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A proteção à dignidade da mulher como limite ao exercício do direito de propriedade

24/11/2023 às 19:26
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Em caso de afastamento do lar conjugal em razão de medida protetiva, poderia o agressor/coproprietário postular o pagamento de aluguel em face da vítima/coproprietária?

RESUMO: O presente artigo visa à análise do conflito existente entre dois direitos fundamentais – dignidade da pessoa humana e direito de propriedade – que possam eventualmente incidir dentro do contexto de violência doméstica, notadamente quando a mulher necessita residir na propriedade comum de seu atual e ex-companheiro. Buscar-se-á, por intermédio de pesquisa bibliográfica, fazer o levantamento concernente aos embates envolvendo os temas e as soluções que podem ser alcançadas, à luz dos direitos humanos.

Palavras-chave: direito de propriedade; dignidade humana; mulher; direitos fundamentais.


1. Direitos humanos e a ponderação dos conflitos.

A partir da segunda metade do século XX e impulsionada pelas experiências decorrentes da Segunda Guerra Mundial, a humanidade passou a clamar por uma nova ordem mundial que estabelecesse, ainda que de forma inicial, direitos mínimos que pudessem ser obtidos por todos cidadãos.

Esse clamor encontrou eco no denominado Direito Internacional dos Direitos Humanos, sendo marcado pela criação, na Conferência de São Francisco em 1945, da Organização das Nações Unidas, por intermédio da “Carta de São Francisco”.

É bem verdade que o estudo sobre o surgimento dos direitos humanos remonta à existência em eras antigas, cada qual, a seu turno e dentro de suas circunstâncias, já apresentava indícios da presença de atos normativos voltados ao bem comum.

Por exemplo, na Antiguidade, entre os séculos VIII e II a.C, vários filósofos trataram de direitos dos indivíduos (Zaratustra na Pérsia, Buda na Índia, Confúcio na China e o Dêutero-Isaías em Israel), tendo como ponto em comum entre a adoção de códigos de comportamento baseados no amor e respeito ao outro (COMPARATO, 2010).

De qualquer, foi a partir da 1945 e a “Carta de São Francisco” que se passou a referir especificamente aos direitos humanos na ordem internacional, inclusive com a formação de organismo voltado especificamente para a promoção e defesa desses direitos.

Tal instrumento, conquanto tivesse inserido a temática dos direitos humanos em diversas passagens, não listou o rol dos que seriam considerados essenciais. Em razão disso, em 10 de dezembro de 1948, foi aprovada Declaração Universal de Direitos Humanos (“Declaração de Paris”), sob a forma de Resolução da Assembleia Geral da ONU, que trouxe em seus 30 artigos o rol de direitos humanos aceitos internacionalmente.

Não se trata de uma norma prolixa, mas que estabelece uma ampla abordagem dos chamados direitos políticos e liberdades civis (artigos 1 ao 21), direitos econômicos, sociais e culturais (artigos 22 ao 27). Ainda, dentre os direitos civis e políticos constam o direito à vida e à integridade física, o direito à igualdade, o direito de propriedade, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, o direito à liberdade de opinião e de expressão e à liberdade de reunião.

Sobre o caráter cogente dessas normas, oportunas são as palavras de André Carvalho Ramos:

“Em virtude de ser a DUDH uma declaração e não um tratado, há discussões na doutrina e na prática dos Estados sobre sua força vinculante. Em resumo, podemos identificar três vertentes possíveis: (i) aqueles que consideram que a DUDH possui força vinculante por se constituir em interpretação autêntica do termo ‘direitos humanos’, previsto na Carta das Nações Unidas (tratado, ou seja, tem força vinculante); (ii) há aqueles que sustentam que a DUDH possui força vinculante por representar o costume internacional sobre a matéria; (iii) há, finalmente, aqueles que defendem que a DUDH representa tão somente a soft law na matéria, que consiste em um conjunto de normas ainda não vinculantes, mas que buscam orientar a ação futura dos Estados para que, então, venha a ter força vinculante.

Do nosso ponto de vista, parte da DUDH é entendida como espelho do costume internacional de proteção de direitos humanos, em especial quanto aos direitos à integridade física, igualdade e devido processo legal” (2018, p. 50).

Destarte, para a doutrina contemporânea, do Estado-membro, ao livremente aderir um compromisso internacional, espera-se grau de maturidade suficiente para atender os preceitos neles estabelecidos e que representam os anseios da comunidade global para o bem comum da humanidade.

Em reforço, Dalmo Dalari de Abreu acrescenta que os direitos humanos correspondem ao rol de necessidades essenciais da pessoa, isto é, “Trata-se daquelas necessidades que são iguais para todos os seres humanos e que devem ser atendidas para que a pessoa possa viver com a dignidade que deve ser assegurada a todas as pessoas” (2004, p. 13).

Tais diretrizes são aplicáveis a todo sistema internacional de proteção dos direitos humanos, não se limitando apenas à Declaração Universal de Direitos Humanos. Seja no sistema onusiano – a exemplo do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – ou mesmo no sistema regional – Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) – os direitos humanos devem ser compreendidos como normas de orientação e conduta dos Estados, mormente no que diz respeito ao trato com os seus nacionais.

Dentro desse contexto, André de Carvalho Ramos relembra que, em geral, todo direito exprime a faculdade de exigir de terceiro, que pode ser o Estado ou mesmo um particular, determinada obrigação. Por isso, os direitos humanos têm estrutura variada, podendo ser: direito-pretensão, direito-liberdade, direito-poder e, finalmente, direito-imunidade, que acarretam obrigações do Estado ou de particulares revestidas, respectivamente, na forma de: (i) dever, (ii) ausência de direito, (iii) sujeição e (iv) incompetência.

E explica:

“O direito-pretensão consiste na busca de algo, gerando a contrapartida de outrem do dever de prestar. Nesse sentido, determinada pessoa tem direito a algo, se outrem (Estado ou mesmo outro particular) tem o dever de realizar uma conduta que não viole esse direito. Assim, nasce o ‘direito-pretensão’, como, por exemplo, o direito à educação fundamental, que gera o dever do Estado de prestá-la gratuitamente (art. 208, I, da CF/88).

O direito-liberdade consiste na faculdade de agir que gera a ausência de direito de qualquer outro ente ou pessoa. Assim, uma pessoa tem a liberdade de credo (art. 5º, VI, da CF/88), não possuindo o Estado (ou terceiros) nenhum direito (ausência de direito) de exigir que essa pessoa tenha determinada religião.

Por sua vez, o direito-poder implica uma relação de poder de uma pessoa de exigir determinada sujeição do Estado ou de outra pessoa. Assim, uma pessoa tem o poder de, ao ser presa, requerer a assistência da família e de advogado, o que sujeita a autoridade pública a providenciar tais contatos (art. 5º, LXIII, da CF/88).

Finalmente, o direito-imunidade consiste na autorização dada por uma norma a uma determinada pessoa, impedindo que outra interfira de qualquer modo. Assim, uma pessoa é imune à prisão, a não ser em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar (art. 5º, LVI, da CF/88), o que impede que outros agentes públicos (como, por exemplo, agentes policiais) possam alterar a posição da pessoa em relação à prisão.’

Relembre-se, contudo, que não existe direito absoluto e, mesmo se tratando de um direito humano – ou fundamental, se igualmente prescrito na ordem jurídica interna do país, existem limites. O caráter universal não induz à conclusão de que possa ser exigido em toda e qualquer situação, lembrando-se sempre que, por exemplo, o direito à vida pode ser relativizado em situações excepcionais (estado de guerra, v.g.).

Com isso, chega-se a um ponto de extrema relevância para o presente estudo, qual seja, a limitação a determinado direito humano fundamental, entendendo-se como restrição toda ação ou omissão de qualquer dos poderes públicos, ou mesmo do particular, que venha a reduzir um direito fundamental.

Uma vez que os direitos fundamentais não são absolutos ou ilimitados, encontram-se submetidos a uma série de condicionamentos que podem ser denominados limites ou restrições, e que delimitam o exercício válido de uma prerrogativa subjetiva em determinadas circunstâncias.

Para tanto, a doutrina estabeleceu duas concepções teóricas sobre a forma como as normas de direitos fundamentais se relacionam entre si, classificando-as em teoria interna e externa.

Na primeira, as normas de direitos fundamentais teriam conteúdo mais estrito, de modo que seus limites são imanentes ao próprio direito invocado. Seu conteúdo não conflita com outras normas porque, ao se exercer, já são consideradas as limitações jurídicas existentes em um determinado direito fundamental.

Deste modo:

“[…] para a teoria interna, o conteúdo de um direito fundamental se estenderia até o ponto em que se confronta com outro direito. Apenas haveria direito à liberdade de expressão nos casos em que esse direito não colidisse com outros direitos fundamentais. Em outras palavras, “segundo ela [teoria interna], não há duas coisas – o direito e sua restrição –, mas apenas uma: o direito com um determinado conteúdo. […] Se se parte exclusivamente de posições definitivas chega-se à conclusão de que posições de direitos fundamentais nunca podem ser restringidas […].” (Ozai, 2020)

De outro lado, a teoria externa parte do entendimento de que a ocorrência de conflitos entre normas de direito fundamental se resolve em um procedimento bifásico: em um primeiro momento há a necessidade de se identificar os direitos prima facie (categorização). Após, estes direitos deverão ser ponderados e sopesados, para se identificar qual a solução adequada para o caso concreto apresentado, o que corresponde à “proteção definitiva do direito” (PEREIRA, 2005, p.162).

Ambas teorias não estão isentas de críticas, mas dados os limites do presente trabalho, é mister destacar o papel preponderante da teoria externa, sobretudo nos denominados hard cases, em que se faz necessária um juízo de ponderação.

Daniel Sarmento relembra que nos casos difíceis o intérprete que optar pela teoria interna fará, antes, uma ponderação camuflada ou escamoteada, para depois expor um conteúdo verdadeiro do direito delimitado. Adotar a teoria externa nos casos difíceis resulta em maior transparência do raciocínio jurídico do intérprete (2010, p. 259).

Dentro desse prisma é que analisará, no tópico seguinte, o confronto entre dois direitos fundamentais, a saber: a dignidade da pessoa humana e o direito de propriedade, sendo ambos no contexto de violência doméstica.

Far-se-á um exame de proporcionalidade no conflito existente entre tais direitos e o caminho a ser seguido pelo operador do direito.

2. A dignidade da pessoa humana e o direito de propriedade

O direito à propriedade foi alçado, pela Constituição Federal, como um direito individual (art. 5º, inciso XXII), constituindo, assim, cláusula pétrea, nos moldes do inciso IV do § 4º do art. 60 do Texto Maior. É dizer, faz parte do denominado “núcleo duro”, impassível de alteração – apenas aprimoramentos, nunca supressão –, inclusive via Emendas Constitucionais, obra do Poder constituinte derivado reformador.

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Constitui previsão que corrobora o que já existia no âmbito do Sistema Global (Onusiano), consoante se infere do art. 17 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “1. Toda a pessoa, individual ou coletiva, tem direito à propriedade. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.”

Não se trata, contudo, de um direito absoluto, que pode ser imposto a terceiros, inclusive ao Estado, sem exceções ou balizas. Da própria Constituição Federal se extrai que “a propriedade atenderá a sua função social” (art. 5º, inciso XXIII), cujo descumprimento poderá, a título exemplificativo, levar à desapropriação-sanção pelo Município, com pagamentos em títulos da dívida pública (art. 182, § 4º, inciso III), ou pela União, mediante títulos da dívida agrária, destinando o bem imóvel à reforma agrária (art. 184).

E essa função social, como vetor interpretativo ao uso adequado do direito da propriedade, além de inserido como um dos princípios da ordem econômica nacional (art. 170, inciso III, da CF), também norteou a regramento infraconstitucional da matéria, a teor do § 1º do art. 1.228 do Código Civil, a saber:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Como se sabe, dentro da linha principiológica do atual Código Civil, está a socialidade, em que se procura superar o caráter individualista e egoísta que imperava na codificação anterior, valorizando a palavra nós, em detrimento da palavra eu (Tartuce, 2020).

Para Luiz Edson Fachin (1988), a função social da propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público e tem por finalidade instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição ao conceito estático, representando uma projeção da reação anti-individualista.

Assim, o fundamento da função social da propriedade é eliminar da propriedade privada o que há de eliminável. O fundamento da função social revela o imprescindível, uma expressão natural de necessidade.

Para Anderson Schereiber (2020, p. 1.022):

“A crise de legitimação da propriedade privada e o movimento solidarista evidenciaram a necessidade de tutelar, com o instituto da propriedade, não apenas os interesses individuais e patrimoniais do proprietário, mas também interesses supraindividuais, de caráter extrapatrimonial, como a preservação do meio ambiente sadio e equilibrado, o bem-estar dos trabalhadores. O irresponsável exercício do domínio cede passagem a uma concepção de propriedade guiada pela sua utilidade social. Assim, ao contrário do que sugere nosso Código Civil ao preservar o conceito puramente estrutural de propriedade no caput do art. 1.228, qualquer conceituação da propriedade hoje não pode partir senão da sua função social.”

A dinâmica social passou a revelar, na prática, que não apenas a função social deveria nortear o uso da propriedade privada. Outros valores fundamentais também passaram a orientar esse direito, notadamente quando se está em jogo interesses/direitos de terceiros, como é o caso da proteção à dignidade da pessoa humana.

É certo que o proprietário possui a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, conforme estabelece o art. 1.228 do Código Civil. Ademais, é possível que, em caso de condomínio, onde há o uso exclusivo do bem por um dos condôminos, o que está desapossado do imóvel pleiteie o pagamento de “aluguel” correspondente à sua fração.

Trata-se de uma decorrência do direito de propriedade, a qual exsurge da impossibilidade física de utilização conjunta do bem. Aplica-se, à hipótese, a inteligência do art. 1.319 do Código Civil, cujo teor reputa-se oportuno transcrever: “Cada condômino responde aos outros pelos frutos que percebeu da coisa e pelo dano que lhe causou”.

A questão ganha contornos diversos quando o condomínio é titularizado por cônjuges, ainda que em vias de separação, diante da impossibilidade de convivência marital num determinado imóvel.

Nesses casos, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se firmou no sentido de que “Mesmo nas hipóteses em que ainda não concretizada a partilha do patrimônio, é permitido a um dos ex-cônjuges exigir do outro, a título de indenização, a parcela correspondente à metade da renda de um aluguel presumido, se houver a posse, uso e fruição exclusiva do imóvel por um deles” (REsp n. 1.375.271).

Ainda, a Corte Superior de Justiça explicitou a compreensão de que os locatícios, nessas hipóteses, somente passam a ser devidos após a ciência daquele que ocupa o bem de forma exclusiva de que o outro não mais concorda com a moradia sem contraprestação; do contrário, o que se tem é uma espécie de comodato gratuito (AgInt no REsp n. 1.782.828, Min. Luis Felipe Salomão).

Entretanto, uma nova nuance passou a ser enfrentada e que diz respeito ao fato de que, em não raras vezes, a ruptura matrimonial se dá no contexto de violência doméstica, impondo-se ao agressor medida protetiva de afastamento do lar conjugal para preservação da integridade física, psíquica e moral da mulher.

Nestes termos, o art. 22 da Lei nº 11.340/06 – Lei Maria da Penha – prevê que, uma vez constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, dentre outras, a medida protetiva de urgência consistente em determinar ao agressor o “afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida” (inciso II).

Constitui relevante ferramenta que consolida, na prática, o preceito esculpido no § 8º do art. 226 da Constituição Federal1, sem olvidar os mandamentos igualmente insertos na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.

E não poderia ser diferente, uma vez que, segundo dados divulgados pela Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), considerando números apenas do primeiro semestre de 2022, houve registro junto à Central de Atendimento de 31.398 denúncias e de 169.676 violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres. 

Fixado esse panorama, a questão a ser respondida é: o direito à propriedade, como direito individual constitucional, pode se sobrepor à proteção da mulher no contexto de violência doméstica? Ainda, em caso de afastamento do lar conjugal em razão de medida protetiva, poderia o agressor/coproprietário postular o pagamento de aluguel em face da vítima/coproprietária, conforme regência dos arts. 1.228 e 1.319, ambos do Código Civil? A resposta é negativa para ambas.

Isso porque, em primeiro lugar, estão em conflitos dois valores de envergadura igualmente constitucionais, a saber, o direito de propriedade e a dignidade da pessoa humana, devendo haver a prevalência deste último.

A dignidade da pessoa humana, como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, da CF), se sobrepõe como vetor inegociável (“superprincípio” ou “princípio dos princípios”), a partir do qual se estabelece todo ordenamento jurídico, mormente quando em conflito questão meramente patrimonial (direito à propriedade) e a integridade física/psíquica.

Nesse sentido, também, o art. 8º do CPC acrescenta que “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”.

Com a dignidade da pessoa humana há a valorização do ser como um dos objetivos centrais da República Federativa do Brasil, que não pode ser desconsiderado na questão proposta.

Ademais, seria um contrassenso determinar o afastamento do agressor do lar conjugal, mas beneficiá-lo com o pagamento de aluguel decorrente de sua copropriedade, impondo à vítima, em situação de vulnerabilidade, o ônus de tal adimplemento.

Não se pode olvidar que a vítima, em situação extrema que enseja a imposição de medida protetiva, necessita de novo arranjo familiar para custear despesas que outrora partilhava com o cônjuge. Há, em diversos casos, inequívocas dificuldades financeiras da mulher, agravada pelo abalo decorrente da violência sofrida.

Assim, a determinação de pagamento de aluguel, nesses casos, poderia acarretar inclusive desestimulo a denúncias de violência doméstica, já que a vítima, de antemão, vislumbraria a possibilidade de arcar com novas despesas não querida.

Constituiria, com isso, uma proteção ineficiente, desprovida de efetivação prática, a contrariar o próprio espírito que motivou a promulgação da Lei nº 11.340/06.

Igual entendimento foi exposto pelo Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do REsp. nº 1.966.556, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze. Na oportunidade, ressaltou-se que a imposição de medida protetiva de urgência com o objetivo de cessar a prática de violência doméstica e familiar, resultando no afastamento do agressor do lar, constitui motivo legítimo para que se restrinja o seu direito de propriedade sobre o imóvel comum, não havendo falar em enriquecimento sem causa.

Nas palavras do relator, “O direito de propriedade do recorrente não está sendo inviabilizado, mas apenas restringido, uma vez que apenas o seu domínio útil, consistente no uso e gozo da coisa, foi limitado, sendo preservada a nua propriedade".

Colhe-se da ementa:

RECURSO ESPECIAL. CÍVEL. IMÓVEL EM CONDOMÍNIO. POSSE DIRETA E EXCLUSIVA EXERCIDA POR UM DOS CONDÔMINOS. PRIVAÇÃO DE USO E GOZO DO BEM POR COPROPRIETÁRIO EM VIRTUDE DE MEDIDA PROTETIVA CONTRA ELE DECRETADA. ARBITRAMENTO DE ALUGUEL PELO USO EXCLUSIVO DA COISA PELA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. DESCABIMENTO. DESPROPORCIONALIDADE CONSTATADA E INEXISTÊNCIA DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E DESPROVIDO. (...) 2. A jurisprudência desta Corte Superior, alicerçada no art. 1.319 do Código Civil de 2002 (equivalente ao art. 627 do revogado Código Civil de 1916), assenta que a utilização ou a fruição da coisa comum indivisa com exclusividade por um dos coproprietários, impedindo o exercício de quaisquer dos atributos da propriedade pelos demais consortes, enseja o pagamento de indenização àqueles que foram privados do regular domínio sobre o bem, tal como o percebimento de aluguéis. Precedentes. 3. Contudo, impor à vítima de violência doméstica e familiar obrigação pecuniária consistente em locativo pelo uso exclusivo e integral do bem comum, na dicção do art. 1.319 do CC/2002, constituiria proteção insuficiente aos direitos constitucionais da dignidade humana e da igualdade, além de ir contra um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro de promoção do bem de todos sem preconceito de sexo, sobretudo porque serviria de desestímulo a que a mulher buscasse o amparo do Estado para rechaçar a violência contra ela praticada, como assegura a Constituição Federal em seu art. 226, § 8º, a revelar a desproporcionalidade da pretensão indenizatória em tal caso. 4.(...) 5. Outrossim, a imposição judicial de uma medida protetiva de urgência - que procure cessar a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher e implique o afastamento do agressor do seu lar - constitui motivo legítimo a que se limite o domínio deste sobre o imóvel utilizado como moradia conjuntamente com a vítima, não se evidenciando, assim, eventual enriquecimento sem causa, que legitimasse o arbitramento de aluguel como forma de indenização pela privação do direito de propriedade do agressor. 6. Portanto, afigura-se descabido o arbitramento de aluguel, com base no disposto no art. 1.319 do CC/2002, em desfavor da coproprietária vítima de violência doméstica, que, em razão de medida protetiva de urgência decretada judicialmente, detém o uso e gozo exclusivo do imóvel de cotitularidade do agressor, seja pela desproporcionalidade constatada em cotejo com o art. 226, § 8º, da CF/1988, seja pela ausência de enriquecimento sem causa (art. 884 do CC/2002). Na hipótese, o Tribunal de origem decidiu em consonância com a referida tese, inexistindo, assim, reparo a ser realizado no acórdão recorrido. 7. Recurso especial conhecido e desprovido. (REsp n. 1.966.556/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 8/2/2022, DJe de 17/2/2022) (grifou-se)

Diante do exposto, em situação de violência doméstica, havendo conflito entre o direito de propriedade do agressor e a dignidade da mulher vítima, e também coproprietária de determinado imóvel, deve-se afastar o direito daquele à percepção momentânea de aluguel, sob pena de proteção deficiente, contrariando o texto constitucional e os compromissos internacionais assumidos pelo Estado.

3. Conclusão

O presente trabalho visou apresentar, inicialmente, um panorama a respeito da evolução dos direitos humanos, sua imprescindibilidade à vida das pessoas, sem prejuízo da demonstração de que não existem direitos absolutos, podendo sofrer limitações decorrentes do caso concreto.

Ainda, demonstrou-se, sem maiores incursões críticas, a existência das teorias limitadoras dos direitos humanos – ou direitos fundamentais –, denominadas internas e externas, com prevalência da última por utilizar critérios de ponderação em um procedimento bifásico.

Por fim, ainda que sem utilizar expressamente as mencionadas teorias limitadoras, observou-se que, no contexto do conflito entre a dignidade da pessoa humana e o direito de propriedade, dentro do contexto de violência doméstica, tem-se inclinado à proteção do primeiro quando se busca proteger a incolumidade física e psicológica da mulher vítima.

Os direitos humanos, portanto, não são apenas precursores de obrigações prestacionais, mas também servem como balizas protetivas em favor de quem necessita de maior proteção, como é o caso da mulher no contexto de violência doméstica.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br.>

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 270.730. Recorrente: Denise Camargo Serra. Recorrido: Ricardo Serra. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, DF, 21 de setembro de 2017. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/505975858/inteiro-teor-505975 877>.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo de Interno no Recurso Especial n. 1.782.828. Recorrente: B.G.J. Recorrido: A. L. C. De Q. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, DF, 29 de outubro de 2019. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/859908847/inteiro-teor-859908857>.

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Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.966.556. Recorrente: Eduardo Muniz Andrade. Recorrido: Ana Lucia Muniz Andrade. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Brasília, DF, 8 de fevereiro de 2022. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudência/stj/13843587 95/inteiro-teor-1384358985>.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

Fachin, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea: uma perspectiva da usucapião imobiliária rural, Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 19/20.

PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

Tartuce, Flávio. Manual de Direito Civil.– 10. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020, p. 99.

Ramos, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. – 5. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018

Schreiber, Anderson. Manual de direito civil: contemporâneo – 3. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.

SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

OZAI, Ivan. A Artificialidade da Dicotomia entre Teoria Externa e Teoria Interna: A Teoria Externa é Autossuficiente à Solução de Conflitos entre Direitos Fundamentais?. Revista de Direito Público Contemporâneo, Instituto de Estudios Constitucionales da Venezuela e Universidade Federal de Rural do Rio de Janeiro do Brasil, a. 4, v. 1, n. 2, p. 111, julho/dezembro, 2020.


  1.  O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

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Sobre o autor
Bruno Marques de Assis

Pós Graduado em Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSIS, Bruno Marques. A proteção à dignidade da mulher como limite ao exercício do direito de propriedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7450, 24 nov. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107317. Acesso em: 3 dez. 2024.

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