4.Síntese conclusiva
Fiz um exame perfunctório de alguns temas concernentes ao crime de omissão de socorro no trânsito. Melhor entendimento do assunto pressupõe sua ligação e confronto com o delito do art. 305 (fuga do local do acidente) e com o crime básico de omissão de socorro do Código Penal em vigor (art. 135). Portanto, com as noções elementares da estrutura jurídica dos crimes de perigo — comum ou individual. Mais ainda: com o art. 281 do Código Penal Militar (fuga após acidente de trânsito), que prepondera sobre qualquer outro da legislação penal em vigor.
Limito-me ao que ficou exposto. Se me refiro, tantas vezes, às questões polêmicas, é porque há muito me convenci de que o direito penal, enquanto ciência, se não pode prescindir de alguma teoria, muito menos pode afastar-se de suas fontes históricas: lei, ideologia e intérprete (Curso crítico de direito penal, 1998, p.57- 61).
Ora, instituiu o legislador a figura delituosa da imediata omissão de socorro em acidente de trânsito com vítima. Para tanto, se aparentemente abriu exceção à regra geral do "crime impossível", assim procedeu por ser essa a sua vontade, vinculada à certeza de que a morte da vítima, um mal irreparável, não retira o caráter antiético da indiferença do condutor. Seria no mínimo esquisito que o motorista, logo após o acidente, ao constatar o óbito da vítima, respirasse aliviado: "Que bom! Posso agora seguir adiante, sem qualquer responsabilidade criminal!" Há que se enfocar o tema, como se viu, sob a ótica de outro bem jurídico: o respeito aos mortos. Conclusão: crime possível, perfeitamente possível.
Questão diversa se prende à convicção do desacerto político da lei numa época de luta ideológica por mais justiça social e menos direito penal. Num acidente em que o motorista, em regra, não tem culpa em cartório, constitui um risco à liberdade individual condená-lo por uma omissão que se relacione, em verdade, com seu nervosismo, com seu previsível descontrole emocional.
A esse ponto não chegou o legislador. Não se trata de crime que se puna a título de imprudência, negligência ou imperícia (CP, art. 18, parágrafo único, c/c art. 291 do CTB). Como escrevi alhures, a lei pune a quem, no mínimo com dolo eventual, deixa o corpo da vítima, com ou sem vida, entregue à própria sorte. Ora, o condutor, em pânico, pode sentir-se desnorteado, perdendo momentaneamente o domínio de sua conduta. Fica difícil nesse estágio caracterizar o delito ("Crime de omissão de socorro: divergências interpretativas e observações críticas", Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 34, 2001, p. 49).
Como quer que seja, impõe-se agora uma síntese conclusiva, mais ou menos eqüidistante das habituais pregações de caráter dogmático.
Vimos que um único dispositivo de lei (CTB, art. 304) suscitou e suscita, ainda hoje, inúmeras controvérsias: sujeito ativo, ausência ou não de culpa, tipo de veículo, natureza da via, concurso aparente de normas, morte da vítima etc. Controvérsias que se estendem à licitude ou não do aumento de pena pela omissão de socorro à vítima que sofra, no trânsito, morte imediata (homicídio culposo agravado).
Nessas horas a dogmática jurídica, por suas limitações, por sua fragilidade, tal como ocorre em milhares de outras hipóteses, acaba cedendo espaço à formação e sedimentação de um direito penal essencialmente contraditório.
Em qualquer país, ainda que altamente civilizado, à vontade da norma pode opor-se – poder fático-normativo – a vontade do intérprete, que se coloca, destarte, acima da Lei e da própria Constituição, transformando-se em fonte direta ou indireta de um direito penal que repute eventualmente mais justo ou mais adequado às circunstâncias.
Trata-se de constatação empírica. Questão diversa diz respeito ao correspondente juízo de valor acerca desse poder fático-normativo.
Por sinal, no magistério de Orlando Ferreira de Melo, o direito "não nasceu das leis e nestas não se encontra. A lei é apenas um registro escrito versando sobre comportamentos humanos desejáveis, obrigatórios e permitidos, e das eventuais sanções pelo descumprimento dos obrigatórios. Só por metáfora podemos fundir lei e direito" (Hermenêutica jurídica: uma reflexão sobre novos posicionamentos. Itajaí, Editora da Univali, 2001, p. 179).
O fato é que, em existindo lei, há de existir interpretação. Em regra, não se faz direito sem labor exegético. Mas a exegese, em suas contradições, deixa entrever, aos poucos, as raízes de um objeto em eterno processo de reconstrução histórica.
Sob o prisma de uma hermenêutica realista, de cunho crítico-metodológico, essas raízes retratam as categorias básicas do direito: força, poder, vontade, liberdade. De qualquer direito, aliás. Seu nome é o que menos importa: direito legal, direito racional, direito alternativo, direito justo. Em todos eles o dedo criativo do legislador se funde, por metáfora, ao dedo soberano do intérprete.
Referências bibliográficas:
ABREU, Waldyr de. Código de trânsito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1998.
ANDRADA, Doorgal Gustavo B. de. Crimes e penas no novo código de trânsito. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
ANDREUCCI, Ricardo Antonio."Comentários aos crimes do código de trânsito brasileiro". Legislação penal especial. São Paulo: Saraiva, 3ª ed., 2007.
ARAÚJO, Marcelo Cunha de. Crimes de trânsito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.
BASTOS, João José Caldeira. "Crime de omissão de socorro no trânsito". Doutrina jurídica brasileira [CD-ROM], org. Sérgio Augustin. Caxias do Sul: Plenum, 2001.
"Crime de omissão de socorro: divergências interpretativas e observações críticas". Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 34, p. 45-62. São Paulo: RT, abr./jun. 2001.
"Crimes de trânsito: interpretação e crítica". Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 25. São Paulo: RT, jan./mar. 1999.
Curso crítico de direito penal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998.
"Prevenção de acidentes de trânsito". Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 16. São Paulo: RT, out./dez. 1996.
CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do código de trânsito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1998.
COSTA JR., Paulo José da; QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos crimes do novo código de trânsito. São Paulo: Saraiva, 1998.
FUKASSAWA, Fernando Y. Crimes de trânsito. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998.
GARCIA, Ismar Estulano. Crimes de trânsito, 2ª ed.. Goiânia: AB Editora, 1997.
GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processo penal. São Paulo: RT, 1999.
HONORATO, Cássio Mattos. Trânsito: infrações e crimes. Campinas: Millennium, 2000.
JESUS, Damásio E. de. Crimes de trânsito, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
Imputação objetiva. São Paulo: Saraiva, 2000.
Crimes de trânsito. São Paulo: Saraiva, 1998.
LIMA, Walter Lucio de. "Omissão de socorro no trânsito". São Paulo: Boletim IBCCrim nº 70, set. 1998.
LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Crimes de trânsito. São Paulo: RT, 1998.
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. 4. São Paulo: Saraiva, 1961.
MARRONE, José Marcos. Delitos de trânsito. São Paulo: Atlas, 1998.
MARTINS, Jorge Henrique Schaefer. "Aspectos criminais do código brasileiro de trânsito". São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 752, jun. 1998.
MELO, Orlando Ferreira de. Hermenêutica jurídica: uma reflexão sobre novos posicionamentos. Itajaí, Editora da Univali, 2001.
PIMENTEL, Jaime; SAMPAIO FILHO, Walter Francisco. Crimes de trânsito
comentados. São Paulo: Iglu Editora, 1998.
NOGUEIRA, Fernando Célio de Brito. Crimes do código de trânsito. São Paulo: Atlas, 1999.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes de trânsito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999.
PIRES, Ariosvaldo de Campos; SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de trânsito. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao código de trânsito brasileiro, 6ª ed. São Paulo: RT, 2007.
SZNICK, Valdir. Novo código de trânsito. São Paulo: Ícone, 1998.