seu encargo financeiro.
4. Recurso especial provido para anular o acórdão dos embargos de declaração, e determinar à Corte de origem que aprecie a pretensão declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária.
(REsp n. 1.009.518/RS, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 6/8/2009, DJe de 21/8/2009.)
Nessa perspectiva, de acordo com os dados supramencionados neste trabalho, cabe explicitar que o intuito deste não é criticar essas decisões, mas, sim, pontuar e cotejar àquelas que desfavorecem os contribuintes que cumprem em dia suas obrigações tributárias. Além disso, fica o questionamento para o Estado de Santa Catarina: qual o intuito de uma lei retroativa em que não beneficia ninguém de boa-fé?
Isto é, se quem arca com o ônus é o consumidor, este, para ser beneficiado, precisa que os supermercadistas tenham direito ao valor despendido erroneamente para, consequentemente, diminuírem os custos e os preços de venda.
Diante do exposto, fica evidente que, em caso de dúvida de qual alíquota aplicar ou se alguma lei poderá ser considera inconstitucional no futuro, é mais vantajoso deixar de realizar o pagamento de ICMS, haja vista que a repetição é praticamente impossível, devido à norma do art. 166 do CTN. Ademais, não pode ser esse o intuito de nenhuma legislação, já que não é compatível com a moralidade expressa no art. 37 da Constituição Federal de 1988.
Por conseguinte, cabe citar neste sucinto trabalho de pesquisa, o julgamento do RESp 525625/RS, na data de 09 de agosto de 2022, em que foi afastada a aplicação do art. 166 do CTN, para casos em que houve o recolhimento do ICMS por meio da substituição tributária com base de cálculo superior ao efetivamente realizado. Em tais casos, o substituído que realizar operações de venda para consumidor final, cujo preço for inferior ao presumido pelo substituto no momento do recolhimento do ICMS ST, pode restituir/compensar tais valores sem necessidade de comprovar que arcou com o ônus.
Nesse caso, a 2ª turma do STJ entendeu que não se trata de um “pagamento indevido”, mas, somente de uma base de cálculo presumida maior do que aquela efetivamente realizada na venda para o consumidor final. Data venia, ainda que o mérito da decisão seja um grande avanço para a jurisprudência, utilizar-se do argumento de que não é um pagamento indevido contraria a própria tese fixada pelo STF no Tema 201: “É devida a restituição da diferença do ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente, se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”, quando da solução do RE 593849/MG. Ou seja, mesmo não sendo uma decisão voltada estritamente para o estudo do art. 166 do CTN, tratado aqui, tal vitória é histórica e pode abrir caminhos para pesquisas e novas teses referentes a tal norma.
Tudo isso demonstra que há uma incongruência colossal acerca da “prova do ônus”, prevista no art. 166 do CTN. O ICMS, segundo a jurisprudência do STJ, repercute "juridicamente" sobre o contribuinte de fato (consumidor final). Nessa lógica, o contribuinte de direito (varejista), para ter o direito ao valor recolhido a mais, necessariamente, precisa provar que não transferiu "juridicamente" esse imposto. Então, o que seria uma prova de que o ICMS não incorporou o preço do produto? Basta apresentar os livros contábeis? Se sim, então a prova é de repercussão "financeira", logo, não tem nada a ver com a "natureza" do tributo.
Porém, por mais condenável que seja, é inexequível uma prova que demonstre o "não aumento" do preço em função do tributo recolhido indevidamente. Logo, como saber se houve aumento do lucro ou não? Nossa economia é livre e não há lucro mínimo e nem máximo. Ou seja, o preço é pactuado livremente entre as partes. Direito Civil puro. Alfredo Becker (2007, p. 581) não deixa dúvida: “Impossível é conhecer a verdadeira incidência econômica do tributo. Assim, a identificação do contribuinte "de fato" é impraticável.” Desse modo, fica evidente que a prova que não houve repercussão, na maioria das decisões, caminha no sentido de que pode ser "jurídica" ou "financeira", conforme o "sabor" que o Estado preferir.